O Prato Sujo que Ensina a Diferença entre Ética e Moral
José Augusto Zaniratti 01/12/2025
Lembro nitidamente, que quando criança e mesmo quando adolescente, eu levantava da mesa de refeições em casa e deixava prato, copo e talheres sobre a mesa e sequer pensava em quem tiraria isso da mesa, lavaria, secaria e guardaria para o uso no dia seguinte. Tudo parecia certo naquele momento. Minha mãe e irmãs resolveriam tudo. Sim, é verdade que não era obrigado a recolher.
Esta cena, tão comum em tantos lares, é muito mais do que uma simples lembrança de infância. Ela é a semente de uma das reflexões mais profundas da condição humana: a distinção entre o que é moral e o que é ético. Na época, meu comportamento era moralmente aceitável dentro daquele contexto familiar. Não havia uma lei em casa me obrigando a lavar a louça. Era a "cultura local" que ditava aquelas regras não escritas.
O que mudou não foi apenas o cenário, mas a minha consciência. Na infância, eu não via o outro – o trabalho invisível das mulheres da minha família era parte da paisagem, não uma ação realizada por indivíduos com dignidade e cansaço. A revolução foi perceber que o outro existe, sofre, cansa e merece consideração. Essa percepção é o germe da ética.
A verdadeira revolução aconteceu décadas depois, quando um simples gesto no restaurante se tornou um hábito: levantar, pegar o prato, copo, talheres e guardanapos usados e levar até o balcão. No entorno, olhos curiosos e surpresos seguem o gesto. Sim, isso ainda é estranho. Também não sou obrigado a fazer isso. O que mudou? A resposta está na transição de uma vida guiada pela moral para uma vida orientada pela ética. É a obediência àquilo que não é obrigatório, mas que é bom e justo.
É necessário desvendar essa diferença para que todos possam refletir e compreender não apenas o conceito, mas como aplicá-lo na própria vida.
Pense na Moral como o GPS da sua cultura. Ela é um conjunto de valores, costumes, hábitos e regras coletivamente aceitos por um grupo específico em um determinado tempo e lugar. A moral responde à pergunta: "Isso é certo ou errado aqui e agora?"
Ela é:
Particular: Varia de país para país, de família para família, de empresa para empresa. É um código social.
Histórica: O que era moralmente aceito há 50 anos pode ser repudiado hoje.
Heterônoma: As regras são criadas de fora para dentro. Alguém (a sociedade, a religião, a família) as estabelece e você é ensinado a segui-las.
Coercitiva: Quem desobedece às regras morais sofre sanções, que vão da culpa e do olhar de reprovação até a exclusão do grupo.
Exemplo Prático 1: O Prato na Casa da Infância
Na minha casa de infância, a moral familiar ditava que "os filhos homens não precisam lavar a louça; essa é uma tarefa das mulheres da casa". Seguir essa regra era ser um "bom menino" dentro daquela lógica. A obrigatoriedade (ou a falta dela) era o limite claro do meu mundo moral. Eu não questionava; apenas obedecia ao costume.
Exemplo Complexo 1: O Suborno como "Cortesia"
Imagine um empresário de um país escandinavo negociando no Brasil. No seu país, oferecer um "presente" para fechar um contrato é imoral e ilegal (é suborno). No entanto, em certos círculos de negócios no Brasil, existe uma moral distorcida que normaliza essa prática como "jeitinho" ou "cortesia necessária". O empresário estrangeiro se vê num conflito moral: para ser bem-sucedido na moral local, ele precisa violar a moral do seu país de origem. O que é moralmente errado no seu país pode ser perfeitamente aceito em outro. A moral, aqui, se mostra relativa e, por vezes, contraditória. É claro, esta é uma moral distorcida de “certos círculos”, e não uma regra absoluta da sociedade brasileira, que também possui fortes valores éticos de condenação à corrupção. Enquanto a moral organiza um povo, ela não qualifica o indivíduo.
Se a moral é o mapa, a Ética é a bússola interna. Ela não se preocupa com "o que aqui se considera certo", mas responde a uma pergunta mais profunda: "Isso é bom ou mau para o ser humano em qualquer lugar?" A Ética é a disciplina filosófica que questiona, investiga e reflete sobre os próprios fundamentos da moral. Ela [a Ética] aspira à universalidade, buscando princípios que valham para a condição humana como um todo. A integridade ética não é um estado fixo, mas uma conquista diária; uma pessoa que age com ética no Brasil tenderá a agir da mesma forma no Japão, porque sua conduta emana de uma convicção interior, e não da adaptação a regras locais. A incoerência, por sua vez, é o sinal mais claro de sua ausência.
Ela é:
Universal: Aspira a princípios que valem para todos os seres humanos, independentemente de sua cultura.
Autônoma: As regras são criadas de dentro para fora. Você as compreende, internaliza e segue por convicção própria, usando a razão e a empatia. É, como dizia Aristóteles, habituar-se a escolher o bem, não por medo da punição, mas porque você entende que aquilo te faz uma pessoa melhor.
Fundamentada: Ela exige perguntas do tipo "Por que isso é certo?".
Não-Coercitiva: A "sanção" por agir contra a ética não é uma punição externa, mas um conflito interno com a própria consciência.
Exemplo Prático 2: O Prato no Restaurante
Voltemos ao restaurante. Ninguém me obriga a levar minha bandeja. Não há uma lei municipal para isso. Fazer ou não fazer é uma escolha ética. Minha reflexão foi: "Se eu não levo, outra pessoa (a garçonete, ou garçom, ou auxiliares) terá que fazer isso por mim. Esta pessoa é um ser humano como eu, com dignidade e cansaço. Mesmo sendo o trabalho dela, é justo que eu facilite, que eu demonstre respeito pelo seu esforço?".
A ação é a mesma (recolher o prato), mas a motivação é radicalmente diferente. Na infância, a motivação era a obediência (ou a falta de uma regra). No restaurante, a motivação é o reconhecimento da dignidade do outro e a compreensão de que colocar o coletivo sobre o individual é um bem em si mesmo. Este é um princípio ético universal. Você não tem que fazer, mas é bom que faça.
A grande confusão entre os dois conceitos surge porque uma pessoa ética geralmente também segue a moral do seu grupo – mas por uma razão diferente. Ela não segue cegamente; ela avalia se aquela regra moral é, de fato, justa e boa. Afinal, nem tudo que é lícito, isto é, moralmente permitido, convém ou seja, é eticamente recomendável.
A Moral aponta "o que fazer" e a Ética questiona "por que fazer?".
A minha consciência mudou o comportamento ou apenas evoluiu depois de várias encarnações, segundo os espíritas. Ela não se contenta mais em saber se algo é permitido ou proibido. Ela quer saber se é justo. É a ética que nos permite criticar e tentar mudar moralidades ultrapassadas ou opressoras. Foi a reflexão ética sobre a dignidade humana que levou à abolição da escravidão, uma instituição que já foi moralmente aceita em muitas sociedades e no Brasil, proibida em 1888, seus reflexos, como o racismo, pro exemplo, ainda são nitidamente observados.
Exemplo Final e Desafiador: A Denúncia de um Colega
Você descobre que um colega de trabalho muito querido e competente está desviando pequenas quantias da empresa. A moral do grupo é "não dedure os amigos", entra em conflito com a moral da empresa "não roube" e com um princípio ético universal "a honestidade é um pilar da confiança social".
Agir apenas pela moral do grupo é se calar, priorizando o relacionamento.
Agir apenas pela moral da empresa é denunciá-lo imediatamente, priorizando a regra.
No entanto, agir com ética também significa estar preparado para a decepção. Se o colega se recusar a reparar o erro, ridicularizar a sua preocupação ou piorar a conduta, a ação ética culminará, com pesar, na denúncia. A ética não é uma garantia de um bom resultado para todos; é a garantia de que você agiu com integridade e consideração por todos os envolvidos, mesmo quando isso exige uma decisão dolorosa. O conforto, nesse caso, não está no resultado, mas na pureza do processo. É buscar uma solução que, na medida do possível, preserve a dignidade do colega e a justiça para a empresa. A ação final pode ser a mesma (a denúncia), mas o processo é completamente diferente, pois foi guiado por uma reflexão profunda sobre a responsabilidade para com todos os envolvidos. Houve a oportunidade de crescimento ético do colega que, pelo livre arbítrio, poderá ou não mudar de comportamento. É a coragem de escolher o bem, mesmo quando é difícil.
A jornada do prato sujo que ficava na mesa ao prato que é levado ao balcão é, em micro escala, a jornada de amadurecimento de qualquer sociedade. É a passagem de uma existência passiva, onde somos meros cumpridores (ou não) de regras, para uma existência ativa, onde nos tornamos arquitetos do nosso caráter e agentes de um mundo mais justo.
Como muitos já afirmaram: "fazer o certo independe da cultura local e das leis". Essa é a essência da vida ética. É o que nos move a ajudar um estranho, a devolver uma carteira perdida, a falar a verdade quando mentir seria mais fácil, a recolher os dejetos de seu animal de estimação, a recolher nosso lixo na praia ou de qualquer outro espaço de uso coletivo, mesmo quando ninguém está olhando.
Não se trata de um conjunto complexo de filosofias inalcançáveis. Trata-se da coragem de, todos os dias, fazer a pergunta mais simples e transformadora de todas: "Independente do que todos estão fazendo ou do que eu posso “me dar bem”, qual é a coisa mais decente e humana a se fazer?". A resposta, acredite, sua bússola interna pode encontrar. Basta ter a coragem de calibrá-la todos os dias, não pelo barulho do mundo ou pela conveniência, mas pelo silêncio profundo da pergunta: “qual é a coisa mais decente a se fazer?”. É o hábito de escolher o bem, não por obrigação, mas porque essa prática é, em si, a arte de construir uma vida e um mundo que verdadeiramente valem a pena, um caminho que nos retira da trilha das trevas.
A Jornada da Estética à Essência na Avaliação do Mundo
José Augusto Zaniratti 24/11/2025
"Eu simplesmente não gosto." Esta frase, aparentemente inocente e definitiva, é um dos veredictos mais comuns que emitimos no dia a dia. Aplicamo-la a uma música nova, a um prato diferente, a uma ideia política, a um estilo de vida alheio. Raramente, porém, nos questionamos sobre a origem desse "não gosto". De onde vem? O que o sustenta? Existem critérios – uma lente invisível – através da qual enxergamos e avaliamos o mundo. Muitos deles foram instalados em nós na infância e na adolescência, um software cultural e emocional que opera em segundo plano, ditando nossas preferências e aversões.
A acomodação a esse "meio mais próximo" é o maior inimigo do desenvolvimento humano e da verdadeira compreensão. A evolução pessoal e coletiva exige que transcendamos esses critérios herdados e aprendidos, realizando uma jornada crucial: a ampliação da “estética” para a “essência”. É preciso mapear essa travessia, fundamentando-a em pensadores que iluminaram os caminhos – e os desvios – da percepção humana.
O primeiro ambiente social, a família, é a nossa primeira fábrica de critérios. A psicanálise, desde Freud, nos mostrou que a estruturação do psiquismo é profundamente influenciada pelas figuras parentais. Os "nãos" e "sims" da infância, os elogios e as repreensões, moldam não apenas nosso comportamento, mas nosso gosto e nosso senso moral. O que os pais apreciam na música, na comida, nas pessoas – torna-se, por um processo de identificação, um valor positivo. O que rejeitam, um potencial perigo.
O filósofo francês Pierre Bourdieu, em sua obra seminal “A Distinção”, levou essa análise para o campo sociológico. Bourdieu introduz o conceito de "habitus", que ele define como um "sistema de disposições duradouras e transferíveis" que funciona como um esquema gerador de práticas e percepções. Em termos mais simples, o "habitus" é a "caixa de ferramentas" mental que adquirimos do nosso meio social. Ele determina nosso "gosto de classe": o que consideramos belo, refinado, vulgar ou natural. Uma criança criada em um ambiente onde a música erudita é valorizada tenderá a vê-la como superior; outra, imersa na cultura do hip-hop, desenvolverá um ouvido sintonizado com suas complexidades rítmicas e poéticas. Nenhum dos gostos é inato; ambos são produtos de um "habitus" específico.
É difícil dizer em que momento da vida absorvemos estes critérios. Eles se tornam tão naturais quanto respirar. Eles nos são tão próximos que confundimo-los com a nossa própria essência, quando, na verdade, são apenas a primeira camada de nossa identidade, uma casca moldada pelo exterior. Acomodar-se a esse meio é viver na superfície de si mesmo, é trocar a autenticidade pelo condicionamento.
Se a família fornece os primeiros critérios, a adolescência é o cadinho onde eles são testados, reforçados ou substituídos pelos do grupo. O psicólogo social Solomon Asch, com seus famosos experimentos sobre conformidade, demonstrou de forma crua o poder da pressão dos pares. Indivíduos eram capazes de negar a evidência dos seus próprios olhos (dizer que duas linhas de comprimentos diferentes eram iguais) para se alinhar ao julgamento errado de um grupo.
Na adolescência, "gostar" ou "não gostar" deixa de ser uma questão puramente individual para se tornar um bilhete de entrada ou exclusão. A tribo – seja ela de punks, de atletas, de nerds ou simplesmente o rol de amigos e amigas mais próximos – estabelece um código estético e comportamental rígido. Gostar da banda certa, vestir a roupa certa, usar a gíria certa, são atos de filiação. Nesse estágio, o critério deixa de ser apenas familiar para se tornar tribal. A avaliação ainda é profundamente estética, focada na forma, na aparência, no sinal exterior de pertencimento. A essência do objeto, da ideia ou da pessoa é secundária; o que importa é sua função social como símbolo de identidade grupal.
O filósofo alemão Theodor Adorno, da Escola de Frankfurt, criticou ferozmente o que chamou de "indústria cultural". Para Adorno, a cultura de massa padroniza os gostos e as reações, criando "pseudo-individualidade". Acreditamos estar fazendo escolhas únicas quando, na realidade, estamos apenas selecionando entre opções pré-fabricadas por um sistema que teme a verdadeira autonomia de pensamento. Acomodar-se a esse meio grupal ou midiático é abrir mão da capacidade de julgar por si mesmo.
Há outros elementos que atuam na modelagem de quem somos como, por exemplo, a nossa espiritualidade, as relações pessoais conflituosas ou não, ao longo do caminho. Sair da aparência e buscar a essências das coisas, das pessoas e de nossa convivência, significa evoluir.
Como, então, realizar a "ampliação da estética para a essência"? Essa jornada raramente é confortável. Ela quase sempre começa com uma crise, um ruído na “matrix” do "habitus". Pode ser o contato com uma cultura radicalmente diferente, uma leitura que abala convicções, uma experiência de sofrimento que rasga os véus da superficialidade, um deslumbre espiritual ou simplesmente um cansaço profundo das próprias certezas.
O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard via essa crise como um convite a um estágio superior de existência: o estágio ético-religioso, que supera o estético. Para Kierkegaard, a vida estética é a vida do prazer imediato, da diversão, do exterior. É uma vida dispersa e, no fundo, desesperada. A transição para o estágio ético exige um salto: a escolha de compromissos, de valores internos, de uma visão de mundo coerente, mesmo quando ela conflita com os prazeres estéticos imediatos. É o momento em que se prefere a verdade difícil à mentira confortável, a integridade ao aplauso fácil.
É crucial, neste processo, considerar o lugar válido das emoções. A ocorrência de "não gosto" instantânea, a resposta visceral ou a atração são aspectos importantes da nossa experiência humana, forma consciente, a importância que ela terá em nossa avaliação final. Assim, as emoções não são as únicas orientações de nossas respostas, mas tornam-se parte de uma visão mais ampla que inclui razão, empatia e a busca pela verdade. Nesse ponto, o pensamento do escritor russo Mikhail Bakhtin é esclarecedor. Bakhtin menciona a importância do "excedente de visão". Ninguém pode ver completamente; precisamos dos outros para nos completar. Do mesmo modo, nossa percepção do mundo é sempre parcial, limitada pelo nosso "habitus". Buscar a essência é buscar esse "excedente de visão", que envolve colocar-se no lugar do outro, do criador, do contexto. É interagir com a obra, com a ideia, com a pessoa, em vez de simplesmente rotulá -la como algo que gostamos ou não.
Avaliar pela essência demonstra uma humildade intelectual. Implica em aceitar que nossos padrões não são universais e sim construídos, e que a realidade sempre vai além de nossa compreensão inicial. É um processo que nunca termina, que envolve desaprender e aprender novamente, e questionar as implicações mais profundas.
A jornada da estética para a essência não é apenas melhorar o gosto. Trata-se de uma mudança profunda na vida. É passar de uma existência reativa, controlada por influências invisíveis, para uma vida reflexiva, orientada pela busca consciente de sentido e verdade.
Implica a coragem de "não se conformar com o que o rodeia". Significa estar disposto a olhar para uma obra de arte e perguntar não "Isso é bonito? ", mas sim "O que isso expressa ? ". Examinar uma pessoa diferente e questionar não "Ela se parece comigo ? ", mas "Quem é essa pessoa ? ". Olhar para uma ideia oposta e interrogar não "Isso me ofende?", mas "O que isso revela? " "Para onde isso nos leva? ".
No campo da política, o mesmo vale. É normal não gostar de certos líderes. Porém, isso não deve orientar nossas decisões. A questão a ser levantada deveria ser "o que essa liderança fez pelo país ? " " Quais são seus compromissos planejados? "E nunca simplesmente dizer "não gosto dele". O que se vê na superfície não reflete sua essência nem suas ações.
Essa ampliação é exatamente o contrário do fundamentalismo, da polarização cega e do julgamento apressado que caracterizam nosso tempo. Ela nos encoraja a trocar os olhos turvos dos critérios herdados pela visão clara da curiosidade, empatia e reflexão profunda. No final, evoluir não significa gostar de tudo, mas sim entender mais. E nessa compreensão, percebemos que a essência das coisas – inclusive a nossa – é muito mais rica, complexa e fascinante do que qualquer atenção superficial jamais poderia ser expressa. A verdadeira evolução é, no fim das contas, a mudança de um juiz que condena para um explorador que busca, é passar de um ser imóvel e limitado pela escuridão para um viajante que avança na direção à luz da sabedoria.
Herança de Silêncios: O Legado que Precisei Contar
José Augusto Zaniratti 17/11/2025
Escrever é terapêutico. Eu desconhecia isso. Descobri tal fato depois de muitas décadas. O estilo de vida que temos impede a reflexão, nos coloca em uma roda viva onde a luta pelo ter retira nosso tempo para pensar, para sentir, para simplesmente ser. Vivemos na era da produtividade tóxica, onde o valor de um homem se mede por suas posses, seu cargo, seu salário — nunca por sua capacidade de amar, de criar, de transformar o mundo ao seu redor com gestos simples e verdadeiros.
Eu sofri muito tempo da alienação sócio-construída que nos reduz a seres de produção material e consumo exagerado, onde o pensar fica limitado ao que faremos no dia seguinte e nunca pensamos em ser mais amanhã. Fui um operário da própria existência, martelando dias iguais em uma cadeia de montagem de horas vazias. Trabalhava, consumia, dormia — e no intervalo entre uma tarefa e outra, perdia-me de mim mesmo. Como um pássaro que esqueceu o canto, vivia repetindo a mesma trilha sonora imposta por um sistema que nos ensina a voar dentro de gaiolas douradas.
Ler não basta. Compreender o que outros escreveram é fundamental, pode ser, inclusive, um gatilho para despertar para um outro estilo de viver, um viver para crescer. Quantos livros devorei sem digerir? Quantas palavras passei pelos olhos sem permitir que chegassem à alma? A verdadeira leitura acontece quando as letras param de ser símbolos em uma página e se tornam espelhos — quando enxergamos nossa própria história refletida nas experiências alheias, quando um autor morto há séculos nos sussurra uma verdade que estava sempre ali, esperando para ser descoberta.
Cada um de nós tem uma trajetória e nela há momentos de despertar para o sentido de viver. O meu chegou tarde, mas chegou com a força de um rio que rompe barreiras. Acreditava, desde tenra idade, que ser crítico e questionador só faria sentido se eu fizesse algo para mudar a realidade que me cercava. Não bastava apontar os defeitos do mundo — era preciso sujar as mãos na argamassa da transformação.
Ao olhar para meu entorno, via uma família amorosa, solidária, não faria sentido alterar uma família que zelava por todos. Meus pais — guerreiros silenciosos — me ensinaram mais com seus exemplos do que com mil discursos. Minha mãe, com sorriso resiliente; meu pai, com seu silêncio eloquente que carregava histórias não contadas. Como melhorar o que já era tão puro em sua essência?
Meus amigos eram leais, companheiros e também não fazia sentido alterar relações de afeto sincero. Eram irmãos que a vida me deu, parceiros e parceiras de jornada cujas risadas ecoam em minha memória como sinos de um tempo mais simples. Então olhei para mais longe e vi um ambiente social autoritário, militarizado, injusto e decaído moralmente. Alterar isso, questionar as razões de tanta tristeza, fazia sentido. Via nas ruas o grito silencioso dos oprimidos, nos olhos das crianças a pergunta não formulada: “Por que o mundo é assim?”
Pensava em meu íntimo que um dia teria filhos e eles me perguntariam o que tinha feito para mudar a realidade. Essa possibilidade me assombrava como um fantasma benevolente. Imaginar seus rostos curiosos, seus olhos brilhantes esperando uma resposta que justificasse minhas escolhas — isso me mantinha acordado nas noites de indecisão. Precisava construir uma trajetória que me permitisse contar aos meus filhos que não fui um jovem questionador e crítico, apenas, que teria feito coisas para mudar o mundo.
Em outras palavras, era um legado que eu queria deixar e pelo jeito, seria um legado imaterial. Algo que não caberia em um cofre, não se mediria em metros quadrados ou zeros em uma conta bancária. Seria uma herança de valores, de coragem, de exemplos — a única riqueza verdadeiramente impenetrável ao tempo e à corrosão da existência.
Embora vivendo na selva do consumo, caminhei para o espaço que a ditadura dos anos 70 mais odiava: curso de história. Escolhi estudar o passado não por fuga, mas por compreensão — sabia que para mudar o futuro, era preciso primeiro decifrar as entrelinhas do que já acontecera. E como o ambiente nos conduz, virei um ativista anti-ditadura. De estudante de arquivos e livros empoeirados transformei-me em protagonista de minha época, entendendo que os livros de história do amanhã seriam escritos com as ações do hoje.
Mas quem contaria as histórias deste legado? Essa pergunta repetiu-se em mim por anos, como uma melodia inacabada. Foi então que depois de 40 anos, descobri que eu deveria contar o legado de outras pessoas, das pessoas que me construíram, que se dedicaram a moldar meus valores, que estabeleceram meus princípios, ainda que naquele momento de minha infância não tivesse a menor consciência. Percebi que minha missão não era falar de mim, mas ser a voz daqueles que viveram de forma extraordinária dentro de uma ordem aparente.
Poderia ser que meu legado fosse o de contar o legado de outros. E foi isso que fiz. Ontem realizei a tarefa que me fora pedida há 24 anos. Quando finalmente fechei o manuscrito, senti não orgulho, mas uma gratidão profunda — como se tivesse cumprido um pacto sagrado com aqueles que já não podiam falar por si mesmos.
Senti uma euforia que até então desconhecia. A paz da vitória quando não há vencidos, apenas vencedores. Era como se todas as peças de um quebra-cabeça existencial tivessem finalmente se encaixado, revelando uma imagem que sempre esteve lá, esperando para ser contemplada.
Isso, escrever um livro é terapêutico, escrever nos faz organizar o pensamento. É o momento que sistematizamos as experiências vividas e aquelas que assistimos, apenas. Na dança entre a memória e a palavra, encontramos não apenas o que fomos, mas o que poderíamos ter sido — e o que ainda podemos vir a ser. Neste momento encontramos explicações de como fomos forjados, de como fomos construídos. Cada frase é um retorno à cena original, uma oportunidade de reescrever não os fatos, mas seu significado.
Isto é a própria reflexão, algo tão raro no século XXI. Em um mundo de estímulos constantes e atenção fragmentada, a escrita nos força à pausa, ao silêncio, ao mergulho interior. Escrever é aprender com sua própria vida, com as lições que nossos atos, nossas decisões geraram. É como se testemunhássemos por escrito um legado que pode orientar muitas vidas. Cada palavra é uma semente lançada ao vento — não sabemos onde irá cair, nem que flores irá gerar.
Ao escrever “GERALDO ZANIRATTI: EU PRECISO CONTAR”, lançado no dia 16 de novembro de 2025 na 71ª Feira do Livro de Porto Alegre, inscrevi na história fatos e sentimentos de homens e mulheres comuns que, com suas intuições e sonhos, fizeram novos homens e mulheres. Essas pessoas não estarão nos livros de história convencionais, mas estarão eternizadas nas páginas que escrevi com o coração.
Descobri, enfim, que a terapia da escrita não está no ato de publicar, nem no reconhecimento alheio. Está no processo íntimo de dar forma ao caos, de encontrar sentido na aleatoriedade, de transformar dor em poesia e alegria em prosa. Escrever é a arte mais humana que existe — é nossa tentativa de vencer a invisibilidade, de deixar marcas na areia do tempo antes que a maré do esquecimento as leve.
E talvez, quem sabe, daqui a cem anos, alguém folheie estas páginas e encontre não apenas minha história, mas ecos da sua própria jornada. Porque no fundo, todos precisamos contar — e todos precisamos ser contados. Só assim sairemos do caminho das trevas.
O Brasil Real por Trás do Mito
José Augusto Zaniratti 10/11/2025
Há uma frase que ecoa cada vez mais forte nas mentes observadoras, muitas vezes, de forma inconsciente: “A internet descobriu o Brasil”. A afirmação, aparentemente simples, é uma chave poderosa para entendermos a crise de identidade que atravessamos. Eu sempre repito esta frase para mostrar nossa ignorância sobre a maioria que habita nossa terra. Ela sugere uma revisão radical da nossa história e, ao mesmo tempo, oferece uma explicação angustiante para o nosso presente. Se a chegada dos portugueses em 1500 foi um encontro entre mundos, a popularização da internet no século XXI foi o encontro do Brasil consigo mesmo – e o espelho refletido não é nada lisonjeiro.
A tese é provocadora: o Brasil não foi “descoberto” por Cabral. Ele já estava aqui, habitado por milhões de pessoas, com centenas de nações originárias, diversas línguas, culturas complexas e uma história milenar. Vestígios arqueológicos e históricos comprovam que o Brasil era densamente habitado. As civilizações que existiam aqui antes de 1500 deixaram vestígios impressionantes, que estão sendo redescobertos pela arqueologia moderna. Por exemplo, os Povos da Amazônia; os Sambaquieiros; os Povos das Ocas de Pedra; os Construtores de Cercas aqui estavam há muito tempo. Diversas civilizações com diferentes graus de complexidade social, que dominavam técnicas de engenharia, agricultura, manejo ambiental e tinham ricas expressões artísticas e ritualísticas. Lagoa Santa (Minas Gerais), por exemplo, onde foi encontrado “Luzia”, assim denominada, que é um dos esqueletos humanos mais antigos das Américas com cerca de 12.000 anos. Tudo isso muito antes da esquadra lusitana avistar o Monte Pascoal. Quem sabe até os Vikings tenham passado por aqui, já que há comprovação que passaram por onde é hoje o Canadá.
A “descoberta” foi, na verdade, o início de um processo de invasão, dominação e da construção de um mito fundador que nos persegue até hoje.
A verdadeira descoberta, argumenta-se, está acontecendo agora, através da internet. A rede mundial de computadores não descobriu as terras, mas sim o povo que as habita. E o que ela revelou, em grande escala, foi uma legião de indivíduos cujas opiniões, preconceitos e visões de mundo, antes confinadas ao espaço privado, ganharam o palco global. De repente, ficou claro: uma massa de pessoas que “se regozija com a ascensão de uma extrema direita autoritária, que adora reproduzir notícias mentirosas e ama ações policiais que matam mais que prendem” não é uma minoria barulhenta, mas uma parte significativa e assustadora do nosso tecido social.
Para desmontar a ideia da 'descoberta' portuguesa, é essencial recorrer ao pensamento do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Em sua obra “A Inconstância da Alma Selvagem”, ele descreve o que os europeus encontraram não como um vazio demográfico, mas como um “inferno verde” já plenamente descoberto e compreendido por seus habitantes originais — um mundo repleto de sociedades complexas.
A “descoberta” foi, na prática, um ato de negação. Negou-se a humanidade plena dos nativos, sua cultura, sua história e seu direito à terra. Como escreveu o historiador Laurentino Gomes em sua série “Escravidão”, a empresa colonial foi baseada em uma lógica de exploração e violência que estabeleceu as bases de muitas de nossas mazelas sociais atuais, incluindo a brutal desigualdade e a naturalização da violência contra certos grupos.
Portanto, a primeira descoberta foi um apagamento. A segunda, a da internet, é uma revelação. Este é o mito da descoberta que gerou a invisibilidade dos Povos Originários.
A internet, em sua promessa inicial, era vista como uma grande ágora digital. Pensadores como Pierre Lévy, em "A Inteligência Coletiva", vislumbravam um futuro onde a rede potencializaria a construção compartilhada do saber. O que se revelou no Brasil, porém, foi o encontro dessa tecnologia com uma massa de pessoas historicamente desumanizadas pelo projeto colonial.
O que aconteceu quando essa tecnologia chegou de forma massiva no Brasil? A socióloga Sônia Virginia Moreira, em suas pesquisas sobre mídia e democracia, argumenta que a internet não criou comportamentos, mas tornou visíveis comportamentos que sempre existiram nos porões da sociedade. A fascinação pelas redes sociais deu, pela primeira vez, um megafone individual e uma plateia global para milhões de brasileiros. E, como crianças em um parque de diversões, muitos correram para usar esse megafone sem filtro, sem pudor e, muitas vezes, sem qualquer compromisso com a verdade ou a empatia.
O que vemos é a explosão do que o filósofo alemão Byung-Chul Han chama de “transparência infernal” e da “sociedade da positividade”. Em seu livro “A Sociedade do Cansaço”, Han descreve um mundo onde a exposição total substitui a reflexão, e onde o excesso de estímulos e a pressão pelo desempenho (em “likes”, “shares”, compartilhamento e engajamento) gera indivíduos exaustos e agressivos. Nas redes, essa exaustão se traduz em discursos de ódio, polarização e na busca por soluções simples e violentas para problemas complexos. No final das contas, aflorou uma Ágora Digital povoada, massivamente, pelas vozes dos “Brutos”.
A expressão “regozijam com a ascensão de uma direita nazifascista” não é mera retórica. Ela encontra eco no trabalho de historiadores como Timothy Snyder, autor de “Sobre a Tirania: Vinte Lições do Século XX para o Presente”. Snyder alerta para os sinais de alerta que precedem regimes totalitários: a rejeição da realidade objetiva em favor de um “mundo mágico” de notícias falsas, a fetichização da violência e a nostalgia de um passado idealizado que nunca existiu.
No Brasil, essa dinâmica se manifesta na glorificação da violência estatal. A frase “ações policiais que matam mais que prendem” remete diretamente ao conceito de “necropolítica”, cunhado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe. Em seu ensaio “Necropolítica”, Mbembe discute como o poder soberano, em certos contextos, se manifesta precisamente pela capacidade de decidir quem pode viver e quem deve morrer. A celebração pública de operações policiais com altíssima letalidade, especialmente em periferias e favelas, é a aceitação tácita de que certas vidas são descartáveis – um eco sinistro da lógica colonial. De certa forma, para milhões de brasileiros, há um certo orgulho da sua própria ignorância e uma fascinação pelo autoritarismo.
A adoração por notícias falsas, por sua vez, é analisada pela filósofa Hannah Arendt em “As Origens do Totalitarismo”. Ela observa que os regimes totalitários não se sustentam apenas pela repressão, mas pela destruição sistemática da realidade factual. Em um ambiente onde fatos e mentiras têm o mesmo peso, o cidadão fica desorientado e se torna mais suscetível à propaganda de um líder forte que promete restaurar a “ordem”.
Diante desse quadro desolador, é tentador cair no desespero ou no elitismo, simplesmente classificando uma grande parcela da população como “brutos e ignorantes”. No entanto, essa atitude é estéril e reproduz a mesma lógica de exclusão que criticamos.
O desafio, talvez, seja entender que a internet não criou esse problema, mas *escancarou uma doença social de fundo: uma educação pública historicamente negligenciada, uma justiça social frágil e uma cultura política marcada pelo autoritarismo e pela corrupção.
Paulo Freire, um dos maiores educadores e pedagogos do século XX, em sua obra basilar e fundamental “Pedagogia do Oprimido”, já nos ensinava que ninguém é ignorante por opção. A ignorância é, muitas vezes, o resultado de um projeto político que nega ao povo as ferramentas para uma leitura crítica do mundo. Combater a ignorância, portanto, não é xingar o ignorante, mas lutar por uma educação libertadora que permita a todos compreender e transformar sua realidade.
A descoberta do Brasil pela internet foi traumática. Foi como levantar uma grande pedra e ver a vida que se agitava debaixo dela: não é bonita, é assustadora. Mas só podemos tratar uma ferida depois que ela está exposta. A internet, com todos os seus males, fez isso por nós. Ela nos mostrou a dimensão real do abismo que precisamos atravessar.
O trabalho agora é coletivo e descomunal. É o trabalho de reeducação, de reconstrução de laços sociais, de revalorização da ciência, da ética e da empatia. É preciso usar a mesma ferramenta que revelou a doença – a internet – para disseminar o antídoto: informação de qualidade, arte, cultura, debate respeitoso e a incessante defesa da democracia.
O Brasil real foi descoberto. Agora, a pergunta que fica é: temos a coragem de enfrentá-lo e, finalmente, começar a construí-lo? Se a resposta for sim, coletiva e individualmente, então estaremos, finalmente, trilhando o caminho de volta para a luz e nos afastando das trevas.
Uma Questão de Dignidade, Justiça e Reconhecimento
José Augusto Zaniratti 03/11/2025
É um absurdo, no sentido mais lógico e humano da palavra, admitir que as necessidades culturais e de existência digna dos povos originários do Brasil são idênticas às da população branca urbana. Da mesma forma, os anseios do povo Pomerano não se confundem com os dos quilombolas, assim como a realidade da população negra periférica é distinta da vivida no interior. Negar essa pluralidade é mais do que uma simplificação grosseira; é fechar os olhos para a realidade e para a ciência que nos mostra a riqueza da diversidade humana. Na sala de aula, um educador competente sabe que tratar todos os alunos de forma idêntica é perpetuar desigualdades; é preciso enxergar as individualidades, os tempos de aprendizagem e as histórias de vida para que a verdadeira equidade se estabeleça. “Tratar os desiguais de forma igual não é justiça; é uma das formas mais sutis de opressão.”
Este princípio, tão claro na educação, é a base para entendermos a complexa teia de povos e comunidades tradicionais que formam o Rio Grande do Sul e o Brasil. Não basta abrir um guarda-chuva genérico de "políticas para minorias" ou um “Conselho de Povos e Comunidades Tradicionais” como se não houvesse diferenças abissais entre eles. É preciso mergulhar na realidade vivida por cada um desses grupos – seus traumas históricos, suas cosmovisões, suas formas de organização social e suas lutas específicas – para que as políticas públicas possam, de fato, proporcionar condições dignas de existência. A uniformização, neste contexto, é um projeto que não resgata a história, é parte de um projeto autoritário que apaga identidades e silencia vozes.
Mas como o Estado, com sua estrutura por vezes engessada, pode alcançar essa compreensão tão específica? A resposta, felizmente, já foi encontrada e testada na prática por meio de um instrumento democrático e fundamental: os Conselhos Estaduais e Nacionais. Estes não são meras reuniões burocráticas ou "conversas sem sentido". Eles são a ponte viva entre a sociedade civil e o aparelho de Estado. São nesses espaços que o "saber técnico" do governo é confrontado e enriquecido pelo "saber vivido" das comunidades. É onde o Estado, obrigado a ouvir, passa de um ente distante a um parceiro na construção de soluções.
Foi com essa intenção que surgiu o Decreto Federal 6.040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Este decreto é um marco. Ele não só reconhece a existência desses grupos – entre eles, explicitamente, os povos ciganos – como também determina que o poder público deve criar mecanismos para sua efetiva participação. O conselho específico é, portanto, mais do que uma demanda da comunidade; é a materialização de uma determinação legal que ainda não foi integralmente cumprida no RS quando se fala do povo cigano.
É verdade que há participação cigana em instâncias mais amplas. Eles têm assento no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais e estão representados no Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa. No entanto, como bem alerta o próprio Decreto nº 6.040/2007, é princípio fundamental "não desrespeitar, subsumir ou negligenciar as diferenças". O exemplo local que fracassou redondamente ocorreu em Esteio-RS, onde a prefeitura, por absoluto despreparo, juntou todos os conselhos em apenas um Conselho genérico. O resultado foi catastrófico.
Em um conselho que reúne indígenas, quilombolas, povos de terreiro, pescadores artesanais, extrativistas e ciganos, como determinadas autoridades desejam, há um risco real de que as demandas extremamente particulares de cada grupo se percam na agenda mais ampla dos "povos tradicionais". A luta por um território para um acampamento cigano fixo é diferente da luta por titulação de quilombo; a necessidade de sensibilidade cultural na saúde para um cigano é diferente da de um indígena; o combate aos estereótipos específicos que atingem os ciganos requer ações direcionadas.
Um espaço genérico, por mais bem-intencionado que seja, tende a homogeneizar e a diluir essas especificidades. O que os ciganos precisam, e merecem, é de um espaço onde suas prioridades exclusivas sejam o foco central do debate.
Hoje, o Rio Grande do Sul possui uma miríade de conselhos temáticos e setoriais. Temos o Conselho Estadual de Educação, que debate a qualidade do ensino; o Conselho de Saúde, que define prioridades para o SUS; o Conselho de Assistência Social, que orienta a proteção aos mais vulneráveis. O Estado do Rio Grande do Sul também já reconhece a importância da representação específica para a efetividade das políticas públicas. A existência do Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI), do Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra (CODENE) e do Conselho Estadual do Povo de Terreiro (CPTERGS) é a prova de que o sistema de conselhos é um mecanismo válido e necessário para garantir que grupos historicamente marginalizados participem ativamente da construção das ações que lhes dizem respeito.
Eles articulam a sociedade civil organizada com o governo estadual, planejando, propondo e fiscalizando políticas. Sua existência confere visibilidade, legitimidade e força política às causas que representam. A pergunta que se impõe, então, é: por que os povos ciganos, que compartilham uma história de exclusão e possuem especificidades culturais igualmente marcantes, ainda não possuem seu próprio conselho? Diante deste cenário, esta pergunta ecoa de forma incômoda: onde está o Conselho Estadual dos Povos Ciganos, Poder Executivo?
Esta não é uma questão teórica. Em 2022, quando ocupei a cadeira de Diretor Estadual de Direitos Humanos (de Jan/2022 à Jan/2023), protocolei um processo administrativo (nº 22210000038776 - 15/12/2022) que encaminhava os procedimentos oficiais para a criação do Conselho. O processo tramitou, mas, por absoluta falta de vontade política e despreparo daquele e do atual governo estadual, não houve iniciativa efetiva. O processo foi arquivado em 19/05/2025. A burocracia venceu a vontade política.
A ausência deste conselho não é uma mera lacuna administrativa. É uma violência simbólica e prática. Enquanto não houver um espaço institucional, permanente e com poder deliberativo, a voz cigana continuará fragmentada, ocasional e, muitas vezes, ignorada nas esferas de poder. A criação deste conselho não é um favor, mas uma necessidade urgente, e os argumentos são mais do que evidentes.
O Combate à Invisibilidade e ao Preconceito Estrutural: O povo cigano é, historicamente, um dos mais estereotipados e invisibilizados do mundo. Sua imagem no imaginário popular ainda é refém de narrativas exotificadas, folclóricas ou criminosas. Sem um conselho, não há uma voz oficial e coletiva que possa desconstruir esses estereótipos perante a mídia, as escolas e as próprias instituições do Estado. Um conselho poderia formular campanhas educativas, orientar a abordagem policial – que muitas vezes é discriminatória – e garantir que os ciganos sejam vistos como o que são: um povo com cultura, história e direitos.
O Acesso a Direitos Básicos com Identidade: Como garantir o acesso à saúde para um povo que, em muitos casos, é itinerante (nômade) ou seminômade? Como matricular crianças em escolas sem que a língua, a cultura e o modo de vida cigano sejam desrespeitados? Como acessar programas de moradia sem que isso signifique a destruição de seu modo de organização social e familiar? Essas perguntas não têm respostas genéricas. Elas exigem que os próprios ciganos sentem à mesa e digam: "Para nós, a saúde precisa ser assim"; "Nossas crianças aprendem desta forma"; "Nossas moradias devem respeitar nossos laços comunitários". Um conselho seria uma instância legítima para construir essas políticas de forma colaborativa, e não de cima para baixo.
A Preservação Cultural como Direito Humano: A cultura cigana é um patrimônio imaterial da humanidade, com sua língua (o romani), suas leis não escritas, sua música, sua dança e sua rica tradição oral. Essa cultura está sob constante ameaça de assimilação e erosão. Um conselho estadual seria um agente ativo na preservação e promoção desta cultura, fomentando projetos específicos, protegendo locais sagrados e de acampamento, e assegurando que as novas gerações possam se orgulhar de sua herança.
A Regularização Fundiária e o Direito à Cidade: Um dos dramas mais concretos dos povos ciganos no RS é a questão da terra. Seja para acampamentos temporários ou para territórios mais permanentes, a falta de regularização os coloca em constante situação de vulnerabilidade e conflito, sujeitos a despejos sumários e à criminalização de sua simples existência em um espaço. O conselho teria a atribuição fundamental de pautar e assessorar o governo na mediação desses conflitos e na busca por soluções fundiárias que respeitem seu modo de vida. Assim como o CEPI faz para os povos originários do RS.
A Representatividade Política Autêntica: Sem um conselho, a representação cigana fica à mercê de "porta-vozes" nem sempre legitimados pela comunidade ou de interlocutores esporádicos. O conselho assegura uma representação democrática, com eleições e participação das diferentes etnias (Sinti, Calon, Rom etc.), garantindo que as decisões reflitam, de fato, a vontade coletiva do povo.
A criação do Conselho Estadual dos Povos Ciganos do Rio Grande do Sul é, portanto, mais do que a abertura de mais um espaço de discussão. É um ato de reparação histórica. É o reconhecimento oficial de que o povo cigano é um ator fundamental na construção da identidade gaúcha. É a materialização do princípio de que uma sociedade só é verdadeiramente democrática quando todas as suas vozes têm lugar e vez.
A criação de um Conselho Estadual dos Povos Ciganos do RS teria um impacto transformador, ao:
Garantir Representatividade Legítima: Seria o fórum oficial para que as lideranças legitimamente reconhecidas pelas comunidades Rom, Calon e Sinti do estado pudessem dialogar diretamente com o governo, superando o problema da 'fala em nome de', como bem aponta a ativista cigana Moonen, que denuncia a usurpação da voz autêntica das comunidades.
Elaborar Políticas Públicas Específicas: O conselho seria protagonista na formulação de políticas estaduais nas áreas de saúde, educação, cultura, habitação e direitos humanos, desenhadas sob medida para a realidade cigana, e não adaptadas de forma genérica.
Fiscalizar e Monitorar: Acompanharia a execução orçamentária e a implementação das políticas, cobrando resultados e transparência do poder executivo.
Combater a Invisibilidade: A própria existência do conselho seria um ato político de reconhecimento e visibilidade, enviando uma mensagem clara à sociedade gaúcha de que os ciganos são cidadãos com direitos e um lugar garantido na mesa de decisões.
Combater a discriminação: Campanhas educativas e punição efetiva de casos de racismo.
Produzir Conhecimento e Dados: Poderia fomentar e orientar pesquisas e o mapeamento das comunidades no estado, combatendo a subnotificação que hoje impede qualquer planejamento sério.
É claro que a criação do conselho não é uma bala de prata. Desafios como a articulação entre os diferentes grupos étnicos (Rom, Calon, Sinti) e a garantia de que as lideranças sejam efetivamente representativas precisarão ser enfrentados. No entanto, a existência do conselho é justamente o espaço institucional ideal para que essas questões sejam debatidas e resolvidas pelos próprios ciganos, de forma autônoma e organizada.
A composição paritária (com igual número de representantes do governo e da sociedade civil) e a garantia de recursos para seu funcionamento são condições essenciais para que não se torne um órgão meramente decorativo.
A instituição do Conselho Estadual dos Povos Ciganos do Rio Grande do Sul é mais do que uma demanda burocrática; é uma questão de justiça histórica e de efetivação da cidadania. É a materialização do princípio constitucional do pluralismo e da Convenção 169 da OIT, que garante a esses povos o direito de definir suas próprias prioridades.
É o instrumento prático para começar a reverter cinco séculos de invisibilidade. É dar aos povos ciganos do RS a voz e o lugar que sempre lhes foram negados, permitindo que eles próprios sejam os arquitetos de seu destino dentro do estado, em condições de igualdade e com o respeito que sua cultura milenar merece. A hora desse conselho é agora.
Não se trata de criar privilégios, mas de corrigir uma desvantagem histórica. Trata-se de garantir que, ao lado dos conselhos já existentes, a voz do povo cigano ecoe com a mesma força e legitimidade, contribuindo para a construção de um Rio Grande do Sul justo, plural e, de fato, para todos.
O momento de transformar essa urgência em realidade é agora. É uma questão de dignidade, de justiça e de cumprimento da lei. O povo cigano esperou séculos por esse reconhecimento. Que o Rio Grande do Sul não faça com que eles esperem mais e assim possamos trilhar caminhos que não nos levem para as trevas.
Entre a Lei e a Invisibilidade
José Augusto Zaniratti 27/10/2025
Os povos ciganos no Brasil travam uma batalha dupla: contra a discriminação secular e contra a invisibilidade perante o Estado. Apesar de um marco legal robusto – que vai da Constituição Federal a decretos e convenções internacionais – que teoricamente garante seus direitos, há um abismo profundo entre a letra da lei e a realidade vivida por essas comunidades. Muitos desafios são enfrentados por Rom, Calon e Sinti no acesso a direitos básicos, o arcabouço jurídico existente para protegê-los e as razões pelas quais a efetivação desses direitos ainda é uma meta distante.
Do ponto de vista do marco legal, se pode sintetizar em três níveis:
A Convenção 169 da OIT (1989) é o instrumento mais importante. Ela estabelece que os governos devem consultar os povos tribais (categoria que inclui os ciganos) sempre que medidas legislativas ou administrativas os afetem, garantindo-lhes participação e o direito de definir suas próprias prioridades de desenvolvimento. A Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007) também tem aplicação análoga aos ciganos, reforçando o direito ao consentimento livre, prévio e informado.
A Constituição Brasileira de 1988 é a pedra angular, assegurando a igualdade, o pluralismo cultural e a proteção às manifestações de todos os grupos formadores da sociedade brasileira. O Decreto nº 6.040/2007 institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), explicitamente incluindo os ciganos e estabelecendo princípios como o respeito à diversidade e a não-reforço de desigualdades. O Projeto de Lei do Estatuto dos Povos Ciganos (PLS 248/2015), em tramitação desde 2015, aguardando audiência pública desde julho de 2025, é uma tentativa de criar uma legislação específica, prevendo ações afirmativas e combate à discriminação.
Os Programas Nacionais de Direitos Humanos (PNDH) e Conferências Nacionais de Promoção da Igualdade Racial (CONAPIR) têm, paulatinamente, incluído resoluções sobre povos ciganos, embora de forma ainda incipiente e genérica.
Apesar deste arcabouço, a realidade é marcada por desafios concretos:
Invisibilidade Estatística e Subnotificação: Os dados são precários. O IBGE estima cerca de 500 mil a 1 milhão de ciganos no Brasil, mas o Cadastro Único no RS, por exemplo, identificou apenas 296 famílias em situação de vulnerabilidade em 2022. Essa subnotificação é um ciclo vicioso: o Estado não formula políticas específicas porque não vê a população, e a população não se cadastra por desconfiança histórica e medo de discriminação. Sem dados precisos, é impossível planejar políticas públicas eficazes.
Acesso à Saúde: O medo de represálias e a falta de sensibilidade cultural são barreiras enormes. Profissionais de saúde muitas vezes não estão preparados para lidar com questões específicas, e há relatos de discriminação em postos de saúde e hospitais. O Ministério da Saúde tentou enfrentar isso com a publicação de um "Guia orientador para a atenção integral à saúde do povo cigano" (2022), mas sua disseminação e aplicação ainda são um desafio.
Acesso à Educação: Crianças ciganas frequentemente enfrentam bullying e preconceito na escola. O currículo escolar ignora completamente a história e a cultura cigana, contribuindo para a perpetuação de estereótipos. A resolução da II CONAPIR que previa a inclusão dessa história nos currículos não saiu do papel. Além disso, famílias itinerantes encontram grande dificuldade para matricular seus filhos de forma temporária em diferentes escolas ao longo do ano.
Para os ciganos que mantêm o nomadismo como estilo de vida, o século XXI apresenta desafios complexos. A crescente urbanização e o controle de fronteiras dificultam a livre circulação, essencial para suas atividades tradicionais, como o comércio e o artesanato itinerante. Legislações restritivas em relação ao estacionamento de trailers e à instalação de acampamentos também impactam diretamente sua forma de vida. A dificuldade de acesso a serviços básicos, como saúde e educação, para crianças e adultos nômades é outra barreira a ser superada.
Discriminação e Estereótipos: O preconceito é o maior obstáculo. Estereótipos negativos que associam ciganos à delinquência, trapaça e feitiçaria ainda são muito presentes na mídia e no imaginário popular. O racismo antígeno, ou seja, o preconceito específico contra ciganos, se manifesta em estereótipos negativos, discursos de ódio e práticas discriminatórias em diversas esferas da sociedade. Isso se reflete na dificuldade de acesso ao emprego formal, na habitação e no simples direito de circular em espaços públicos sem ser alvo de suspeitas. Dados estatísticos revelam disparidades no acesso à educação, emprego e saúde. Um estudo do IPEA (2021), por exemplo, mostrou que a taxa de analfabetismo entre ciganos é significativamente maior do que a média nacional. No mercado de trabalho, enfrentam preconceito e dificuldades em conseguir empregos formais.
Questão Fundiária e Habitação: Comunidades que vivem em acampamentos fixos muitas vezes enfrentam a insegurança da posse da terra, sujeitas a reintegrações de posse e à falta de infraestrutura básica como água, luz e saneamento.
Identidade Espiritual versus Identidade Étnica: É importante distinguir a prática religiosa da identidade cultural. Nas religiões de matriz africana, é comum a incorporação de entidades ciganas, o que é uma experiência espiritual válida dentro desse contexto. No entanto, a identidade cigana não é definida por uma incorporação, mas por uma ancestralidade compartilhada, uma cultura secular, uma língua própria e um modo de vida comunitário específico. Ser cigano é pertencer a um povo; é a vivência da cultura cigana e, diferentemente disto, incorporar uma entidade cigana é uma manifestação de fé e isso não é indicativo para considerar-se de uma etnia cigana.
Como demonstrou a pesquisadora e mestre Nathalie Fernandes M. F. Moonen, O Povo Cigano nas Conferências Nacionais: uma análise de sua (in)visibilidade nos espaços de participação social no Brasil, 2011), a presença de propostas para povos ciganos foi ínfima nos PNDHs e nas CONAPIRs. Quando aparecem, são genéricas e frequentemente agrupadas com outras minorias, diluindo suas especificidades. Essa é a materialização da invisibilidade: a ausência de um olhar específico do Estado para formular e executar políticas que atendam às necessidades únicas desses povos. Em estudos posteriores, a autora ainda salienta que um desafio particular nessa luta por visibilidade é a complexa questão da legitimidade da representação (MOONEN, 2017), questionando quem tem voz e autoridade para retratar e defender os interesses dessas comunidades.
Em espaços de discussão de políticas públicas, nem sempre estão presentes representantes legitimamente escolhidos pelas comunidades. Às vezes, não-ciganos assumem a frente dos debates, ou surgem lideranças que não são reconhecidas por suas próprias comunidades. Isso enfraquece a luta e expõe mais uma camada de complexidade: para que a consulta prevista na Convenção 169 da OIT seja efetiva, é necessário que o Estado estabeleça canais de diálogo com instituições representativas reconhecidas internamente, indo além do simples critério da autoidentificação.
Os direitos dos povos ciganos estão, em sua maioria, garantidos no papel. O desafio colossal é fazê-los valer na prática. Isso exige uma mudança de postura do Estado, que deve passar de um ente que apenas reconhece genericamente para um que atua de forma específica. Ao agir, em seu papel fundamental -“Estado para quem dele precisa”, então começaremos a saldar a dívida histórica e a transformar o princípio constitucional da igualdade em uma realidade tangível para os povos ciganos e assim deixar as trevas da invisibilidade.
Substituir Generalizações pelo Desejo de Conhecer
José Augusto Zaniratti 20/10/2025
Viver no Brasil é experimentar a riqueza das diferenças. Em cada região deste país-continente, percebemos culturas distintas, fruto de etnias diversas que, ao conviverem, dialogam — ou, por vezes, discriminam — comportamentos, práticas culinárias, formas de trabalho e construções sociais e culturais. Até dentro de um mesmo estado federativo, encontramos contrastes que encantam e nos desafiam. Para compreender verdadeiramente essas etnias, é preciso mergulhar na história de cada grupo e beber da sabedoria que as manteve vivas até os dias de hoje.
Assim como um mosaico é composto por peças únicas que formam uma imagem maior, a palavra "cigano" reúne povos distintos, cada um com histórias e tradições que merecem ser conhecidas em sua singularidade. No Brasil, Rom, Calon e Sinti tecem, há séculos, fios culturais que enriquecem nosso patrimônio humano – não como meros coadjuvantes, mas como protagonistas de uma resistência silenciosa e vibrante.
Os Rom carregam consigo não apenas a ancestralidade do norte da Índia, mas também a dor de diásporas forçadas – da escravidão nos Bálcãs ao holocausto cigano chamado por eles de Porrajmos ou Samudaripen. É assim que se referem ao genocídio sofrido por sua população durante o regime nazista na Segunda Guerra Mundial. Outra mancha da história da humanidade que o nazismo gerou. Sua língua, o romanês (ou “romani”), é um tesouro linguístico que preserva raízes indo-arianas mescladas a influências gregas e eslavas. Os Rom são guardiões da língua e da memória.
Mas os Rom não são apenas história: são o presente. Sua organização em clãs como Kalderash (mestres na metalurgia) e Lovara (criadores de cavalos) revela uma sociedade que valoriza o ofício e a hierarquia familiar. Seus festivais, onde a dança feminina descalça e as joias elaboradas simbolizam liberdade e força, são expressões de uma cultura que se renova sem perder suas raízes.
Enquanto os Rom chegavam ao Brasil em levas recentes, os Calon já pisavam em solo brasileiro desde 1574, quando João Torres e sua família foram degredados pelo “crime de serem ciganos”. Trata-se de uma etnia que, embora presente em diversas partes do planeta, possivelmente se forjou entre Portugal e Espanha antes de germinar aqui.
Sua língua, o caló, é um testemunho vivo dessa fusão: um crioulo que emprestou ao português brasileiro palavras como "chalar" (falar) e "gadji" (não-cigano). Suas festas de santo, diálogo cultural entre o catolicismo e espiritualidades próprias, e os casamentos que duram dias, mostram como souberam dialogar com a cultura local sem abrir mão de sua essência. E não podemos esquecer: foram famílias Calon que popularizaram o circo no Brasil, levando alegria e sonho a cidades interioranas.
Os Sinti chegaram ao Sul do Brasil trazendo na bagagem não apenas histórias de perseguição na Europa Central, mas também uma sensibilidade artística refinada. Seu dialeto sinti-manouche, variação do romanês, guarda influências do alemão e do francês – eco de séculos de itinerância.
Mas sua maior contribuição talvez esteja na música: o jazz manouche, imortalizado por Django Reinhardt, encontra no Brasil herdeiros que mesclam violinos, acordeões e violões em melodias que falam de saudade e liberdade. Sua ourivesaria delicada e o cultivo de tradições familiares fechadas mostram como é possível preservar a identidade mesmo em contextos urbanos.
Se as culturas Rom, Calon e Sinti persistem, é porque gerações de mulheres insistem em contar suas histórias. São elas, pilares destas etnias, que ensinam às crianças as línguas ancestrais, preparam comidas tradicionais, costumes, as histórias e os valores para as novas gerações, mantêm vivos rituais que a sociedade majoritária desconhece. Mas não são apenas guardiãs do passado:
Sônia Barbosa, artista plástica, é um exemplo de mulher cigana que utiliza sua arte para expressar sua identidade, luta, transformando telas em manifestos contra o preconceito;
Hedda Kalvach, usa a escrita para dar voz a seu povo, na defesa dos direitos dos ciganos no Brasil;
Rosecler Winter da etnia Sinti, une o ativismo local e nacional à defesa de povos tradicionais. Mora em São Leopoldo - RS, é um outro exemplo de mulher ativista, reconhecida nacionalmente, militante pelos direitos de todos os povos, ciganos, ou não, que atua em diversas instâncias de representação de povos e comunidades tradicionais.
A influência cigana permeia o cotidiano brasileiro de formas que nem percebemos:
Na culinária, técnicas de preparo de carnes e vísceras (como sarapatel e dobradinha) foram aperfeiçoadas por comunidades ciganas;
No artesanato, mestres como Juarez de Souza, da etnia Sinti, transformam madeira em esculturas que dialogam com a natureza;
Na relação com o meio ambiente, comunidades Rom no Sertão da Paraíba desenvolvem agricultura familiar sustentável, mostrando que tradição e preservação podem caminhar juntas.
Conhecer Rom, Calon e Sinti em suas particularidades é mais que um exercício de curiosidade – é um ato de reparação. É entender que o "povo cigano" não existe: existem **povos ciganos**, com línguas, histórias e contribuições únicas. É necessário ter um olhar que enxergue e defenda a pluralidade.
Num país que se orgulha de sua diversidade, precisamos ir além da tolerância: é preciso celebrar ativamente essas presenças que há cinco séculos ajudam a construir o Brasil. Suas músicas, línguas e saberes não são relíquias do passado, mas sementes para um futuro mais plural – desde que aprendamos a ouvi-los em suas muitas vozes.
O caminho contra a intolerância começa quando substituímos generalizações pelo desejo de conhecer. E nisso, o Brasil ainda tem muito por descobrir. Conhecer e respeitar as distinções entre Rom, Calon e Sinti é um ato de justiça cultural. É recusar-se a vê-los como um bloco monolítico e reconhecer a complexidade de cada um desses povos. O Brasil, com sua formação multicultural, é imensamente mais rico por suas presenças. Suas línguas, músicas, festas e modos de vida são patrimônios culturais intangíveis que precisam ser valorizados, não como folclore, mas como expressões vivas e dinâmicas.
Denunciar toda e qualquer forma de intolerância é nosso dever de cidadão. É assim que iluminamos o caminho, afastando-o das trevas do preconceito e rumando a um futuro verdadeiramente inclusivo.
Uma Jornada de Séculos até o Brasil
José Augusto Zaniratti 13/10/2025
A história dos povos ciganos é uma narrativa épica de diáspora, resiliência e luta por identidade. Contrariando a percepção comum de que são "estrangeiros" ou "nômades sem origem", os ciganos possuem uma história profundamente enraizada, que remonta a mais de um milênio. Sua chegada ao Brasil data desde o século XVI, os coloca como participantes fundamentais, ainda que invisibilizados, da formação do tecido social brasileiro. A jornada histórica desses povos inicia há séculos, desde suas origens na Índia até os dias atuais no Brasil, explorando as razões de sua migração, a construção de estereótipos e sua longa, porém pouco reconhecida, presença na história nacional.
A teoria mais aceita e consolidada pela linguística e estudos históricos aponta que os povos Rom (termo étnico que engloba os grupos conhecidos como ciganos) originaram-se no norte do subcontinente indiano, por volta dos séculos IX e X. Eram, muito provavelmente, integrantes de castas militares ou grupos sociais específicos que, pressionados por uma série de invasões islâmicas lideradas pelo Sultanato de Ghazni, iniciaram um movimento migratório massivo em direção ao oeste.
Essa grande diáspora os levou inicialmente à Pérsia (atual Irã), onde permaneceram por algum tempo, assimilando elementos culturais e linguísticos. Dali, seguiram rotas diversificadas: ao longo da diáspora, surgiram subgrupos como Lom (Cáucaso - entre o Mar Negro e o Mar Cáspio, hoje Geórgia, Armênia e Azerbaijão), Dom (Oriente Médio) e Rom (Europa), cada um com trajetórias e adaptações culturais distintas.
Foi na Europa, a partir do século XIV, que a identidade coletiva desses povos começou a ser forjada sob um nome equivocado: "cigano". Ao entrarem no continente pelos Bálcãs, apresentavam traços físicos, vestimentas e costumes distintos dos europeus. Para explicar sua origem, circulou a lenda de que eram peregrinos cristãos do "Pequeno Egito" (uma região no Peloponeso grego), em penitência por terem negado abrigo à Sagrada Família.
Essa narrativa, embora fictícia, deu origem à designação étnica que persiste em várias línguas: "Gypsy" (em inglês, de "Egyptian"), "Gitan" (em francês), "Gitano" (em espanhol) e "Cigano" (em português). É crucial entender que este termo é um exônimo – um nome dado por outros – e carrega consigo séculos de estigmatização. Internamente, os grupos se autodenominam Rom (que significa "homem" ou "marido" em romanês), Sinti, Calon, Manouche, entre outros.
Ao longo da diáspora para diferentes regiões, esses povos assimilaram elementos culturais locais, o que contribuiu para a formação de identidades distintas. Os Lom (na Armênia), os Dom (principalmente no Oriente Médio), os Sinti (na Europa Central) e os Calon (na Península Ibérica e no Brasil) são exemplos dessas etnias. Apesar das diferenças, todos compartilham uma origem comum e fazem parte do grande grupo étnico dos Romani (ou Rom), popularmente conhecidos como ciganos.
A vida na Europa medieval e moderna foi marcada por uma dualidade perversa: fascínio e repulsa. Por um lado, eram valorizados como ferreiros, comerciantes de cavalos, artistas e adivinhos. Por outro, foram alvo de decretos de expulsão, escravização, como no território da Romênia, onde foram mantidos em regime de escravidão por cerca de cinco séculos. Sofreram perseguições e leis que criminalizavam seu modo de vida nômade. Esse histórico de perseguição é uma chave fundamental para compreender a desconfiança que muitos ciganos ainda nutrem em relação às estruturas estatais.
Os ciganos chegaram ao Brasil não como imigrantes voluntários, mas muitas vezes degredados pela Coroa Portuguesa. O primeiro registro data de 1574, quando João Torres, sua mulher e filhos foram enviados para o Brasil pelo crime de "serem ciganos". Portugal, desde o século XVI, tinha uma política de intolerância oficial contra esses povos, buscando assimilá-los à força ou excluí-los do território metropolitano. O degredo para a colônia brasileira era uma solução frequente. É importante lembrar que Portugal, em processo de consolidação nacional e influenciado por ideais de homogeneização cultural, via os ciganos como um grupo indesejado, levando a políticas de assimilação forçada ou expulsão.
No Brasil, desembarcaram na Bahia, a primeira capital colonial. De Salvador, dispersaram-se, com um fluxo significativo migrando para as Minas Gerais, atraídos pela febre do ouro no século XVIII, onde atuaram como ourives, tropeiros e comerciantes. Outros fluxos seguiram para o sul e interior do país. Ao contrário do imaginário popular, nem todos mantinham um estilo de vida nômade; muitos se estabeleceram em vilas e cidades, exercendo ofícios específicos, embora sempre à margem do reconhecimento social.
Os documentos destacam a presença de três grandes grupos étnicos no Brasil, cada um com sua própria história migratória:
Rom (ou Romani): Chegaram ao Brasil em levas mais recentes, principalmente a partir do final do século XIX e início do século XX, fugindo das perseguições e do genocídio (o “Porrajmos”, que vitimou entre 250.000 e 500.000 ciganos durante o Holocausto nazista) na Europa. São predominantemente de linhagem Kalderash (ferreiros) e Rudari (trabalhadores com madeira).
Calon (ou Calé): Foram o principal grupo degredado de Portugal. Sua origem está profundamente ligada à Península Ibérica, onde desenvolveram sua língua própria, o caló (uma mistura de romanês ibérico com espanhol e português). São historicamente associados às artes circenses, comércio e adivinhação.
Sinti (ou Manouche): Tanto os Sinti quanto os Manouche são subgrupos do grande tronco étnico Romani que compartilham uma origem comum no norte do subcontinente indiano e uma história de migração para a Europa. Os termos usados são de autodenominação dos povos de acordo com as diferenças geográficas e linguísticas da região em que viviam. Por exemplo, “Sinti” é o termo preferencial e de autodenominação usado pelo grupo na Alemanha, Áustria, norte da Itália e em partes dos Países Baixos. A palavra "Sinti" provavelmente deriva de "Sindh", uma região que hoje faz parte do Paquistão e é um dos possíveis locais de origem da migração inicial. Os Manouche (ou Manouches): é o termo preferencial e de autodenominação usado principalmente na França, Bélgica e em partes da Suíça. "Manouche" é uma palavra que vem do romanês (a língua romaní) e significa simplesmente "pessoa" ou "ser humano". Chegaram em sua maioria da Alemanha e França, também em períodos mais recentes. No Brasil, muitos chegaram a partir do século XIX.
Um dos estereótipos mais persistentes é o do "cigano nômade por natureza". Muito provavelmente, considerando a história do povo cigano, o nomadismo foi, em grande medida, uma estratégia de sobrevivência incorporada em resposta a políticas de expulsão e perseguição. Ser itinerante era uma forma de escapar da assimilação forçada, da escravidão e da violência.
Nas últimas décadas, esse panorama mudou drasticamente. Estima-se que apenas entre 10% e 15% das comunidades ciganas no Brasil ainda mantenham um estilo de vida itinerante. A grande maioria vive em residências fixas, acampamentos permanentes ou pequenas comunidades. O termo mais adequado, portanto, seria "itinerante" ou "viajante", referindo-se àqueles que, possuindo uma base fixa, realizam viagens sazonais por rotas pré-determinadas para atividades comerciais ou culturais.
A história dos povos ciganos no Brasil é, portanto, uma história de resistência silenciosa. É uma trajetória que começa no degredo e na exclusão e percorre cinco séculos de luta para manter viva uma cultura rica e diversa, frente a um Estado que historicamente ignorou ou reprimiu. Reconhecer essa história é o primeiro passo para saldar a "dívida histórica" da qual fala Mirian Stanescon Batuli e para entender que, longe de serem estrangeiros, os ciganos são fundadores da nação brasileira, merecedores de visibilidade, respeito e pleno exercício de seus direitos.
O reconhecimento formal pelo Estado brasileiro ocorreu indiretamente em 2007, com o Decreto Federal nº 6.040, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT). A inclusão dos ciganos na definição de povos tradicionais representou um marco legal para a garantia de seus direitos.
Neste decreto, o reconhecimento dos ciganos está na definição de Povos e Comunidades Tradicionais: "grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição."
A discriminação e os estereótipos contra os ciganos, frequentemente reproduzidos no cotidiano e até mesmo em registros policiais, são uma chaga inegável em nossa sociedade que, se não mudar, continuará no caminho das trevas. Para desconstruir estes e outros preconceitos, tornam-se urgentes políticas públicas articuladas em âmbito nacional e regional. Esta é a rota indispensável para afastarmos a sociedade brasileira da intolerância e rumarmos em direção a um futuro verdadeiramente inclusivo.
Quanto vale a Arte?
José Augusto Zaniratti 06/10/2025
A arte é muito curiosa. Confesso que não sou um crítico de arte, nem um erudito capaz de dissecar movimentos ou técnicas com vocabulário especializado. Sou, na essência, um humano desprovido desse veio, navegando na simplicidade de alguém comum, que sente antes de entender. E talvez seja justamente nesse sentir, nesse território bruto e não cartografado pela razão, que resida a resposta para a pergunta que sempre me assombra: quanto vale, afinal, a arte?
Vivemos em um mundo que aprendeu a colocar preço em tudo, a transformar o intangível em “commodity”. Há, é claro, aqueles que dizem fazer arte para os consumidores. Nessa lógica perversa, quanto mais consumidores uma arte atrai, mais "valorizada" ela se torna e, consequentemente, mais cara. Um livro, que é também uma forma de arte, um universo inteiro entre capas, é coroado com o título de "best-seller" após atingir um número mágico de exemplares vendidos. Mas quantas dessas obras, repletas de fórmulas de sucesso, conseguem, de fato, ecoar na alma do leitor muito depois que a última página é virada? O sucesso quantitativo não é sinônimo de ressonância qualitativa. É a diferença entre um furacão, que é intenso e passageiro, e a mudança lenta das placas tectônicas, que redefine continentes inteiros de um ser.
Nunca consegui decifrar completamente o mercado das artes plásticas. Não me refiro aos quadros enigmáticos, cujas mensagens são deliberadamente cifradas, mas à fria equação que rege seu valor. Por que razões um quadro, uma escultura, ganha valor astronômico apenas depois que o artista morre? Dizem que é a raridade. Mas eis a grande contradição: nenhum artista verdadeiro, aquele que verte suor, sangue e sonho em sua obra, consegue gerar uma peça absolutamente idêntica à outra. Cada pincelada é filha de um momento único, de um estado de espírito irrepetível. Cada golpe de cinzel na pedra é uma decisão tomada sob a luz de um dia que nunca mais se repetirá. Portanto, toda obra de arte é rara por ser única, um fragmento congelado da alma de seu criador. O valor póstumo é um tributo macabro, um reconhecimento tardio de uma genialidade que a sociedade não soube enxergar enquanto pulsava.
Enquanto isso, nos ateliês humildes e nas feiras de rua, os verdadeiros alquimistas modernos, os artesãos e artistas plásticos, labutam. Eles pegam materiais brutos e inertes – barro, madeira, metais, tintas – e lhes transferem vida, história e beleza. Suas mãos não apenas moldam formas, mas canalizam emoções. No entanto, quantos deles sequer conseguem um espaço digno para expor suas obras? São invisíveis para um sistema que só enxerga através das lentes do retorno financeiro imediato. Sua arte, carregada de autenticidade, é soterrada pelo ruído do comércio.
O teatro, essa arte ancestral e coletiva de imenso valor educativo e reflexivo, tem seu mérito reduzido a planilhas. O sucesso de uma peça é quantificado no número de sessões lotadas e na quantidade de adaptações que sofreu. Mas e o valor do silêncio absoluto que precede o aplauso? O valor daquele diálogo que, como uma flecha, atinge o peito de um espectador e o obriga a encarar uma verdade incômoda sobre si mesmo? O que vale a lágrima furtiva escorrendo no escuro do auditório? Isso não entra nas estatísticas.
O cinema segue caminho semelhante. Seu valor é coroado por premiações, e só então assume ares de grande sucesso popular. É como se a população, desnorteada pela falta de repertório próprio, ficasse curiosa não pelo tema, pela narrativa ou pela estética, mas pelo selo de qualidade concedido por um painel de jurados. O prêmio torna-se um atestado de "consumibilidade", e não um convite à experiência.
E a música? Ah, a música... Qual o tipo de música que gostas? Tu sabes, mas não explicas. É um conhecimento visceral. É da melodia que te arrasta para uma memória de infância, ou da letra que verbaliza uma dor que tu julgavas indizível? É porque move algo íntimo, algo que te obriga a sorrir sem motivo, a chorar sem aviso, a lembrar de um rosto, um cheiro, um verão, mesmo que seja cantada em uma língua que ignoras. A música é a arte mais democrática, que foi popularizada ao extremo com a chegada da internet – ainda bem. Ela nos alcança em nossos fones de ouvido, no carro, na sala de estar. Transforma momentos ordinários em pequenas epifanias. No entanto, mesmo ela é capturada pela lógica quantitativa: são os números de “streams", de visualizações e de cópias vendidas que geram "relevância" e ditam quem merece ser ouvido. O “hit” do momento vale mais do que a canção que salva uma vida em seu momento mais sombrio.
E onde fica a dança nesse cenário? A dança, a arte do movimento puro, da narrativa corporal. Ela é a tradução mais visceral do que é estar vivo em um corpo. O dançarino, assim como o pintor ou o escultor, é um criador. Seu material bruto é o próprio corpo, e ele o transforma em um instrumento de emoção. Através de um salto, exprime liberdade; num tremor, medo; num abraço coreografado, amor ou solidão. E ninguém percebe o sacrifício do dançarino diante de moldar o corpo ou deformações geradas pela repetição de movimentos.
O coreógrafo entrelaça esses corpos em histórias sem palavras, que falam diretamente ao nosso sistema límbico, à nossa memória ancestral. Qual o valor de uma performance de dança? É o número de ingressos vendidos? A temporada em um teatro famoso? Não. Seu valor está no suspiro coletivo da plateia, naquele instante de suspensão em que o tempo pára, e um movimento perfeito nos lembra da beleza e do tormento de ter um corpo. É o impacto que permanece, uma sensação física que nos acompanha ao sair do teatro, uma vontade súbita de nos movermos com mais graça ou intenção. É política quando um corpo oprimido dança sua resistência, quando quebra padrões estéticos e narra, com suor e respiração ofegante, a história de seu povo.
Todos esses critérios de valor – vendas, prêmios, visualizações – são criações de uma sociedade de consumo obcecada, cuja única métrica de sucesso é o lucro. É um sistema que tenta domesticar o indomável, colocar a fera da criação em uma gaiola de números.
Então, qual a verdadeira importância de cada ação artística? Ela não está no exterior, no barulho do mercado. Está no impacto emocional, silencioso e profundo, que causa em cada pessoa. É uma moeda de troca íntima e única entre a obra e o coração de quem a consome. Mas podemos ir ainda mais longe: a arte, de fato, tem sua importância primordial no que ela causa no próprio criador.
Quem a cria, seja pintando, esculpindo, atuando, compondo ou dançando, vê nela um espelho de suas próprias emoções. O ato criativo é um mergulho nas profundezas do ser, um revolver de lembranças, desejos, traumas e alegrias. É um processo de externalização do que é mais íntimo. É aí que reside seu valor terapêutico, sagrado. A arte obriga o artista a refletir, a ressignificar seus sentimentos e a questionar suas antigas verdades. Para o artista, não há dogmas, apenas verdades pessoais que são como flechas curativas em seu interior. O simples ato de criar já é, em si, um ato de cura, de busca por sentido, de melhoria de sua própria humanidade. O produto final é apenas o vestígio dessa jornada heroica.
E é justamente essa potência transformadora, tanto para quem faz quanto para quem vê ou sente, que nos leva a outra propriedade inerente e inegável da arte: TODA ARTE É POLÍTICA. E aqui é crucial entender: não se trata de ser partidária, de fazer campanha para este ou aquele candidato. A arte é política porque é um poderoso agente de evocação de emoções humanas. Ela afirma, nega, celebra ou critica ações, valores e estruturas que estão impregnadas em nossa cultura. Ela molda a forma como vemos o mundo e como nos relacionamos com o outro. E isso é a política em sua essência mais pura.
Se isso não fosse verdade, por que razão, quando um ditador assume o poder, uma de suas primeiras e mais cruéis ações é instituir a censura sobre todos os tipos de arte? E, num ato ainda mais perverso, usá-la como propaganda da ditadura implantada, como o cinema foi usado no Brasil durante o regime militar? O opressor teme a arte porque sabe que ela é uma semente de questionamento. Ele a cala quando ela é crítica, e a corrompe quando a transforma em panfleto do regime.
Ao mostrar o período da ditadura no Brasil, por exemplo, seja pelo cinema cru de um documentário, pela fotografia que congela o horror, pela pintura que distorce a realidade para revelar sua verdade mais crua, pelo teatro que coloca o espectador no lugar do torturado, ou pela dança que representa com corpos contorcidos a repressão, a arte faz crítica e, mais importante, revela. Ela é um farol que joga luz sobre uma realidade que novas gerações, por vezes, ignoram ou desconhecem. O impacto emocional de uma obra sobre aquele período sombrio – o nó na garganta, a raiva, a empatia – é o que molda a consciência política e as ações de cidadania no futuro. Uma pessoa comovida por uma obra de arte é uma pessoa mais difícil de ser manipulada.
Quando dizemos, portanto, que a arte é neutra, que é apenas entretenimento ou decoração, estamos, sim, pavimentando o caminho das trevas. Estamos desarmando a sua arma mais poderosa: a capacidade de comover, perturbar e transformar. O valor da arte, portanto, é imensurável. É o valor de uma lágrima, de um arrepio, de uma memória reavivada, de uma verdade enfrentada, de uma alma curada e de um povo que se recusa a esquecer. É um valor que não cabe em nenhum cofre, mas que habita, eternamente, no coração da humanidade.
Fazer o Bem ou Desistir: A Resistência Cotidiana em Tempos de Privilégio
José Augusto Zaniratti 29/09/2025
Fazer o bem ao outro não é uma sugestão; é um alicerce da humanidade. É um princípio inegociável, tão fundamental quanto respirar. Ninguém, em sã consciência, se declara contra. A ação de estender a mão, de aliviar um fardo, de buscar justiça – envolve o outro, qualquer pessoa, em qualquer circunstância. E repito, para isso não há barganha.
Se partimos dessa premissa irrefutável, nossas vidas, sejam na esfera individual ou coletiva, esbarram numa questão prática e urgente: em que situações devemos fazer o bem? A resposta, ainda que complexa em sua execução, é simples em sua teoria: em todas. Em casa, no trabalho, nas relações mais íntimas e no espaço público mais amplo.
Fazer o bem transcende a mera cortesia. Envolve expressar e buscar o que é melhor não apenas para mim, mas para a minha família, para minha comunidade, para minha cidade, para o meu país e, fundamentalmente, para o planeta que habitamos. Somos, em essência, uma humanidade interligada. Querer o bem verdadeiro para os palestinos implica, necessariamente, querer o bem para os israelenses. Da mesma forma, desejar paz e prosperidade para os ucranianos envolve desejar o mesmo para os russos. O bem, por definição, não segrega. Ele não conhece fronteiras ou bandeiras.
Isso nos leva à conclusão inevitável de que a única força capaz de operacionalizar esse bem universal é um amor que, importante destacar, nada tem a ver com concordância passiva. Amar a todos não significa compactuar com as ações de todos. Pelo contrário. Há momentos em que discordar, criticar e resistir ativamente são as mais profundas e corajosas expressões de amor por uma coletividade. É o amor que se recusa a aceitar o que a destrói.
Se isso é verdade, uma sociedade que se pretenda justa não pode, sob nenhuma circunstância, concordar com a segregação de seus cidadãos. Todos, sem exceção, devem ser iguais perante a lei. É esse contrato social que impede que a força bruta e o privilégio prevaleçam sobre a razão e o direito.
Foi com profunda perplexidade e indignação que assistimos, em 16 de setembro de 2025, 344 deputados federais brasileiros aprovarem a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) conhecida como PEC das Prerrogativas (Veja aqui a lista de como votaram). O núcleo da questão é gravíssimo: o texto aprovado na Câmara Federal estabelece que deputados, senadores e presidentes de partidos políticos, só poderão ser investigados por crimes comuns se suas respectivas Casas – a Câmara ou o Senado – autorizarem previamente a abertura de processo.
Em outras palavras, a corporação decide se investiga a si mesma. Transforma-se em juiz de suas próprias causas. O que era para ser um mandato de representação do povo torna-se, na prática, um salvo-conduto. O mensageiro, que deveria ser servo da mensagem (o interesse público), declara-se intocável.
Se isso estiver correto – e infelizmente está –, consagramos legalmente no Brasil a existência de dois tipos de cidadãos: os puníveis e os impuníveis. Os que estão sujeitos à lei comum e os que, uma vez eleitos, ascendem a uma casta protegida por um escudo jurídico corporativo.
Isso é fazer o bem? Certamente não. Isso é segregação pura e simples. É a negação do Estado Democrático de Direito. É uma medida de autopreservação de uma casta que, longe de querer servir, parece querer reinar. E, ao criar um ambiente de impunidade potencial, não é uma autorização tácita para que o mal seja feito?
Esta é, sem dúvida, uma das mais novas e grotescas excrescências de nossa história recente. Ela não nasceu do nada; é o ápice de uma cultura de patrimonialismo e de blindagem que insiste em nos assombrar.
Diante de mais um ato que beira a afronta à inteligência e à decência do cidadão comum, surgem as perguntas angustiadas. Como reagir? A sensação de impotência é real e paralisante. Muitos se perguntam:
1. Pedir que os 133 deputados que votaram contra abandonem o parlamento? Esta primeira hipótese equivale a um suicídio cívico. É entregar de mãos beijadas o campo de batalha àqueles que queremos combater. É construir, por desistência, a sociedade do mal que tanto criticamos, uma herança envenenada que legaríamos a nossos filhos e netos, condenando-os a viver eternamente nas trevas da desesperança.
2. Não votar mais em eleições? Esta é a via da alienação. É a política do avestruz, que, diante do perigo, enterra a cabeça na areia e finge que está tudo bem. Ao fazer isso, o cidadão deixa de fazer o bem justamente quando ele é mais necessário: permite que, entre os seus, nada se faça para melhorar a sociedade. É a rendição por abandono de campo de resistência. Abre mão de seu poder constitucional e, por extensão, do seu dever de buscar o bem coletivo.
3. Não discutir mais política com ninguém? Esta terceira opção é a junção mortal das duas anteriores. É a indiferença elevada ao grau máximo. É fazer o mal por pura inércia, por apatia, por uma perda catastrófica de fé na humanidade. É o egoísmo final: " desde que não me afete, que se dane".
Quando assumimos uma ou todas essas posições, estamos declarando, em alto e bom som, que acreditamos que nada mudou na história, que nada vai mudar e que nosso esforço é inútil. Se de fato pensarmos assim, a consequência lógica, e profundamente trágica, é desistir da humanidade e da própria vida em sociedade.
Não podemos, porém, cometer o erro absurdo de achar que a escuridão sempre vence. A história humana é uma sucessão de avanços e recuos, mas com uma trajetória clara de progresso moral, conquistado a duras penas.
Não esqueçamos: a mesma humanidade que crucificou milhares, incluindo Jesus Cristo, também foi capaz de construir éticas de compaixão a partir de seu sacrifício. A mesma humanidade que escravizou milhões de pessoas negras, tratando-as como animais, foi capaz de gerar abolicionistas, um Martin Luther King e movimentos que lutaram e lutam por reparação e igualdade. Em nome de Deus, queimou-se vivos centenas de pessoas durante a Inquisição, mas também em nome de um chamado divino superior, homens e mulheres desmascaram farsas dogmáticas e uma nova visão científica da espiritualidade reconstitui a tolerância e edificou a diferença como valor em si.
A comercialização de indulgências, que enriqueceu a igreja medieval, foi confrontada e derrotada pela ética e pela razão. As centenas de guerras por ouro, terra e poder ceifaram milhões de vidas, mas também nos levaram à criação da ONU e de tribunais internacionais na tentativa de frear a barbárie.
Sim, muita coisa mudou. Reconheçamos que gerações passadas fizeram a diferença. A história não se move na velocidade que desejamos – ela é uma marcha lenta e por vezes frustrante –, mas as mudanças acontecem. Elas não são inevitáveis; são conquistadas pelo esforço individual e coletivo constante.
É aí que reside nosso poder e nossa responsabilidade. Ser humano é, todos os dias, construir a resistência ativa contra o mal. É fazer o bem em cada gesto, por menor que pareça.
Fazer o bem é:
* Devolver o troco a mais que recebemos no mercado.
* Ser gentil com o atendente cansado, com o motorista de aplicativo, com quem pensa diferente.
* Recusar a violência verbal e física como instrumento de debate.
* Exercitar a autocrítica feroz, reconhecendo que nem sempre acertamos.
* Buscar informações na fonte, checar fatos e não disseminar boatos que intoxicam o corpo social.
* E, talvez, o ato político mais importante de todos: trocar o voto. Sim, quando seu candidato, seu partido, seu representante vota contra a população, contra a isonomia, contra a justiça – como fizeram os 344 deputados –, fazer o bem é retirar-lhe o apoio por terem votado na PEC, mesmo que a PEC não tenha sido aprovada pelo Senado. É lembrá-lo de que o mandato é nosso, e não dele.
Viver é uma ação de risco. Erraremos. A estrada está cheia de desvios. Mas a autocrítica existe justamente para isso: para nos corrigir e nos realinhar constantemente com o princípio geral e inegociável que deve guiar nossa existência individual e coletiva.
Fazer o bem sempre. Para todos. Em qualquer circunstância. Não é um clichê. É a única trincheira que vale a pena defender. Desistir não é, e nunca será, uma opção.
A Prisão Invisível: Como as Bolhas de Confirmação Nos Cegam para a Realidade
José Augusto Zaniratti 22/09/2025
Vivemos na era da informação. Nunca na história da humanidade tivemos acesso a tantos dados, tantas perspectivas e tantas vozes diferentes. Paradoxalmente, nunca nos sentimos tão divididos, tão certos de nossas próprias convicções e tão incapazes de dialogar com quem pensa diferente. Aí está a contradição moderna: a de que, cercados por todos os lados por informações, podemos escolher nos trancafiar em uma cela confortável, onde a realidade é apenas o que queremos ver, e não o que efetivamente é.
Essa cela não tem grades de ferro, mas algoritmos. Suas paredes não são de concreto, mas de viés de confirmação. Seu guarda não é um carcereiro, mas o nosso próprio medo do desconforto cognitivo. Ao mergulhar nessa prisão invisível, percebemos como a alienação diante da realidade e a incapacidade de sair de nossa bolha nos tornam acríticos e ideologicamente cegos.
O conceito de "bolha" ou "echo chamber" (câmara de eco) não é novo, mas foi potencializado em escala industrial pelas redes sociais e pelos mecanismos de busca. A premissa é simples: os algoritmos são projetados para nos dar mais do que engajamos. Se você clicar em notícias de um espectro político específico, o algoritmo entende: "Isso é o que ele gosta. Mais disso." É por isso que muitos autores afirmam: “É aí que a internet vai te oferecer exatamente o que você clicou e assim vai mostrar exatamente aquilo que você concorda ou gosta, tudo volta para te deixar confortável e feliz e incluído socialmente.”
Por isso pense naquilo que muito autores já disseram:
“Nossas opiniões são validadas incessantemente. Todo argumento que encontramos parece fortalecer o que já acreditávamos.”
“O outro lado é caricaturado. Quem discorda de nós não é apresentado em seus argumentos mais sólidos, mas sim através de straw men (espantalhos) – as versões mais extremas, irracionais ou ridículas de sua posição.”
“A dissonância cognitiva é eliminada. Sentimos um desconforto psicológico quando nos deparamos com informações que contradizem nossas crenças. A bolha nos protege desse desconforto, criando um ambiente estéril e confortável.”
Também, como muitos autores já afirmaram: “É possível perceber que em nosso entorno há muitas pessoas (ou grupos) profundamente convencida de sua própria narrativa, talvez sobre política, economia ou questões sociais.” Elas estão completamente impermeáveis a qualquer ideia ou afirmação que seja diferente de suas verdades absolutas já cristalizadas. Essas verdades ou dogmas são tão absolutas que se torna imune a dados, a evidências ou ao apelo humano daqueles que são afetados por aquela visão de mundo. A realidade concreta – um fato incontestável, a dor alheia, a consequência lógica de uma ação – bate contra as paredes da bolha e é simplesmente refletida, ignorada ou distorcida.
A alienação não é um conceito abstrato; ela se manifesta de formas tangíveis e, por vezes, aterradoras em nosso dia a dia.
Imagine a seguinte cena: o país enfrenta sua pior crise hídrica em décadas. Os reservatórios estão em níveis críticos, as autoridades alertam para a necessidade urgente de racionamento e economia de água. Dentro de sua bolha, however, uma narrativa diferente é cultivada. “Influencers” e fontes "alternativas" afirmam que a crise é um embuste, uma invenção de grandes corporações ou do governo para aumentar tarifas. Eles apontam para uma chuva forte que caiu na última terça-feira como "prova" de que não há seca.
A pessoa, alienada pela bolha, olha para a chuva de uma tarde e descarta todos os dados científicos, todas as imagens de satélite e todos os alertas oficiais. Ela continua lavando a calçada com mangueira, tomando banhos de hora e achando que quem economiza água é "ingênuo" ou "parte do complô". A realidade – o reservatório vazio – é menos real para ela do que a narrativa confortável de que está tudo bem.
Mas pode ser na política polarizada, demonizando inimigos. Este é talvez o exemplo mais visível. Um eleitor de esquerda radical, dentro de sua bolha, consome conteúdo que retrata todos os eleitores de direita como racistas, misóginos e mal-intencionados. Um eleitor de direita radical, em sua câmara de eco, vê todos os esquerdistas como "comunistas vagabundos" que querem destruir a família e a moral.
O resultado? Um perde a capacidade de ver que o outro lado é composto por seres humanos com medos, esperanças e argumentos, que por vezes, podem ser válidos. A discussão política deixa de ser sobre ideias e transforma-se em uma guerra tribal onde o objetivo não é convencer, mas destruir o oponente. A realidade complexa e cheia de nuances é reduzida a um maniqueísmo perigoso: "nós, os bons, contra eles, os maus".
Como alguém, na era dos voos espaciais e das imagens de satélite, pode acreditar que a Terra é plana? A resposta é: através de uma bolha de confirmação extremamente eficaz. Em comunidades online, vídeos são editados para parecerem convincentes, "especialistas" autoproclamados oferecem explicações alternativas para tudo (gravidade é uma ilusão, fotos da NASA são falsas) e qualquer um que questione é imediatamente ridicularizado e expulso do grupo como um "agente da NASA" ou "cegado pelo sistema", ou ainda, “abduzido por ideologia exótica”.
A alienação aqui é total. A pessoa substitui todo o consenso científico global por uma narrativa alternativa que a faz se sentir especial, parte de um grupo seleto que "acordou" enquanto o resto do mundo dorme. A realidade objetiva é rejeitada em favor de um factóide que oferece um senso de pertencimento e superioridade.
Como chegamos a esse ponto? A cegueira não é um acidente; é o produto de mecanismos psicológicos e tecnológicos que trabalham em conjunto.
Viés de Confirmação: Nossa tendência inata de buscar, interpretar e lembrar informações que confirmam nossas crenças pré-existentes. Dentro da bolha, esse viés é alimentado 24 horas por dia.
Raciocínio Motivado: Diferente de pensar criticamente para chegar à verdade, no raciocínio motivado nós começamos com a conclusão que queremos acreditar - exemplo: "meu candidato é honesto" e depois buscamos apenas as evidências que sustentam essa conclusão, descartando qualquer coisa que a ameace.
Medo do Ostracismo: Em muitos grupos, principalmente os mais ideologicamente fechados, discordar é trair. Manter a visão do grupo, mesmo que contra a realidade, é o preço para manter suas amizades, seu status e seu senso de identidade. Sair da bolha significa risco de solidão.
Sair da bolha de confirmação é um ato de coragem. É um processo desconfortável que exige uma dose massiva de humildade intelectual. Não se trata de abandonar suas convicções, mas de submetê-las ao teste constante da realidade.
Busque ativamente o desconforto: Siga intencionalmente pessoas e veículos de mídia com os quais você sabe que vai discordar. Não para brigar, mas para ouvir. Busque fontes de informações que mostrem e debatem posições diferentes e contrárias. Ouça seus argumentos mais sólidos, não as versões de espantalho que te apresentaram.
Questionar é diferente de trair: Pergunte-se: "Que evidência me faria mudar de ideia?" Se a resposta for "nenhuma", você não está em uma posição racional, mas dogmática.
Desconfie da simplicidade excessiva: O mundo é complexo. Desconfie de quem oferece soluções simples para problemas extremamente complexos. Desconfie de narrativas que dividem o mundo entre heróis e vilões puros.
Valorize a realidade sobre a narrativa: Preste mais atenção em o que aconteceu do que em o que dizem sobre o que aconteceu. Dados concretos, consequências observáveis e relatos de experiências diretas devem ter mais peso do que a opinião de um influenciador.
É preciso coragem para enxergar. Não se trata de criticar esquerda ou direita, mas de criticar a falta de pensamento. É um espelho para nós mesmos. Todos nós temos nossas bolhas, nossos vieses e nossas zonas de conforto cognitivo.
A alienação e a cegueira ideológica são, no fundo, uma forma de covardia. É mais fácil culpar um inimigo imaginário, abraçar uma conspiração ou ignorar dados do que enfrentar a realidade assustadora, complexa e frequentemente desordenada na qual vivemos.
A verdadeira coragem intelectual não está em defender ferozmente suas ideias contra todos os ataques, mas na disposição de atacá-las você mesmo, de testá-las contra o mundo real e de ter a humildade de ajustá-las – ou abandoná-las – quando a realidade mostrar que você estava errado. Só assim podemos começar a desfazer os tijolos invisíveis de nossa prisão e enxergar o mundo, não como gostaríamos que fosse, mas como ele realmente é. O primeiro passo para sair da bolha é admitir que você está dentro de uma. Se não admitir que pode estar aprisionado por uma prisão invisível saiba que está no caminho das trevas.
Camuflagem da Ideologia
José Augusto Zaniratti 15/09/2025
É comum para aqueles que alegam imunidade ideológica, pronunciarem frases do tipo: “Minha interpretação é uma simples constatação dos fatos”. Desta forma eliminam a possibilidade do diálogo. Mais, dizem que se o outro não está vendo a “verdade óbvia”, ele só pode ser burro, mal-intencionado ou um “ideólogo cego”. A alegação de neutralidade é, portanto, a postura mais ideológica de todas, porque se recusa a ser examinada. Ela se coloca acima de qualquer crítica.
Não podemos negar que somos produtos de um tempo, um lugar, uma classe social, uma educação, uma língua e um conjunto de experiências únicas. Nossa “razão” nunca opera no vazio. Nossas ações, assim como nossos pensamentos, são alimentadas por dados, preconceitos, emoções e intuições que foram moldados por essas forças externas.
Se a ideologia é tão onipresente, por que é tão difícil percebê-la? Ela opera através de mecanismos poderosos de camuflagem.
Naturalização: É o processo pelo qual as construções sociais e históricas são transformadas em “coisas naturais”. É como dizer por aí: algo deixa de ser “assim porque nossa sociedade escolheu que fosse” e passa a ser “assim porque sempre foi e sempre será”. Frases como “sempre houve pobres e ricos” ou “é da natureza humana ser competitivo” são exemplos clássicos. Se é natural, não é ideológico, certo? Errado. É justamente a ideologia trabalhando para se tornar invisível.
Senso Comum: A ideologia se esconde no território do “óbvio”. É o que “todo mundo sabe”. Questionar o senso comum é visto como excentricidade, loucura ou provocação. Quem ousa dizer que o número de horas tradicionais de trabalho por dia é de 8 horas é uma construção recente e não uma lei da natureza, muitas vezes é olhado com estranheza. O senso comum é o conjunto de respostas que uma ideologia oferece antes mesmo que as perguntas sejam feitas.
A Falácia do “Senso Crítico” Individual: Este é o cavalo de batalha de quem se diz imune. Dizem: “Ah, mas eu questiono tudo!” “Eu penso por mim mesmo!”. É uma bela intenção, mas ingênua. Com que ferramentas você questiona? Sua capacidade de criticar é, em si mesma, moldada pelo mesmo ambiente que você pretende criticar. É como tentar levantar-se puxando os próprios cabelos. Nossa crítica sempre parte de um lugar dentro do sistema, não de fora dele. Isso não a invalida, mas exige que sejamos profundamente humildes sobre seus limites.
Voltemos à frase inicial da coluna da semana passada: a imunidade é uma característica dos seres inanimados. Uma pedra é imune à ideologia. Um copo de água é imune. Eles não interpretam, não julgam, não possuem intenção ou propósito (agenda). Eles simplesmente são. Um ser humano que alega essa mesma imunidade está, em essência, abrindo mão de sua própria capacidade de agir e de fazer escolhas (agência) e, por consequência, de sua humanidade.
Acreditar nessa imunidade traz consequências nefastas como:
Dogmatismo: Se você está certo e o mundo errado, não há motivo para diálogo. Seu papel é converter, vencer ou silenciar o outro. A política deixa de ser um debate de ideias e vira uma guerra santa. Essa é a prática do fundamentalismo religioso ou político.
Incapacidade de Aprendizado: Se você não consegue enxergar as lentes que usa, nunca poderá trocá-las por outras, limpar suas distorções ou experimentar novos pontos de vista. Seu pensamento fica estagnado.
Manipulação: Eis uma grande ironia: quem mais afirma estar livre de ideologia é, muitas vezes, justamente quem mais facilmente cai em suas armadilhas. Por acreditar cegamente que suas convicções são resultado de pura lógica e racionalidade, essa pessoa deixa de questionar a origem de suas fontes de informação. Ela não investiga quem está por trás dos centros de pesquisa ou laboratórios de ideia (think tanks) cujos estudos e narrativas ela repete, nem quem os financia. Também não percebe como suas emoções estão sendo deliberadamente exploradas por algoritmos de redes sociais e campanhas publicitárias. Como um peixe que ignora completamente a água em que nada, ele se torna o mais vulnerável àqueles que decidem envenenar o aquário.
Desumanização do Outro: Se o diferente não é alguém com uma perspectiva válida (ainda que equivocada), mas simplesmente um “idiota útil”, um “gado” ou um “inimigo da razão”, abrimos as portas para a intolerância mais violenta. A história está repleta de horrores cometidos por pessoas que acreditavam piamente estar agindo em nome da verdade objetiva, livre de qualquer “ideologia” maligna.
Se não podemos ser imunes, qual é a alternativa? A resposta não é se tornar um ser assexuado ideologicalmente – isso é impossível. A alternativa é trocar a ilusão da imunidade pela prática da vigilância crítica.
Não se trata de não ter ideologia. Trata-se de saber que você tem uma, de conhecê-la, de mapear seus contornos e suas fraquezas. É assumir-se como um ser ideológico, mas um que luta por autoconhecimento. É como um alcoolista em recuperação: o primeiro passo é admitir que se tem um problema.
Como praticar essa vigilância? Há mecanismos que podemos assumir uma prática de vigilância crítica:
Autos Suspeita: Pratique o hábito de desconfiar de suas próprias certezas. Quando você tiver uma reação emocional forte a algo, pause. Pergunte-se: “Por que isso me incomoda tanto?” Quais valores meus estão sendo desafiados? De onde vêm esses valores?
Expanda seu Repertório: Leia autores com os quais você sabe que vai discordar. Não para “refutá-los”, mas para entender de onde eles estão falando. Qual é a lente deles? Qual é a experiência de mundo que gerou aquela visão? Assista a filmes de outros países, leia história escrita por povos vencidos, ouça música que não está na sua playlist algorítmica.
Pergunte “Por Quê?” Cinco Vezes: Diante de qualquer “verdade” que pareça óbvia, faça como uma criança chata. Por que o céu é azul? Por que o trabalho dignifica o homem? Por que precisamos de crescimento econômico infinito? Por que a beleza é assim? As respostas vão rapidamente sair do campo da “ciência” e entrar no campo da cultura, da filosofia e da ideologia.
Identifique os Ausentes: Em qualquer debate, pergunte: “Quem não está na mesa? Quem não está sendo ouvido? Quem se beneficia com essa narrativa e quem é silenciado por ela?” A ideologia dominante é ótima em fazer com que certas vozes e questões sequer sejam consideradas parte do debate legítimo.
Aceite a contradição: Abrace o fato de que você pode, e deve, abrigar ideias contraditórias. Você pode acreditar no valor da liberdade individual e, ao mesmo tempo, reconhecer a importância de regulamentações coletivas. A vida é complexa demais para ser reduzida a um manual ideológico coeso. A contradição é um sinal de pensamento vivo, não de fraqueza.
Afirmar “sou imune à ideologia” é uma declaração de auto anulação. É vestir a camisa de força de uma falsa objetividade e abrir mão da beleza complexa, confusa e contraditória de ser humano. A frase que nos guia é um lembrete severo, porém necessário: apenas o que não pensa, o que não interpreta, o que não sente – a pedra, o tijolo, a nuvem – pode verdadeiramente alegar tal status.
Nossa força não está em uma pureza inatingível, mas na coragem de nos enxergarmos como somos: seres enredados em teias de significado que nós mesmos ajudamos a tecer, mas que raramente conseguimos ver em sua totalidade. A jornada intelectual e moral mais importante de nossa vida não é escapar da ideologia, mas mergulhar em suas profundezas com os olhos bem abertos, cartografando suas correntes e, com sorte, encontrando dentro dela os instrumentos para sua própria transformação.
A verdadeira liberdade de pensamento não é a imunidade. É a consciência do cativeiro. E é apenas a partir dessa consciência dolorosa e humilde que podemos dar os primeiros passos titubeantes em direção a uma autonomia real – não para fora da matrix, mas para dentro de nós mesmos, com todas as nossas imperfeições e preconceitos, mas agora equipados com a única ferramenta que importa: a dúvida constante sobre as próprias certezas. Acreditar que é um ser imune às ideologias é não pensar, é trilhar o caminho mais curto para as trevas.
A Ilusão da Imunidade Ideológica
José Augusto Zaniratti 08/09/2025
“Sou imune a qualquer ideologia?” Se você já se fez essa pergunta e, mais ainda, se a resposta foi um confiante “sim”, tenho uma notícia que pode soar um tanto quanto desconcertante: essa certeza absoluta é, muito provavelmente, a prova mais cabal de que você está profundamente imerso em uma. A frase que nos guia – “Se você acredita que é imune à qualquer ideologia, saiba que esta é uma das principais características dos seres inanimados” – não é um insulto, mas um convite crucial à humildade intelectual. Ela cutuca a ferida de nossa mais perigosa arrogância: a crença de que somos seres puramente racionais, capazes de observar o mundo a partir de um ponto zero neutro, impávidos e imunes aos ventos culturais, históricos e sociais que moldam tudo ao nosso redor.
A alegação de imunidade ideológica é uma falácia perigosa, como as ideologias operam de formas sutis e insidiosas, e por que abraçar nossa condição de seres “ideológicos” – com consciência crítica – é o único caminho para uma autonomia de pensamento verdadeira.
O primeiro passo é desfazer um equívoco comum. Quando ouvimos a palavra “ideologia”, nosso cérebro tende a associá-la imediatamente a grandes sistemas políticos formalizados: comunismo, capitalismo neoliberal, fascismo, anarquismo. Ou então, a imaginamos como um conjunto de dogmas aos quais alguém se filia conscientemente, como entrar para uma instituição, religião ou a um partido. Esse reducionismo é conveniente, pois nos permite colocar a “ideologia” lá fora, como uma coisa que “os outros” têm, especialmente aqueles com os quais discordamos.
Essa visão é ingênua e está profundamente equivocada. Em um sentido mais amplo e sociológico, ideologia é simplesmente o conjunto de valores, crenças, mitos, pressupostos e normas que dão sentido à nossa realidade e orientam nossas ações dentro de uma sociedade. Ela é a lente através da qual enxergamos o mundo; uma lente da qual, muitas vezes, nem sabemos que estamos usando.
Esta lente está presente em todos os momentos: na forma como organizamos nossa cozinha quando colocamos a geladeira em uma determinada posição e a pia em outra; no que consideramos “sucesso” na vida como ter uma família? Ou ganhar muito dinheiro? Ou ser famoso? Ou ainda ter uma vida tranquila no campo?
Nossa definições sobre “beleza” ou “saúde”; nossa concepção de “justiça” e “fair play” ou ainda a narrativa que usamos para contar a história de nosso país, sobre os heróis nacionais, datas gloriosas ou vilões, estão absoluta e convenientemente submetidos à nossa ideologia, seja ela qual for.
Essas não são leis da física. São construções humanas, cultural e historicamente situadas. Quem as criou? Por que essas ideias e não outras? Quem se beneficia com elas? A ideologia, nesse sentido, é a água em que o peixe nada. Ele não a percebe; ele simplesmente a assume como a condição natural do mundo. Alegar imunidade à ideologia é como o peixe afirmar que é imune à água. É uma afirmação que só faz sentido dentro do aquário.
A alegação de imunidade ideológica nasce de uma fantasia muito sedutora, herdeira do Iluminismo radical, que foi a ala mais ousada, sistemática e subversiva do movimento iluminista mais amplo, que floresceu ao longo do século XVIII. A partir desta herança se forja a ideia de que a razão humana pode, e deve, se libertar completamente de qualquer “contaminação” cultural, histórica ou emocional para alcançar uma objetividade pura. É a crença de que existe um “ponto zero” a partir do qual podemos observar a realidade de forma totalmente neutra. Essa alegação é também a expressão de grande arrogância.
Essa é uma grande ilusão. Todos nós somos produtos de um tempo, um lugar, uma classe social, uma educação, uma língua e um conjunto de experiências únicas. Nossa “razão” nunca opera no vácuo. Ela é sempre alimentada por dados, preconceitos, emoções e intuições que foram moldados por essas forças externas.
Pense em um exemplo simples: duas pessoas assistem ao mesmo vídeo de um protesto. Uma vê “cidadãos exercendo seu legítimo direito de reclamar por direitos”. A outra vê “vândalos perturbando a ordem pública e o direito de ir e vir dos outros”. Ambas acreditam piamente que estão descrevendo a “realidade objetiva” do fato. Mas o que realmente estão fazendo é “interpretando” os fatos através de lentes ideológicas diferentes – lentes que priorizam valores como “liberdade de expressão” ou “ordem e segurança” em hierarquias distintas.
Quem alega imunidade, na prática, está dizendo: “Minha interpretação não é uma interpretação; é a simples constatação dos fatos”. Isso é perigosíssimo, pois elimina a possibilidade do diálogo. Se o outro não está vendo a “verdade óbvia”, ele só pode ser burro, mal-intencionado ou um “ideólogo cego”. A alegação de neutralidade é, portanto, a postura mais ideológica de todas, porque se recusa a ser examinada. Ela se coloca acima de qualquer crítica. Saiba que acreditar que é um ser imune às ideologias é não pensar, é trilhar o caminho mais curto para as trevas.
Fica a pergunta: Se a ideologia é tão onipresente, por que é tão difícil percebê-la? Ela opera através de mecanismos poderosos de camuflagem. Mas essa é uma outra história!
IA: Fim da Humanidade ou Próximo Grande Salto?
José Augusto Zaniratti 01/09/2025
Há uma corrente de crítica severa, quase um alarme generalizado, que paira sobre o desenvolvimento das Inteligências Artificiais (IAs). O discurso catastrofista prega que, num curto espaço de tempo, essa invenção trará uma era de “desinteligência” e obsolescência para a humanidade. A pergunta que fica, ecoando como um mantra do pessimismo, é: “Será?”. Antes de enterrarmos prematuramente este potencial, faz-se necessária uma pausa para a reflexão. O que verdadeiramente nos diferencia de tudo o que é vivo ou artificial não é a exclusividade na execução de tarefas, mas nossa capacidade ímpar de pensar, de fazer escolhas complexas e, acima de tudo, nossa resiliente vocação para a adaptação.
Para contextualizar, façamos uma indispensável retrospectiva histórica. Cada grande salto da humanidade foi, invariavelmente, recebido com um misto de fascínio e temor. O controle do fogo, nossa primeira grande tecnologia, deve ter aterrorizado aqueles que viram nas chamas um perigo incontrolável, mas ela se tornou a base da civilização. A roda, o prego, as lentes ópticas e a bússola redesenharam o mundo, deslocando centros de poder e conhecimento. A prensa de Gutenberg não apenas mecanizou a escrita; democratizou o saber e fragilizou os monopólios intelectuais da época, certamente para o desgosto de alguns
A eletricidade iluminou as noites, mas também iluminou os medos de uma sociedade que não a compreendia plenamente. O motor a vapor e o motor a combustão interna, o automóvel; o avião; a penicilina; os foguetes; a fissão nuclear; os semicondutores; aceleraram o ritmo da vida, o avanço científico enterrando profissões e criando outras jamais imaginadas. O telefone encurtou distâncias, mas também foi visto como um instrumento de isolamento social. A vacinação, que salvou milhões, enfrentou - e ainda, absurdamente, enfrenta - a desconfiança de muitos. Cada um desses inventos, em seu alvorecer, teve seus críticos ferrenhos, todos se perguntando: “onde o mundo irá parar com isso?”.
Posso falar com a autoridade da experiência vivida com a chegada da televisão. No Rio Grande do Sul, onde as transmissões iniciaram em 1959, o aparelho era visto como um perigo social e cognitivo. Lembro-me com clareza da minha pré-adolescência, por volta de 1970, quando eu podia passar facilmente de 10 a 12 horas absorto na programação da TV. Todas as tardes, minha mãe, com a preocupação típica de quem via o novo com desconfiança, advertia que eu iria prejudicar minha saúde ocular, que a TV “fritaria” meu cérebro, que me tornaria antissocial, e assim por diante. Esse mesmo script se repetiu, anos mais tarde, com o advento do computador pessoal. As horas que eu dedicava a escrever, programar em BASIC ou simplesmente brincar com os primeiros jogos eram vistas como um tempo perdido, um isolamento perigoso frente àquela tela fosforescente. Não faltaram críticos, novamente, para alertar sobre os supostos danos irreparáveis.
O ciclo repetiu-se de forma quase cômica com o “smartphone”. O dispositivo que hoje centraliza nossas vidas foi taxado como o grande responsável pelo fim das conversas cara a cara e da empatia. A história, no entanto, tem um senso de humor irônico e um poder de adaptação ainda maior. Lembremo-nos do pânico que se instalou com a popularização das fitas magnéticas VHS e, posteriormente, dos DVDs. O cinema, tal qual o conhecíamos, supostamente morreria em função das fitas VHS e depois com os DVDs, porque agora tudo isso estava nas salas de nossas casas. O que aconteceu? A indústria cinematográfica não apenas sobreviveu como se adaptou e evoluiu. Os multiplex oferecem uma experiência imersiva que a sala de casa não pode replicar, e as próprias fitas e DVDs tornaram-se peças de museu, substituídas por “streaming”. O cinema não foi morto pela tecnologia; foi forçado a se reinventar por ela.
Este é o cerne da questão: a humanidade é, em sua essência, uma espécie criadora. Somos impelidos a criar meios para diminuir nosso esforço, para automatizar o tedioso e liberar nosso tempo para o que é genuinamente humano: a criatividade, a contemplação e a conexão. Nossa inteligência permitiu que profissões de alto risco ou de grande esforço físico fossem gradualmente extintas ou transformadas. O que é um lampejo, um ferreiro, um operador de telégrafo ou um ascensorista na economia moderna? Foram ofícios substituídos pelo progresso, que por sua vez abriram espaço para novas e mais complexas ocupações.
O mesmo processo está em curso com as IAs. Em vez de vê-las como uma ameaça existencial, devemos enxergá-las por outro ângulo: como a mais poderosa ferramenta já concebida. As IAs generativas nos permitem criar mais e mais rápido, sim. Podem rascunhar textos, compor músicas, gerar imagens e analisar dados numa velocidade incomparável. Mas a centelha inicial, a genialidade por trás da ideia, os sentimentos mais profundos transformados em arte – seja na escrita, na pintura, no teatro ou no cinema – isso permanece como domínio exclusivo da experiência humana consciente. A IA pode imitar um estilo, mas não pode viver a dor, a alegria ou a nostalgia que origina uma obra-prima.
O que permeia toda essa jornada, desde a primeira fagulha até o último algoritmo, é a nossa capacidade de adaptação às nossas próprias criações. Este é um momento de transição, assim como foram todos os outros. O mercado de trabalho passará por uma disrupção profunda, e sim, algumas funções desaparecerão. Mas surgirão outras, que exigirão nossa inteligência emocional, nossa capacidade crítica e nossa criatividade – habilidades que a IA, por enquanto, não possui.
Portanto, se as IAs forem capazes de nos substituir no trabalho braçal, repetitivo e de alto risco, que sejam bem-vindas. Que nos libertem para que possamos nos dedicar ao que sempre fizemos de melhor: sonhar, adaptar-nos e evoluir. O desafio não é lutar contra a máquina, mas aprender a colaborar com ela, direcionando seu poder para amplificar o melhor da humanidade. O futuro não será uma escolha entre seres humanos e seres artificiais, mas uma simbiose entre ambos, tal como sempre foi entre o homem e suas ferramentas. O próximo capítulo da nossa história não será escrito por uma IA, mas por nós, com sua inestimável ajuda. Mas isso exige homens e mulheres de bem, civilizados e amantes da paz, do contrário estaremos no caminho das trevas e, quem sabe, nos destruiremos antes de apreender e nos adaptar.
Quando o Pó Assentar
José Augusto Zaniratti 21/08/2025
Há certos dias que nos perguntamos o que fizemos ao longo do passado. Para muitos, a primeira coisa que vem à mente é o patrimônio acumulado. Pensam em casa, carro, dinheiro, empresa… e assim a lista se enche de objetos finitos como nós mesmos. Esse reflexo de preocupação material nos guia a uma reflexão mais profunda sobre o que realmente importa. O que estamos construindo, além de bens que, como nosso corpo, são efêmeros?
O momento seguinte é o pensamento de que deixamos um enorme legado. É verdade, um legado enorme, que assim como nosso corpo é finito. Mas o que é um legado, realmente? Para muitos, é uma questão de números, de posses. E nessa lógica do capital, o valor de uma vida é frequentemente medido pelo que se acumulou, pelo que se possui. No entanto, essa é uma visão limitada e superficial.
Qual o sentido de ter? Se é verdade que evoluímos tecnologicamente, nossa lista de grandes obras se torna cada vez mais velha, obsoleta, inútil e defasada. O que, afinal, será lembrado? As casas que construímos? Os carros que dirigimos? Ou as contas recheadas que, em última análise, não nos acompanham na eternidade? Se é que a eternidade existe.
Esse é um falso legado, construído pela lógica do capital, que avalia o mundo e as pessoas pelo acúmulo ao longo da existência. Mas existe outra lógica? Existe uma forma de legado que transcende o material e se conecta com a essência do ser humano?
Os povos originários, por exemplo, não compartilham dessa visão de legado. Para eles, o legado deve ser perene, para que os que vêm depois de nós possam usufruir do que construímos. Se deixarmos apenas coisas, elas desaparecerão com o tempo. O testamento poderá contar o que existiu, mas ninguém aproveitará. Essa sabedoria ancestral nos convida a refletir sobre a natureza do que deixamos para as futuras gerações.
Quando fizerdes essa pergunta, pense no teu caminho, nas coisas imateriais. Pense que sentimentos transmitiu, se amou de fato, se construiu pessoas para amarem, se agiu para reforçar valores destituídos de preconceitos e de ódio. O nosso legado precioso é eterno, que não se destrói com o tempo e nem fica obsoleto.
Imagine seu legado como um rastro indestrutível, seja ele grande ou pequeno, que atingiu muitas ou poucas pessoas. Esse é o nosso verdadeiro papel no mundo, a razão de nossa existência. O que deixamos como marcas nos outros, as memórias que criamos e os sentimentos que propagamos são as verdadeiras heranças.
As grandes histórias da humanidade não são contadas por suas riquezas, mas sim pelos atos de ódio e destruição ou de bondade, amor e compaixão. Pensemos em figuras como Martin Luther King, que, ao invés de acumular bens, legou ideias que ainda reverberam em nossas sociedades. Ou Madre Teresa, que dedicou sua vida a servir os mais necessitados. Nelson Mandela que jamais desistiu da luta por igualdade racial. Seus legados não foram construídos em torno de posses, mas em torno de valores que perduram.
Vivemos em tempos desafiadores, onde o individualismo muitas vezes prevalece. Em meio a essa realidade, a construção de um legado imaterial se torna ainda mais urgente embora pareça piegas. Precisamos resgatar a ideia de que somos parte de algo maior, de uma coletividade que deve se preocupar com o bem-estar do todo, embora alguns façam guerras com armas letais e medidas econômicas que submetem, que escravizam nações inteiras.
Quando olhamos para trás, que tipo de legado queremos deixar? Um legado de acumulação ou um legado de amor, solidariedade e respeito? Precisamos cultivar relações que transcendam o efêmero, que inspirem as futuras gerações a agir com empatia e compaixão.
Assim, ao refletir sobre o que fizemos ao longo do passado, devemos considerar não apenas o que acumulamos, mas o que semeamos. O ter, tudo o que acumulamos deve ser meio para conquistar o verdadeiro legado, que não é feito de coisas, mas de experiências, sentimentos e relações.
E tu, que tipo de legado deseja construir? Que marcas você quer deixar no mundo? Ao final de nossas vidas, que nossas memórias sejam repletas de amor e conexões genuínas, e que possamos ser lembrados não pela quantidade de bens, mas pela qualidade de nossa presença na vida dos outros.
O legado imaterial é a riqueza essencial. Ele não se consome com o tempo; ao contrário, cresce e se multiplica a cada ato de bondade. E essa é a obra que todos devemos nos esforçar para deixar, uma herança que realmente importa, uma luz que nunca se apaga. O restante são as trevas.
A Professora Implacável, Chamada Vida
José Augusto Zaniratti 11/08/2025
Somos eternos alunos de uma professora implacável, dura e terna. Ela não pede licença e nos preenche com milhões de ensinamentos sem pedir permissão. Não espera que estejamos prontos, não pergunta se estamos preparados e nem se aprendemos. Ela simplesmente segue, arrastando consigo dias, horas, momentos que, quando olhamos para trás, já não nos pertencem mais. E nós, que um dia fomos feitos de águas tranquilas, nos descobrimos transformados pela correnteza. A cada dia somos diferentes e até nos estranhamos com nossas atitudes diante de situações inusitadas.
É assim que o tempo desfila sobre nossos olhos. O tempo é um viajante indiferente, segue sua rota e nos deixa à mercê da Professora Vida. Não se importa com nossas lágrimas nem se detém para celebrar nossas alegrias. O tempo apenas avança, implacável, levando consigo tudo o que não ousamos viver, as oportunidades que não agarramos, as pessoas que não amamos, os que não valorizamos. E no meio dessa jornada, pessoas chegam e partem, deixando marcas — algumas suaves como o toque da brisa, outras profundas como aromas ou cicatrizes.
Não aprendemos corretamente que nem todo adeus é distância ou uma perda. Há quem se vá e nunca realmente nos abandone, permanecendo vivo em cada memória, em cada riso, ecoando no silêncio. E há quem fique, mas já não esteja presente, seus corações habitando lugares distantes, mesmo que seus corpos ainda compartilhem o nosso espaço. Como o tempo decorrido, aprendemos, então, que a permanência física não garante a proximidade da alma.
Quantas vezes esperamos? Esperamos pela coragem, pelo sinal, pela circunstância ideal para abraçar, dizer eu te amo. Acreditamos que a vida começa apenas quando todas as condições se alinharem, quando o medo der lugar à segurança, quando o caminho estiver livre de incertezas. Mas a verdade é que o momento perfeito pode nunca chegar e pode até chegar e nem percebermos — porque ele não está no futuro. Ele está aqui, agora, disfarçado de instante comum, mascado de mesmice ou invisível aos nossos olhos de aprendizes displicentes.
Sim, nós sabemos que o tempo não pára. Não espera que nos preparemos, que superemos todos os nossos receios e nossas limitações. Ele escorre entre os dedos de alunos sem sabedoria, levando consigo as chances que hesitamos em tomar. E quando nos damos conta, o que nos resta não é o arrependimento pelo que vivemos, mas por aquilo que deixamos passar.
E ainda assim, no meio dessa passagem veloz do tempo, a vida nos presenteia com pequenos milagres. Um olhar terno como um raio de sol depois da tempestade - com um abraço que nos envolve sem hesitação e que grita em silêncio palavras de amor - ou quem sabe com um sorriso que surge inesperadamente no meio do caos, lembrando-nos que, mesmo na desordem, há beleza e de que se não percebemos, foi porque bons alunos da vida, não fomos.
São esses detalhes que nos fazem entender: vale a pena estar aqui e se envolver profundamente com cada instante vivido. Vale a pena sentir o vento, ouvir uma música que nos toca a alma, trocar um olhar que dispensa palavras. A vida sábia como uma mestra antiga, não ensina apenas com os grandes acontecimentos, mas como os breves instantes em que nos permitimos estar inteiros, presentes, conscientes de que cada respiro é um dom passageiro.
Não há garantias. Nenhum de nós sabe quantas primaveras ainda verá, quantas histórias terá tempo de viver. Por isso, adiar a vida em nome do medo é desperdiçá-la. Amar cada gesto, cada instante, hoje e amanhã. Arriscar hoje, fazer agora, dizer neste instante o que sente. Errar hoje porque amanhã poderá ser tarde para corrigir a rota. Porque o amanhã pode nunca ser o que imaginamos, mas o agora já é tudo o que temos.
O tempo não volta atrás e a professora Vida não repete a aula da mesma forma. E nós, que sofremos os efeitos do tempo, também não podemos reter tudo o que já passou e o que conhecemos. Mas podemos escolher nadar com mais coragem, aceitando que a beleza da vida está justamente em sua impermanência. Porque é sabendo que tudo muda que aprendemos a valorizar o que, por um breve instante, é nosso.
E quando a professora Vida nos chamar a atenção, não esperemos a próxima lição, sejamos bons alunos e apliquemos já os ensinamentos e dediquemos a máxima atenção nos detalhes, nas entrelinhas, que possamos olhar para trás e saber que, apesar de todas as quedas, algum aprendizado absorvemos, pelo menos o necessário para não trilhar o caminho das trevas. E tu, és um bom aluno da vida?
Ler e a Vida
José Augusto Zaniratti 04/08/2025
Viver é quase idêntico a ler. No princípio, não conhecemos os símbolos. Mais tarde, conseguimos reconhecer as letras, traços, pontos, vírgulas, símbolo de interrogação, exclamação, dois pontos e até o travessão, são coisas pretas dançando sobre o branco do papel. E ainda não sabemos o tempo da parada de cada símbolo. Mais adiante descobrimos as vogais e as sílabas. Quando alfabetizados, já lemos palavras, ainda de forma truncada, sílabas que escapam como areia entre os dedos. Com o tempo, as frases são lidas de forma mecânica, e não entendemos muito bem o sentido do que foi lido, como quem decifra um código sem possuir a chave. Mais adiante, a leitura flui, mas há muitas palavras cujo significado ainda não conhecemos, vocábulos que ecoam como mistérios em uma catedral vazia. Já adultos, descobrimos que, às vezes, as mesmas palavras podem ter significados diferentes, e por fim, compreendemos que a entonação ao ler pode gerar um outro significado para as mesmas palavras, para as mesmas frases, como um sino que, dependendo do vento, toca melodia ou lamento.
É então que acreditamos que podemos ler rapidamente, tão rápido quanto a forma que vivemos — velocidades que nos enganam, como rios que parecem parados à distância, mas que, de perto, arrastam tudo em sua correnteza. Fazemos uma leitura rápida, quase dinâmica, e acreditamos que todo o significado foi capturado, compreendido perfeitamente. Temos pressa em ler a vida, tanta pressa que não a sentimos de verdade, apenas passamos por ela.
Acreditamos que a vida é como ler um livro. Mas acontecem situações em nossas vidas que nos fazem parar. Será que li direito? Será que aquela página do livro, aquela passagem, não guardava um aviso, um presságio que deixamos escapar? A vida, porém, não é idêntica a ler um livro. Não podemos fechar e reabrir. Ela não tem marcadores, não tem índice, não permite que voltemos atrás para corrigir a interpretação. A vida acontece agarrada ao tempo e ambos são um só. Como disse Jorge Luis Borges, "o tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio." O ar que conduz os aromas de hoje será diferente amanhã.
E é aí que encontramos a diferença entre ler um livro e a vida. Na vida, não conseguimos voltar para reler aquela página. As palavras já foram ditas, os gestos já foram feitos, e o papel, uma vez escrito, queima-se no fogo do tempo. Não há segunda edição, não há revisão. A vida é um manuscrito perdido, cujas páginas se dissolvem à medida que são viradas.
Ler a vida exige que saboreemos cada sílaba, como quem prova um fruto raro, deixando seu sumo correr devagar pela garganta. Exige atenção, pois cada símbolo é uma pegada na areia — se não a deciframos logo, o mar a levará. Ler com precisão cada letra, identificar o sentido das palavras nas frases, é como desvendar um enigma deixado pelos “deuses” como pistas no DNA que carregamos sem entender.
Mas a vida, mais do que um livro, é um poema cheio de metáforas. Como disse Clarice Lispector, "Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa qualquer entendimento."
Ler as entrelinhas da vida revela sabedoria. Nelas está o que foi visto e jamais pronunciado. Compreender a intuição é estar aberto ao que nunca foi dito. E, principalmente, é preciso ler o subtexto, aquilo que foi dito sem ter sido escrito, como as pausas em uma música, os vazios entre as estrelas. A verdade nunca está apenas nas palavras, mas no silêncio que as cerca.
Leia a vida com calma, com atenção, com precisão, como quem caminha por um jardim noturno, sentindo o perfume das flores invisíveis. Aproveite todos os sabores que ela proporciona — o amargo, o doce, o ácido — pois cada um é necessário, como notas em uma sinfonia. Sonhe muito, pois os sonhos são as margens de um rio que nunca seca. Veja todas as cores e seus matizes, desde o branco puro até o preto mais profundo, pois a vida não é monocromática — ela é um caleidoscópio em eterno movimento.
E, no final, aprenda que viver é bem mais prazeroso do que sonhar, pois os sonhos são páginas ainda não escritas, enquanto a vida é o livro que queimamos ao lê-lo. Nós, leitores apressados da vida, das pessoas, dos sentimentos, corremos o risco de virar apenas cinzas — folhas consumidas pelo fogo da ansiedade, sem nunca termos decifrado o que estava nelas. A pressa em virar páginas, em devorar capítulos, é a ilusão de que estamos ganhando tempo... quando, na verdade, estamos perdendo a própria história.
Pois a vida não é um livro que se lê na diagonal. Ela é um pergaminho antigo, cheio de rasuras e margens preenchidas à mão — e só conhece seu verdadeiro sentido quem se permite ler cada linha, inclusive as que parecem em branco. Qualquer outro caminho leva às trevas: o vazio de quem passou os dias sem habitá-los.
A Guerra Interna
José Augusto Zaniratti 28/07/2025
Estava sentado na Estação do Trensurb, com um olhar indefinido apontando para lugar algum, sem pensar em nada. Num instante me veio a ideia de enviar uma mensagem para uma amiga que há muito não conversava. Foi o que fiz.
Escrevi:
-Bom dia. Estou preocupado contigo, faz tempo que não conversamos.
Ela respondeu:
- Bom dia. Não te preocupes.
Imediatamente fiz uma pergunta que até para mim, foi inesperada — nem sei por que a fiz:
- Está feliz? Eu perguntei a ela.
- NÃO. — a resposta veio instantaneamente, seca. Ela continuou:
- Não adianta, pois a mudança para que eu seja feliz, tem que partir de mim. E como você vai mudar uma pessoa que foi assim a vida inteira? Nunca pensei em mim. Sempre me doei, mas para os outros nunca para mim. Como mudar isso, até tenho tentado, mas, acabo voltando a cometer os mesmos hábitos. Não tenho mais tempo e nem forças pra mudar.... E o pior, a errada sou sempre eu. Eu estou sempre só. Estou rodeada de pessoas, mas sempre só. É assim que me sinto. Não tenho conseguido falar, escrever, eu só estou no fluxo, sabe. Eu não queria reclamar, não quero ser ingrata, pois tenho muito, quando olho para trás eu construí muita coisa. Mas tem um vazio que não sei explicar.
Este sentimento é igual ao de milhares, quiçá, de milhões de pessoas. Mas conheço bem minha amiga há anos. Sei que ela não busca felicidade no acúmulo: ter mais dinheiro, mais posses, mais status. Não tem uma prática consumista para suprir seu vazio interior. Não se entrega a excessos — comida, jogos, redes sociais —, nada que dê aquela euforia passageira. Não segue modelos fabricados por algoritmos ou qualquer coisa que proporciona euforia ou ilusão de felicidade.
Ao contrário, ela é ética, faz seu trabalho rapidamente e com excelência e está sempre há um passo à frente e assim age antes da necessidade ou do problema surgir. Ela é uma daquelas pessoas que faz o que é certo, mesmo quando é difícil, mesmo quando ninguém está olhando, mesmo quando o caminho mais fácil é sugerido pelos outros.
Então, por que o vazio? Por que essa infelicidade? É claro que não sou profissional de saúde para analisar a situação de uma pessoa. Mas não é preciso ser expert para ver que o modelo social nos empurra para uma vida "coisificada", mensurável em likes e cifras.
Talvez, sem perceber, ela esteja esperando uma recompensa do outro por ser tão eficiente, rápida, ética e íntegra. Talvez ela não perceba que esteja medindo as pessoas por sua própria régua, como se todas fossem exatamente como ela, o que é ilusão. Pode ser que as pessoas nem percebam as suas próprias reais necessidades enquanto ela já percebeu e já ofereceu soluções para problemas que nem existiam na cabeça deles. E aí o outro reaja negativamente, se fechando porque se sente invadido. Repele ou rejeita porque não conseguiu compreender o ensinamento, porque muitas vezes é o tempo, a distância e a dor são os mestres capazes de ensinar.
Essa história me ensina que a ajuda é bem sucedida quando o outro está aberto para receber, quando identifica que precisa de ajuda. É preciso ter paciência, apoiar no momento certo. Nós somos capazes de perceber o momento justo e agir por amor. A felicidade está no sentir a emoção pelo ato de resolver, de ajudar, não na validação alheia. Importa é aquela sensação de ter ajudado quando o outro nem sabe que recebeu ajuda. Essa é a felicidade que nos enche por dentro, saber no teu íntimo que tudo que é, tem parte tua e que saber disso gera a felicidade tão sonhada. Ainda que ninguém perceba, saber que ajudou a construir uma parte da humanidade que está ao teu redor, que a missão está cumprida com os recursos do seu interior, é a maior felicidade. É isso que te faz sorrir. A felicidade plena só é possível quando nossas ações estão alinhadas com quem realmente somos — e não com quem o mundo espera que sejamos.
Dê espaço e tempo para que outro absorva e compreenda a essência de tudo que lhe foi oferecido. Paciência e o silêncio sempre são aliados no momento certo, o restante é apenas a estrada. Como diz Almir Sater na música “Tocando em Frente”: “Penso que cumprir a vida seja simplesmente - Compreender a marcha e ir tocando em frente, como um velho boiadeiro levando a boiada - Eu vou tocando os dias pela longa estrada eu vou, estrada eu sou. Cada um de nós compõe a sua história, cada ser em si carrega o dom de ser capaz, de ser feliz.”
Esse é o caminho contrário da estrada do vazio das trevas.
A Terceira Guerra Mundial Já Começou — E Ela Não Usa Tanques
José Augusto Zaniratti 21/07/2025
Sentei-me para escrever. Li e pensei. Minha mente ficou embriagada — não pelo álcool, mas pela avalanche de temas que assombram nosso tempo. Uma enxurrada de crises, conflitos e contradições que se acumulam como nuvens densas antes da tempestade. Sobre o que escrever? Há tantas feridas abertas no mundo, tantas histórias que clamam por atenção.
Poderia falar das ameaças climáticas, desse planeta febril, desgovernado pela mão humana que insiste em cavar sua própria sepultura. Ondas de calor que derretem asfalto, inundações que engolem cidades inteiras, florestas que viram cinzas. A natureza, outrora mãe generosa, hoje revida com fúria, e ainda assim seguimos cegos, como se o ar condicionado e os muros altos nos poupassem do colapso.
Ou então sobre a política brasileira, esse teatro grotesco onde a chantagem é o prato principal. Parte dos parlamentares que vendem discursos como mercadores de ilusões, traficando influência em troca de poder. Enquanto isso, os chamados "patriotas" — ah, essa palavra tão manchada!, liderados pelos dois atrapalhados da mesma família, abrem as veias da pátria para sugar suas riquezas e entregá-las a interesses estrangeiros, fazem chantagem como se a soberania fosse uma peça de museu, empoeirada e esquecida.
Há também os feminicídios, crimes que escancaram a ferida podre do machismo. Mulheres mortas não são estatísticas; são filhas, mães, irmãs, reduzidas a manchetes efêmeras antes que o próximo escândalo tome seu lugar. E os povos originários, os povos e comunidades tradicionais, tão desrespeitados, tão violentados, suas terras invadidas, tentativas de apagar suas culturas — como em Canoas, onde a ignorância governamental sobre o tema avança sobre histórias ancestrais.
E enquanto o Brasil enfrenta suas próprias chagas, o mundo lá fora não está melhor. Um carro atropela uma multidão em Los Angeles; um barco turístico naufraga no Vietnã, levando consigo dezenas de sonhos afogados. O ex-presidente da Coreia do Sul é indiciado, Gaza sangra com mais de 38 mil vítimas, e a ajuda humanitária vira moeda de barganha em mesas de negociação onde ninguém quer ceder. Trump, sempre ele, anuncia tarifas insanas enquanto processa jornais, como se a verdade fosse uma mercadoria a ser comprada ou silenciada.
E as guerras? Ah, as guerras! No sul da Síria, a minoria drusa luta para não desaparecer. Na Ucrânia, os ataques aéreos não cessam, e o mapa geopolítico se redesenha a cada explosão. Israel e Hamas seguem em um ciclo de violência que já matou mais de 1.200 israelenses e incontáveis palestinos — números que, para muitos, são apenas manchas de tinta em um jornal distante.
Diante de tudo isso, percebi algo que muitos ainda não enxergaram: estamos em guerra, sim, o Mundo vive nova guerra.
Desde os primórdios, quando a barbárie era lei, o ser humano aperfeiçoou sua capacidade de destruir. Na pré-história, ossos e pedras eram armas suficientes para disputas entre tribos rivais. Depois vieram as lanças, os arcos, as flechas com pontas afiadas — cada avanço, um salto na eficiência da morte.
Com os metais, a carnificina ganhou requinte. Machados, clavas, espadas e adagas tornaram-se extensões do ódio humano. Por volta de 2000 a.C., os cavalos foram domesticados não só para o transporte, mas principalmente para a guerra. Hititas e egípcios os usavam para esmagar inimigos, enquanto cidades muradas tremiam diante de catapultas que arremessavam pedras incendiárias.
A China, berço de tantas invenções, nos deu a pólvora no século IX. E assim, a destruição escalou. Canhões no século XIV, mosquetes no XV, pistolas e rifles no século XVI. Cada século trouxe uma nova forma de matar mais rápido, mais longe, em maior escala.
O século XIX nos presenteou com as metralhadoras, e o XX elevou a barbárie a níveis industriais. Bombas que arrasaram cidades inteiras, gases tóxicos que corroíam pulmões na Primeira Guerra, agentes biológicos usados como armas no Vietnã. E, é claro, a bomba atômica — o ápice da loucura humana — que reduziu Hiroshima e Nagasaki a túmulos de milhares em segundos.
Até mesmo o Brasil tem seus fantasmas bélicos. No livro “Genocídio Americano: A Guerra do Paraguaí” de Julio José Chiavenato conta que as tropas brasileras, sob o camando de Duque de Caxias, em 1864, já havia usado elementos biológicos na guerra.Segunto Chiavenato, houve o uso de cadáveres de soldados brasileiros contaminados com cólera que foram jogados em rios que passavam por cidades paraguaias e que, certamente, gerou grande quantidade de mortos civis do suposto inimigo. Há relatos controversos, como os do livro de Chiavenato, que mencionam o uso da cólera como arma biológica. Embora alguns historiadores questionem essa versão, o fato é que a guerra sempre encontrou formas cruéis de ampliar seu poder de destruição.
Hoje, os drones substituem soldados, e algoritmos decidem alvos. A violência se tornou asséptica, distante, quase virtual. Mas não menos mortal.
Se antes as batalhas eram travadas em campos de sangue, hoje elas ocorrem em bolsas de valores, em salas de reuniões, em decretos de tarifas e sanções econômicas. A economia globalizada é o novo campo de batalha, e os combatentes são bancos centrais, corporações multinacionais e acordos comerciais.
A internacionalização da economia começou no século XIX, com a Revolução Industrial e a expansão das ferrovias. Em 1944, Bretton Woods criou o FMI e o Banco Mundial, instituições que moldaram o mundo pós-guerra. Mas foi nos anos 1980 que a globalização explodiu, com a desregulamentação financeira e a ascensão da tecnologia.
Hoje, nenhum país é uma ilha. Uma medida econômica nos EUA afeta empregos na China, que por sua vez impactam o preço de diferentes produtos e serviços no Brasil. Quando Trump impõe tarifas ou a Europa retalia com sanções, são os trabalhadores, os pequenos comerciantes, os consumidores de países distantes que pagam o preço — muitas vezes sem saber por quê.
Esta é a Terceira Guerra Mundial. Não há trincheiras, mas há vítimas. Não há soldados armados, mas milhares morrem por armas que nunca viram. Não há tanques, mas há nações inteiras esmagadas por dívidas impagáveis. As armas estão nas medidas econômicas e as armas de fogo estão ao lado para garantir sua aplicação. O objeto de cobiça? Insumos raros — minerais raros em terras distantes, petróleo, água — tudo o que alimenta a máquina do progresso, o avanço tecnológico e do domínio de territórios e de culturas.
A Primeira Guerra foi pelo domínio de colônias. A Segunda, pelo mesmo motivo, disfarçado de ideologia. A Guerra Fria dividiu o mundo em blocos, inovou com a implantação de espiões como armas, mas a sede por poder nunca mudou.
Hoje, a espada é o controle financeiro, e o escudo é a dependência econômica. Grandes potências não precisam mais invadir — elas compram, pressionam, estrangulam. E no centro disso tudo está a mesma velha ganância, o mesmo egoísmo que transforma seres humanos em números em um balanço contábil.
As perguntas que ficam são: como resistir? Como não nos tornarmos cúmplices dessa máquina de destruição?
Talvez a resposta esteja em pequenos gestos: questionar, não aceitar discursos prontos, lembrar que por trás de cada crise há rostos, histórias e vidas. A guerra econômica não é abstrata — ela decide quem come e quem passa fome, quem tem emprego e quem é descartável.
Se há uma batalha a ser travada, é dentro de nós. Contra a indiferença, contra a normalização da barbárie. Porque enquanto aceitarmos que a humanidade caminhe para as trevas, seremos todos, em algum nível, responsáveis por ela. E você, o que está fazendo para mudar isso em seu meio?
VERDADE ESCONDIDA: O OUTRO
José Augusto Zaniratti 14/07/2025
A vida adulta, muitas vezes, nos deixa indiferentes, secos e solitários. A luta pela sobrevivência nos endurece a ponto de nos tornarmos egoístas. A tão sonhada individualidade, a busca insana pela própria identidade nos torna individualistas a ponto de querer levar vantagem em relação a tudo, mesmo que isso custe prejuízo a alguém.
Mas são as nossas escolhas que oportunizam a mudança de valores, corrompendo princípios. Nossas práticas estão no ápice da individualidade, pode se revelar uma jornada solitária e desumanizada. A busca incessante pelo sucesso profissional e pela realização pessoal, frequentemente impulsionada por uma sociedade que valoriza o individualismo, nos torna, paradoxalmente, seres isolados e indiferentes ao próximo. A competição implacável, a busca desenfreada pelo acúmulo de bens materiais e o culto à imagem perfeita nas redes sociais criam uma ilusão de independência que obscurece a nossa intrínseca dependência dos outros.
A jornada rumo à tão almejada autonomia começa, ironicamente, com uma profunda dependência. Desde o nascimento, somos completamente dependentes de nossos pais, familiares e cuidadores. Precisamos deles para a sobrevivência física, para o desenvolvimento emocional e para a construção de nossos primeiros laços afetivos. Se nos compararmos com a vida animal, os humanos são os seres vivos mais dependentes dos outros da sua espécie e mais frágeis ao nascer de todo reino animal do planeta.
A educação, um pilar fundamental para o nosso crescimento, também nos coloca em contato com uma rede de pessoas: professores, colegas, mentores, todos contribuindo para a nossa formação intelectual e moral. A escola, mais do que um espaço de aprendizado, é um ambiente de socialização, onde aprendemos a interagir, a cooperar e a construir relações.
Essa dependência, no entanto, não se limita à infância. Ao longo da vida, continuamos a depender dos outros para inúmeras tarefas e necessidades. A saúde, por exemplo, é um bem precioso que depende da expertise de profissionais médicos, enfermeiros, terapeutas e outros especialistas. No âmbito profissional, o sucesso depende da colaboração com colegas, da orientação de superiores e da interação com clientes. A infraestrutura que sustenta nossas vidas – transporte, energia, comunicação, alimentos – é resultado do trabalho conjunto de milhões de pessoas, muitas delas anônimas, que contribuem diariamente para o funcionamento da sociedade.
A complexidade das relações humanas, muitas vezes ignorada em nossa busca individualista, é evidente em cada aspecto de nossas vidas. A produção de alimentos, por exemplo, envolve um processo complexo que vai desde o agricultor que planta até o comerciante que vende. A tecnologia que utilizamos diariamente, desde os smartphones até os sistemas informatizados que gerenciam nossas finanças, é resultado de anos de pesquisa e desenvolvimento, envolvendo a colaboração de inúmeros engenheiros, programadores e cientistas. A segurança e o bem-estar da nossa comunidade dependem da atuação de policiais, bombeiros, agentes de saúde e outros profissionais que garantem a ordem e a paz social.
Mesmo assim, nem bom dia damos ao passar por uma pessoa, nem sabemos quem é nosso vizinho. Ignoramos esses elos. Cruzamos ruas sem cumprimentar ninguém. Evitamos o olhar do entregador. Deixamos de visitar os avós porque "não temos tempo", porque são velhos. Vivemos como se fôssemos ilhas, mas somos pontes. Esquecemos os aniversários por serem desimportantes, como se somente nós fossemos importantes.
A nossa sociedade moderna, com sua ênfase na individualidade e na competição, muitas vezes nos faz esquecer dessa intrínseca interdependência. A cultura do “faça você mesmo”, tão presente em nosso cotidiano, pode nos levar a uma ilusão de autossuficiência, obscurecendo a complexa rede de relações que sustenta nossas vidas. A facilidade de comunicação proporcionada pela internet, embora conecte pessoas em todo o mundo, também pode contribuir para o isolamento social, criando bolhas virtuais onde interagimos com pessoas que compartilham nossos mesmos pontos de vista, reforçando nossos preconceitos e limitando nossas perspectivas. Nos deixamos levar pelo comportamento hostil, pelos logaritmos que nos acomoda em nossas bolhas sociais virtuais e nos faz acreditar que nos bastamos e confundimos isolamento com felicidade. Esquecemos que dependemos dos outros pra tudo.
A falta de reconhecimento da importância do outro em nossas vidas tem consequências negativas tanto para o indivíduo quanto para a sociedade. A indiferença, a falta de empatia e a competição exacerbada geram um clima de desconfiança e hostilidade, dificultando a construção de relações sólidas e duradouras. A solidão, cada vez mais frequente em nossa sociedade, é um reflexo dessa desconexão com o próximo, gerando problemas de saúde mental e diminuindo a qualidade de vida.
Civilizações não são feitas de indivíduos, mas de laços. A grandeza humana está na cooperação — das pirâmides do Egito às vacinas que salvam milhões. Se hoje você lê este texto, é porque alguém plantou algodão para sua camisa, alguém gerou a energia do seu dispositivo, alguém ensinou seu autor a escrever.
A tecnologia, apesar de seus benefícios, também tem contribuído para o isolamento social. As redes sociais, embora permitam a conexão com pessoas em todo o mundo, podem criar uma falsa sensação de pertencimento, substituindo a interação real por uma interação virtual, superficial e muitas vezes vazia. A busca incessante por curtidas e aprovação nas redes sociais pode gerar uma dependência nociva, não de pessoas, mas da aprovação e do falso reconhecimento, levando à ansiedade, à depressão e a uma distorção da realidade.
A solução para esse problema não reside na negação da individualidade, mas sim no reconhecimento da nossa intrínseca interdependência. Precisamos resgatar o valor das relações humanas, cultivando a empatia, o respeito e a solidariedade. Precisamos aprender a valorizar a contribuição de cada indivíduo para a sociedade, reconhecendo que somos todos parte de uma grande teia de relações, onde cada elo é fundamental para o funcionamento do todo.
A construção de uma sociedade mais justa e solidária exige um esforço coletivo, que começa com a mudança de mentalidade individual. Precisamos abandonar a ilusão da independência e reconhecer a nossa dependência dos outros, não como uma fraqueza, mas como uma oportunidade de construir relações mais significativas e duradouras. Aprender a valorizar o outro, a reconhecer sua importância em nossas vidas, é fundamental para a construção de uma sociedade mais humana e solidária.
A simples ação de cumprimentar um vizinho, de ajudar um idoso a atravessar a rua, de participar de um projeto social, são gestos aparentemente pequenos, mas que podem fazer uma grande diferença na vida das pessoas e na construção de uma comunidade mais unida e solidária. Precisamos resgatar a importância dos laços humanos, cultivando relações autênticas e significativas, baseadas no respeito mútuo e na colaboração.
É fundamental lembrar que a felicidade não se encontra na busca solitária pelo sucesso, mas sim na construção de coletivos fortes, relações significativas e duradouras com os outros. A verdadeira independência não reside na autossuficiência, mas sim na capacidade de reconhecer a nossa dependência dos outros e de construir relações baseadas na empatia, no respeito e na solidariedade. A vida, afinal, é uma teia complexa de relações, onde cada indivíduo desempenha um papel fundamental. Ignorar essa realidade é ignorar a própria essência da existência humana. O outro não é apenas importante, ele é essencial. A nossa sobrevivência, o nosso bem-estar e a nossa felicidade dependem, inegavelmente, da nossa capacidade de nos conectarmos com o próximo.
E ainda assim muitos acreditam que o outro não importa. Viver sem o outro é absolutamente impossível. Desprezar o outro é cavar o próprio abismo. Reconhecê-lo — com gratidão, não com vergonha — é o primeiro passo para uma vida que vale a pena ser vivida. Afinal, como disse o poeta: "Ninguém é tão forte que não precise do outro, nem tão fraco que não possa ajudar" (frase atribuída a Sebastião Barros Travassos).
Em tudo e para tudo dependemos do outro. Nossas escolhas escondem a importância do outro. Nossa arrogância nos conduz, inexoravelmente, para as trevas.
ANSIEDADE: EGO E EXPECTATIVAS FORA DA REALIDADE
José Augusto Zaniratti 07/07/2025
Em nosso tempo, viver é caminhar sobre trilhos altamente competitivos, é sofrer pressão por sucesso profissional e metas frequentemente inatingíveis, criando um ambiente propício ao aumento da ansiedade. A cultura da comparação, exacerbada pelas redes sociais, desempenha um papel crucial. As plataformas digitais mostram apenas o lado positivo da vida, levando muitos a se sentirem inadequados e frustrados ao comparar suas realidades com as vidas aparentemente perfeitas dos outros.
A constante conectividade e a pressão por estar sempre disponível intensificam o estresse e a ansiedade. O medo de perder oportunidades ou não atender às expectativas alheias afeta a saúde mental de muitos. Incertezas econômicas e políticas também atuam como gatilhos, criando um ambiente de instabilidade que amplifica a insegurança.
O uso excessivo de tecnologia, especialmente das redes sociais, está fortemente associado ao aumento da ansiedade. A exposição constante a informações negativas, a pressão por curtidas e a comparação com a vida dos outros geram um ciclo vicioso de ansiedade e baixa autoestima. A dependência digital e a dificuldade de desconectar-se da tecnologia contribuem para o estresse e a falta de descanso, exacerbando a ansiedade.
Pesquisas indicam que o uso excessivo de redes sociais pode levar a um aumento nos sentimentos de solidão e insatisfação. A ideia de estarmos sempre conectados, mas paradoxalmente mais isolados, é uma realidade para muitos. Essa desconexão emocional aumenta a sensação de inadequação e, consequentemente, a ansiedade.
Algumas pessoas têm maior propensão a desenvolver transtornos de ansiedade devido a fatores biológicos e hereditários. Desequilíbrios químicos no cérebro, como níveis alterados de serotonina e dopamina, também podem contribuir para o desenvolvimento da ansiedade.
Experiências de vida traumáticas, como perdas significativas ou situações de estresse extremo, aumentam o risco de desenvolvimento de ansiedade. Estilos de vida pouco saudáveis, como falta de sono, alimentação inadequada e sedentarismo, também impactam negativamente a saúde mental. A capacidade de lidar com o estresse e a resiliência individual também influenciam na vulnerabilidade à ansiedade.
Acredito que a origem primordial da ansiedade reside nas expectativas inatingíveis que temos em relação à estética, inteligência e conhecimento. Quando acreditamos dominar um assunto, desconsideramos a avaliação, revisão e oportunidades de desenvolvimento. Isso cria uma armadilha: o conhecido é visto como perfeito e estático, enquanto o desconhecido é temido.
A ansiedade, o fantasma do século XXI, não é um mal abstrato; é o grito de um ego que impõe regras à realidade. A contradição que nos sufoca é a busca por controle absoluto em um mundo imprevisível. Desse abismo nasce o pânico. A sociedade moderna, com sua cultura da perfeição, alimenta essa angústia. Redes sociais, vitrines de vidas editadas, onde sorrisos são filtrados e conquistas infladas, criam uma ilusão que compramos ingenuamente. Nos comparamos não a pessoas reais, mas a arquivos digitais de indivíduos que, presumimos, nunca tropeçam, nunca hesitam, nunca choram no travesseiro. O ego se alimenta dessa mentira, da fantasia de imunidade ao caos humano, se apenas nos esforçássemos o suficiente.
O cerne do problema reside na discrepância entre o planejamento e a execução. Planejamos como deuses, com projetos impecáveis em nossas mentes – carreiras, relacionamentos, corpos – e esperamos que a realidade obedeça, como um servo fiel. Quando a vida, sempre rebelde, resiste, o ego se revolta. É quando ficamos indignados quando nosso planejamento fracassa. Essa expectativa de velocidade e precisão em um processo inexplorado é uma das principais causas de ansiedade nos dias atuais.
Epicteto, o filósofo estoico, já advertia sobre a arrogância do "já saber", a morte do aprendizado. Nosso erro é tratar a primeira tentativa como prova final. Escrevemos um texto e esperamos genialidade instantânea; iniciamos um negócio e exigimos sucesso imediato; amamos e cobramos um romance sem atritos. É como plantar uma semente e, no dia seguinte, arrancá-la por não ter se transformado em árvore. O ego não tolera a espera; ele anseia por vitórias, não pelo processo. Como Epicteto sabiamente disse: "Se você quer ser melhor do que realmente é, comece aceitando exatamente quem você é agora."
As flores murcham, as estrelas explodem, até os diamantes têm fissuras. Assim é a humanidade, imperfeita, se assim não fosse, seríamos deuses. Nossa natureza exige, todos os dias, ações para melhorarmos. Mas o ego, nosso ditador interno, nos convence de que seremos a exceção. E quando falhamos (porque falhamos), ou não somos rápidos o suficiente, a ansiedade surge como um alarme: "Você está aquém do que deveria ser!".
O antídoto reside no abraço da condição humana. Substitua "deveria" por "está sendo". Experimente criar ações que sustentem a afirmação: "estou aprendendo a ser melhor no que faço". Troque a comparação por curiosidade: aquela colega "perfeita" no Instagram? Ela também treme antes de falar em público e esconde fotos com espinhas ou rugas e cicatrizes. Celebre os rascunhos da vida: a primeira versão de tudo é ruim – seja um livro, um amor ou você mesmo. O que importa é a coragem de continuar riscando e reescrevendo.
A ansiedade perde força quando aceitamos nossa condição de obras em progresso. Sim, seu projeto vai falhar. Sim, você dirá bobagens. Sim, haverá dias em que se sentirá pequeno. Mas é nessa vulnerabilidade que reside o verdadeiro crescimento – longe da tirania do ego, perto da humildade de quem sabe que a vida não é um produto final, mas um rascunho sempre revisado. A paz começa quando trocamos o "preciso ser perfeito" por "estou vivo – e isso já é um experimento ousado".
A ansiedade pode ser amenizada quando, ao planejarmos algo, reconhecemos que o processo pode demorar. A perfeição não é um objetivo realista. Precisamos aceitar que será necessário repetir muitas vezes, analisar e reanalisar até chegarmos a um resultado satisfatório, que não necessariamente será perfeito.
A aceitação da imperfeição é crucial para a redução da ansiedade. Ao nos permitirmos falhar e aprender com nossos erros, criamos espaço para o crescimento pessoal. Essa mudança de perspectiva é libertadora, pois nos permite ver o aprendizado como um processo contínuo, em vez de um objetivo fixo.
A prática é central na superação da ansiedade. A repetição de atividades, a busca pelo aprimoramento e a disposição para enfrentar desafios são fundamentais para o desenvolvimento da resiliência. Ao nos dedicarmos a um processo de aprendizado contínuo, transformamos a ansiedade em motivação e crescimento pessoal.
A resiliência, a capacidade de se adaptar e recuperar diante das adversidades, requer tempo e esforço, mas é uma das chaves para lidar com a ansiedade eficazmente. Cultivar a inteligência emocional de crescimento, onde os erros são vistos como oportunidades de aprendizado, pode mudar completamente nossa abordagem em relação à vida e suas exigências. Do contrário, a ansiedade pode nos levar às trevas. A jornada rumo à superação da ansiedade é um processo contínuo de aprendizado, aceitação e resiliência, onde a imperfeição é abraçada como parte integrante do crescimento pessoal. Ao término deste texto, creio que escrevi uma autocrítica e assim, quem sabe, começar a fugir das trevas.
VERDADE ESCONDIDA:
O Algoritmo da Felicidade que Ninguém te Ensina
José Augusto Zaniratti 30/06/2025
Vivemos em uma sociedade que nos ensina, desde cedo, que a felicidade está no acúmulo: ter mais dinheiro, mais posses, mais status. Acordamos correndo, trabalhamos exaustivamente para garantir o sustento, e muitos acreditam que o sacrifício diário será recompensado nas férias ou nos momentos de lazer. No entanto, quando esses momentos chegam, muitas vezes sentimos um vazio. As experiências não preenchem como esperávamos, e então começamos a planejar a próxima fuga, o próximo consumo, na esperança de que, dessa vez, a felicidade finalmente apareça.
Alguns buscam preencher esse vazio com prazeres imediatos—seja em excessos alimentares, vícios em jogos ou redes sociais, relacionamentos superficiais baseados em validação externa, na ilusão de que a felicidade está em momentos fugazes de euforia. Mas, no fim, percebemos que essa busca incessante por algo externo apenas transforma a vida em um fardo, em vez de um caminho de aprendizado e realização.
Aristóteles, um dos maiores filósofos da história, oferece uma visão diferente: a felicidade se conquista na prática constante da virtude — que nada mais é do que agir com excelência em cada escolha, grande ou pequena. O que temos não produz felicidade, ela está contida no que somos e fazemos. Ela não é um destino, são escolhas, está em nossa prática diária — a excelência no agir, a virtude.
Para Aristóteles, a felicidade (eudaimonia) não é um estado passageiro de prazer, mas uma vida bem vivida, baseada na virtude (aretê). Enquanto hoje associamos felicidade a emoções positivas ou conquistas materiais, o filósofo grego a via como o resultado de uma vida ética, em que agimos com excelência em tudo o que fazemos.
A virtude, nesse sentido, não é apenas uma qualidade moral, mas a capacidade de agir da melhor forma possível em cada situação. É fazer o que é certo, mesmo quando é difícil, mesmo quando ninguém está olhando, mesmo quando o caminho mais fácil nos tenta. Uma professora que se recusa a aceitar propina para aprovar alunos, um médico que trabalha em uma comunidade carente sem esperar recompensa financeira, um empreendedor que prioriza a sustentabilidade e o bem-estar dos funcionários em detrimento do lucro máximo – esses são exemplos de pessoas que buscam a virtude em suas ações.
Vivemos em um mundo que nos vende a ideia de que felicidade pode ser comprada. Propagandas, redes sociais e até mesmo nossas conversas cotidianas reforçam a crença de que ter mais — um carro melhor, uma viagem dos sonhos e milhares ou milhões de “likies”. No entanto, quantas vezes alcançamos esses objetivos e ainda nos sentimos incompletos? Um like dura um segundo; a dignidade de agir certo dura uma vida e nos trará satisfação plena. O prazer momentâneo não é felicidade. Uma compra nova pode nos dar alegria por alguns dias, assim como uma festa ou uma experiência intensa pode nos deixar eufóricos por algumas horas. Mas e depois? O vazio retorna, porque a verdadeira felicidade não está no externo, mas na forma como vivemos e nos relacionamos com o mundo.
Enquanto nossa cultura celebra o prazer imediato, Aristóteles já alertava: buscar apenas isso é se nivelar aos animais. A felicidade humana está em algo maior — na razão, na ética, na realização de nosso potencial.
Significa fazer o que é certo, não por obrigação, mas por entendermos que é o melhor caminho. É tratar os outros com respeito, mesmo quando não nos tratam da mesma forma. É ser honesto, mesmo quando a mentira seria conveniente. É ter coragem para enfrentar desafios, mesmo quando o medo nos paralisa.
Aristóteles fala que a virtude está no meio-termo, no equilíbrio. Por exemplo: a coragem é o meio entre a covardia e a temeridade; a generosidade é o meio entre a avareza e o desperdício; a paciência é o meio entre a passividade e a irritabilidade.
Viver virtuosamente exige prática constante. Não é algo que alcançamos de uma vez por todas, mas um hábito que cultivamos todos os dias.
Mas e quando a virtude custa caro? Essa pergunta atravessa séculos e ainda nos desafia. Não é fácil viver com virtude em um mundo que premia o individualismo e o sucesso a qualquer custo. Ser virtuoso significa pagar preços visíveis: recusar promoções que exigem comprometer valores, perder “oportunidades” que beneficiam a você mas prejudicam outros, ou escolher a honestidade quando o silêncio seria mais conveniente.
Mas qual o preço de não pagar esse preço? Quando cedemos ao caminho fácil, perdemos pedaços de nós mesmos. A incoerência corrói nossa integridade, o conformismo esvazia nosso propósito, e o arrependimento - esse sim - cobra juros altíssimos com o tempo. Aristóteles nos lembra: “a virtude não é um luxo para tempos fáceis, mas a única moeda corrente em uma vida verdadeiramente plena."
Essas escolhas podem ser solitárias. Podemos ser chamados de "ingênuos" ou "fracos" por aqueles que preferem o caminho mais fácil. Mas, no longo prazo, é essa coerência que constrói uma vida com significado.
Aristóteles também enfatiza a importância do autoconhecimento. Para agir com virtude, precisamos nos entender. Já se perguntou: Quais são nossos valores reais? O que realmente importa para nós? Estamos vivendo de acordo com nossas convicções ou apenas seguindo o fluxo?
Muitas vezes, nos perdemos na busca por aprovação, sucesso ou conforto, e esquecemos de olhar para dentro. A felicidade plena só é possível quando nossas ações estão alinhadas com quem realmente somos — e não com quem o mundo espera que sejamos.
No fim, a lição de Aristóteles é clara: a felicidade não está no que temos, mas no que somos. Não é um produto que compramos, mas uma forma de viver.
Enquanto buscarmos a felicidade em coisas externas — seja dinheiro, fama e prazeres momentâneos — sempre sentiremos falta de algo. Mas quando passamos a agir com virtude, com excelência em cada pequeno ato, descobrimos que a verdadeira felicidade já estava dentro de nós, esperando para ser exercida. Era uma verdade esquecida, uma prática abandonada.
Ao ler este texto posso ser rotulado como piegas, ingênuo e o texto considerado de autoajuda. Estou disposto a correr esse risco, mas tu estás disposto a correr o risco de ser infeliz eternamente?
A escolha é nossa: continuar carregando a vida como um fardo, na esperança de que um dia algo externo nos complete, ou assumir o desafio de viver com propósito, ética e autenticidade. No final das contas, felicidade não se compra, não se herda, não se conquista por acaso. Felicidade se vive — ou melhor, se é.
VERDADE ESCONDIDA:
A CORRUPÇÃO HABITA NOSSA CASA?
José Augusto Zaniratti 23/06/2025
O Brasil vive uma esquizofrenia coletiva em relação à corrupção. Por um lado, há uma exaustão legítima e um ódio visceral direcionado aos políticos e governantes. Parlamentares e agentes públicos são frequentemente pintados com o mesmo pincel grosso da corrupção generalizada, responsabilizados por todos os males nacionais – da fome que assola milhões à violência urbana descontrolada e o crime organizado. Esse discurso, amplificado pelas redes sociais e pela mídia, cria um clima de descrença absoluta nas instituições e um sentimento de impotência coletiva.
Por outro lado, esse discurso generalizante e simplista serve perfeitamente aos interesses de quem almeja o poder. É uma arma retórica infalível: prometer "acabar com a corrupção" (sempre atribuída ao adversário) soa como música aos ouvidos de uma população desiludida. O problema reside na superficialidade desse engajamento. A esmagadora maioria dos eleitores, não acompanha a trajetória prévia dos candidatos, não analisa programas de governo com rigor, não fiscaliza o mandato dos eleitos e, muitas vezes, sequer lembra em quem votou meses depois. A escolha é frequentemente pautada por simpatia superficial, por promessas vazias, por influência de líderes comunitários ou por puro revanchismo político. O resultado? O mesmo ciclo se perpetua: elegemos os que criticamos e nos surpreendemos quando eles agem como sempre agiram.
Aqui chegamos ao cerne da questão levantada por Leandro Karnal: o culto ao mito da "corrupção isolada". É reconfortante, psicologicamente, acreditar que o mal está confinado a um partido, a um governo, a um grupo específico de "bandidos de colarinho branco". Isso nos absolve. Karnal, com sua lucidez habitual, vai mais fundo: a corrupção nasce no seio das famílias. Isso não é exagero, é uma constatação sociológica e psicológica fundamental.
Criamos os corruptos de amanhã, todos os dias? Será? Pense na pedagogia do choro e da chantagem: Quando cedemos sistematicamente ao chilique da criança no supermercado, ensinamos que a manipulação emocional é uma ferramenta eficaz para burlar regras e obter vantagens. O "prêmio" pelo comportamento inadequado (a guloseima proibida, o brinquedo desnecessário) é a primeira lição de que a ética pode ser flexibilizada pelo desejo individual. Mais tarde, esse mesmo indivíduo pode achar natural chantagear emocionalmente um superior para obter um benefício no trabalho ou simular sofrimento para conseguir um atestado médico falso.
O exemplo do "recibo de dentista comprado para o imposto de renda" é clássico, mas a lista é vasta: Ajustar o marcador de quilometragem do carro para vender mais caro; mentira consentida e ensinada como "esperteza"; declarar dependente que não é (filho maior, sobrinho); fraude direta ao fisco, normalizada como "direito de todo mundo"; pedir nota fiscal de CPF diferente (de laranja) para abater mais, burla consciente ao sistema tributário.
Outros exemplos clássicos: o "desconto" por fora no serviço do pedreiro/encanador: Envolve explicitamente a sonegação fiscal e a conivência do consumidor. O dano vai além do cofre público: o pedreiro que não emite nota não contribui para o INSS, não tem direitos trabalhistas. Quando ele adoecer ou envelhecer, quem pagará a conta? A sociedade. E o consumidor que aceitou o "desconto" compactuou com essa precarização.
A cultura do atestado falso e da mentira institucionalizada é muito ampla: o "atestado médico comprado para justificar a falta do filho vagabundo" e não fez a prova, é um exemplo brutal. Os pais, ao fazerem isso, ensinam que a verdade é descartável quando incomoda. Mostram que instituições (a escola, o sistema de saúde) podem e devem ser enganadas para benefício pessoal. Validam a preguiça e a irresponsabilidade do filho, privando-o da consequência natural de seus atos (a falta na prova, a nota baixa). Mais ainda, corrompem a relação com o profissional de saúde, transformando-o em um fornecedor de mentiras por conveniência. Como exigir ética desse mesmo filho quando ele for um empresário que precisa de um laudo ambiental "flexibilizado"?
O "furinho" na fila, o "jeitinho" no atendimento, isso é bem comum, ainda. Quando ensinamos os filhos a mentir sobre a idade para pagar meia-entrada, a dizer que é parente para furar fila em evento, ou a "puxar saco" do atendente para conseguir um benefício indevido, estamos treinando futuros adultos especialistas em tráfico de influência, em suborno sutil e em desrespeito às regras coletivas. Essa prática reforça “regras” imorais: "Você é o mais importante, as regras são para os outros” ou pior, “use sua esperteza para levar vantagem."
Outra forma de construir pseudas verdades: "achou, é seu" versus o esforço honesto de devolver um objeto perdido. Ficar calado quando o caixa do supermercado erra a seu favor (dá troco a mais, não cobra um item). O silêncio cúmplice é uma forma de corrupção passiva, de apropriação indébita consentida. Copiar trabalho escolar, colar em provas, comprar monografias: Tudo ensinado ou tolerado em casa como "mal necessário" para passar de ano. Forma profissionais desonestos e despreparados.
O resultado deste currículo oculto da corrupção doméstica? Gerações que internalizam desde cedo que:
Leis e regras são flexíveis se você for "esperto" o suficiente.
A ética é um obstáculo, não um valor.
O bem comum é um conceito abstrato; o que importa é a vantagem individual ou do núcleo familiar imediato.
A culpa sempre é do "outro", especialmente do político, uma figura distante e conveniente para projetar nossas próprias falhas morais.
A hipocrisia coletiva, isto é, condenar a corrupção alheia enquanto se pratica a própria – tem consequências políticas gravíssimas:
Despolitização da Sociedade: Se a corrupção é vista como um mal inerente apenas à "classe política" (da qual nos distanciamos moralmente), perdemos a noção de como o poder e as decisões que afetam nossas vidas realmente funcionam. Não nos vemos como parte do sistema, apenas como vítimas impotentes. Isso leva ao desinteresse, à apatia e à falta de fiscalização efetiva por parte da sociedade civil organizada. Não acompanhamos as votações, não lemos os projetos, não cobramos os vereadores, deputados e senadores que elegemos.
Oportunismo Político: Esse vazio de engajamento crítico e essa raiva difusa contra "os políticos" é o terreno perfeito para a ascensão de aventureiros e demagogos. Eles surfam na onda do anti-establishment, prometendo soluções simples e mágicas para problemas complexos, sempre atribuindo a culpa ao "inimigo" político corrupto. Como a população não analisa a história, as alianças e os compromissos reais desses candidatos, eles são eleitos com base apenas no discurso inflamado. Muitas vezes, esses mesmos salvadores revelam-se os mais corruptos ou incompetentes, alimentando ainda mais o ciclo de descrença.
Culpa Projetada: É psicologicamente mais confortável culpar os políticos por todos os males do que encarar nossa parcela de responsabilidade. Eles se tornam os bodes expiatórios perfeitos. Como se nós fôssemos seres virtuosos sem práticas corruptas gravadas em nosso currículo. Negamos nossa cumplicidade nos pequenos atos ilícitos que, em escala nacional, minam os recursos públicos, enfraquecem as instituições e corroem a confiança social. Como explicar, senão por essa cumplicidade passiva ou ativa, acordos obscuros que prejudicam diretamente a população, como descontos em aposentadorias sem o consentimento explícito dos aposentados? A passividade diante de tais medidas é também um fruto da cultura da corrupção normalizada.
A Aceitação Social da Corrupção Política "Pragmática": A prática das emendas parlamentares como moeda de troca para aprovar projetos do governo é sintomática. Muitos a veem como "o jogo político", algo inevitável e até necessário. Essa aceitação tácita – por parte da população e até de parte da mídia – de que certos níveis de corrupção são o preço a pagar pela governabilidade é a antítese da ética na política. Ela não distingue esquerda ou direita; é um mal endêmico do sistema, alimentado pela nossa própria resignação e pela falta de pressão por mecanismos transparentes e baseados na necessidade real de alocação de recursos.
A solução é tão complexa quanto o problema e exige uma mudança de paradigma cultural profunda. Não basta combater a corrupção "no topo"; é preciso extirpá-la do cotidiano, do seio familiar, do nosso próprio comportamento.
Não tenho uma receita milagrosa para enfrentar a corrupção cultural e socialmente implantada, mas penso que há ações sob nossa governabilidade que podem romper este círculo vicioso para um círculo virtuoso. No âmbito familiar, por exemplo:
Substituir a Pedagogia do Choro pela Pedagogia do Diálogo e do Limite: Ensinar às crianças que desejos não são direitos absolutos, que frustração faz parte da vida e que manipulação não é estratégia aceitável.
Valorizar a Honestidade acima da "Esperteza": Celebrar atos de honestidade (devolver o troco a mais, encontrar o dono do objeto perdido) com o mesmo entusiasmo com que se celebra uma nota alta.
Explicar o Porquê das Regras: Não basta dizer "não pode"; é preciso explicar que as regras de trânsito salvam vidas, que pagar impostos financia hospitais e escolas, que a fila é uma forma de justiça.
Assumir os Próprios Erros (inclusive os pais): Mostrar que errar é humano, mas assumir a responsabilidade e reparar o dano é fundamental. Se o pai foi pego no "gato" de luz, deve assumir a multa e pagar corretamente, explicando à família o erro.
Abolir Atestados Falsos, Notas Fiscais Frias e "Jeitinhos" Ilicitos: Ser radicalmente honesto nas pequenas coisas. Recusar o "desconto por fora". Exigir nota fiscal sempre. Aceitar a multa de trânsito.
Falar Abertamente sobre Corrupção: Discutir notícias de escândalos, mas também refletir sobre os pequenos atos corruptos do dia a dia e seus impactos. Questionar: "Isso que estamos fazendo/aceitando é honesto?"
Responsabilizar pelos Atos: Se o filho faltou à prova por irresponsabilidade, que arque com a consequência (a recuperação, a nota baixa). Não "resolver" com mentira.
Dar o exemplo é sempre educativo, no âmbito político e social, por exemplo:
Escolher Candidatos com Critério: Investigar trajetória, propostas concretas, alianças, ficha limpa. Não votar por simpatia ou revanche. Votar contra porque não foi beneficiado é um erro, olhar para o conjunto da sociedade é o melhor guia.
Acompanhar o Mandato: Seguir os votos, as ações, as indicações do parlamentar eleito. Utilizar portais de transparência.
Cobrar Constantemente: Usar canais de ouvidoria, participar de audiências públicas, escrever para o gabinete, pressionar por respostas. Não esperar só as eleições.
Exigir Reformas Estruturais: Apoiar medidas concretas que aumentem a transparência e reduzam as brechas para corrupção sistêmica (como reforma do sistema de emendas, fortalecimento de órgãos de controle, fim do foro privilegiado para crimes comuns).
Reconhecer e Fortalecer a "Parcela Ínfima": Sim, existe uma minoria que pratica a honestidade radical no cotidiano. São faróis essenciais. É preciso dar visibilidade a essas práticas: Histórias de cidadãos comuns que agem com integridade, comerciantes que recusam sonegar, servidores públicos íntegros. Criar redes de apoio, conectando essas pessoas, mostrar que não estão sozinhas. Valorizá-las socialmente, tornar a honestidade um valor socialmente prestigiado, não motivo de chacota ("trouxa", "ingênuo").
O combate à corrupção no Brasil não será vencido apenas com novas leis ou operações policiais espetaculares. Exige uma revolução ética que comece dentro de casa, no espelho, na forma como educamos nossas crianças e como nos comportamos nas mínimas interações cotidianas. Enquanto continuarmos a achar graça no "jeitinho" ilícito, contar piadas machistas, racistas ou que valorizam a esperteza, a buscar vantagens indevidas, a culpar exclusivamente os políticos e a negligenciar nosso dever de cidadãos vigilantes, estaremos alimentando o mesmo monstro que dizemos odiar.
A "ferrugem na alma do Brasil" só será removida quando entendermos, coletivamente, que cada "graninha" no trânsito, cada nota fiscal não emitida, cada atestado falso comprado, cada mentira para furar fila, cada olhar cúmplice para a sonegação e cada voto dado sem critério e sem cobrança são tijolos a mais no muro da desesperança e da imoralidade que nos aprisiona. A escolha é entre iniciar essa dolorosa, mas necessária, faxina ética desde as bases ou continuar navegando no mar de hipocrisia que nos condena ao fracasso como nação. A mudança começa no berço, mas ecoa nos corredores do poder. Ou mudamos tudo, ou nada realmente mudará, e trilharemos, cada vez mais, para as trevas.
Existência Humana: Vida e Morte
José Augusto Zaniratti 16/06/2025
Se abrirmos um dicionário, encontraremos a morte como antônimo de vida. Uma definição seca, técnica, que reduz um dos maiores mistérios humanos a uma simples oposição de palavras. Mas será tão simples assim? Vivemos no século XXI, onde neurociência, filosofia e espiritualidade nos mostram que essa dualidade é insuficiente para capturar o que realmente significa existir.
Talvez o verdadeiro oposto da morte não seja a vida biológica, mas a lembrança — e o contrário da vida plena não seja a morte física, mas o esquecimento. Imagine: quantas pessoas você conhece que estão "vivas" no sentido biológico, mas já se esqueceram de viver? E quantos mortos seguem mais presentes que muitos vivos porque mantemos suas histórias conosco?
Existir é mais que respirar e metabolizar nutrientes. É ter uma identidade — individual e coletiva — que se desdobra em histórias. Histórias que outras gerações carregam adiante como um legado vivo. Quando um avô conta sobre sua infância para o neto, ele não está apenas transmitindo informações; está estendendo sua existência para além do tempo biológico.
A morte, embora inevitável, não apaga tudo: ela encontra resistência na memória. Lembrar é manter viva a essência do que fomos — nossas lutas, amores, fracassos e aprendizados. Já o esquecimento... esse sim é um tipo de morte em vida. Apaga nomes, apaga dores, apaga até o sentido do que vivemos. Quantas culturas foram apagadas porque ninguém mais lembrava suas línguas ou tradições?
E quando olhamos pela lente espiritual, a coisa fica ainda mais profunda. O budismo fala em renascimento, o cristianismo e o espiritismo na ressurreição, as tradições africanas e indígenas no contínuo diálogo com os ancestrais. Para essas visões, a vida não se reduz ao corpo. A alma (ou energia, ou consciência) segue, evolui, transcende.
A morte, então, não é um ponto final, mas uma vírgula. Se fosse só o vazio depois dela, qual seria o propósito de tudo? Por que amar, criar, deixar marcas? O filósofo Viktor Frankl, sobrevivente do Holocausto, dizia que o sentido da vida está justamente em deixar algo que a morte não pode destruir. E o que seria isso senão o que permanece na memória — dos outros e do universo?
A memória não é um arquivo poeirento no fundo do cérebro. É algo dinâmico, que reconstruímos a cada dia, misturando passado, presente e até o futuro que imaginamos. O filósofo Maurice Halbwachs já dizia: lembrar é recontar, não só repetir. Cada vez que narramos uma história pessoal, a modificamos sutilmente, adaptando-a ao nosso "eu" atual.
E essas narrativas não são só nossas — elas se entrelaçam com as dos outros, formando a identidade de povos, famílias e tradições espirituais. Quando um judeu celebra o Pessach, está revivendo a libertação do Egito. Quando um brasileiro canta "Asa Branca", conecta-se à dor da seca nordestina. Memória coletiva é cola social.
É por isso que a lembrança é tão poderosa. Ela nos liga a quem veio antes — não como nomes em um túmulo, mas como presenças ativas. Um cheiro de bolo que nos leva à infância, uma música que traz o rosto de alguém perdido, um provérbio ou frases repetidas por gerações. Como escreveu Pablo Neruda, "a memória é a pátria dos vivos" — e também dos que já se foram, mas seguem presentes em nós.
Nas culturas indígenas, os mortos são "os que se foram para a floresta". Não desapareceram; mudaram de forma. No México, o Dia dos Mortos transforma cemitérios em festas. São rituais que desafiam o esquecimento. Em Madagascar, a morte não é um adeus definitivo, mas uma transformação — e o Famadihana (ou "Virada dos Ossos") é a prova mais vívida disso. Esse ritual, praticado principalmente pelo povo Merina, desafia a noção ocidental de luto e mostra como a memória pode ser celebrada de forma literalmente palpável. A cada 5 a 7 anos, famílias abrem os túmulos de seus entes queridos (geralmente estruturas de pedra ou cimento) para retirar os corpos envoltos em mortalhas e dançar com eles ao som de música tradicional; trocar as mortalhas por tecidos novos e coloridos; conversar com os ancestrais, contando novidades da família e pedindo bênçãos. É uma festa: com comida, bebida e risadas. Nada de silêncio fúnebre — os mortos são tratados como convidados de honra.
Esquecer pode parecer natural — o cérebro descarta o supérfluo para priorizar o essencial. Mas quando o esquecimento é imposto, vira arma. Ditaduras sabem disso melhor que ninguém: apagam histórias, censuram vozes, reinventam o passado para controlar o presente.
O nazismo não só matou milhões; tentou apagar sua existência. Queimou livros, destruiu culturas judaicas e ciganas, criou uma "verdade" mentirosa. Na União Soviética, fotos eram alteradas para eliminar dissidentes — como se nunca tivessem existido. Hoje, vemos técnicas similares em governos autoritários que apagam protestos da internet ou reescrevem manuais escolares.
Quando uma sociedade esquece, repete erros com assustadora precisão. O genocídio em Ruanda (1994) não surgiu do nada: foi o ápice de décadas de discurso de ódio que muitos fingiram não ouvir. A escravidão no Brasil foi por anos minimizada como "relação benigna", até que movimentos negros forçaram o país a encarar seu passado.
O esquecimento coletivo é como uma doença que corrói culturas. Quantos brasileiros conhecem a história dos povos originários de sua região? Quantos sabem que a "democracia racial" foi mito criado para mascarar racismo? Sem memória crítica, viramos náufragos sem bússola.
Vivemos um paradoxo tecnológico. Nunca guardamos tantos dados — fotos, mensagens, vídeos — mas será que estamos preservando o que importa? Um estudo da Universidade de Harvard alerta: fotos digitais são menos lembradas que as impressas. Rolamos feeds sem absorver, como se experiência virasse consumo descartável.
Pior: a internet pode distorcer a memória. Deepfakes criam "lembranças" falsas. Algoritmos nos trancam em bolhas onde fatos viram opiniões. Um tweet não substitui um avô contando histórias na varanda. Um algoritmo não entende o peso de uma carta amarelada.
Mas há esperança. Projetos como o Museu da Pessoa ou o Youtube da Terceira Idade digitalizam memórias orais. Plataformas como a Wikipedia (quando bem usada) democratizam o conhecimento. A chave é curar — não só acumular — informações.
A boa notícia é que não precisamos ser historiadores para combater o esquecimento. Pequenos gestos contam, como, por exemplo, escrever um diário (mesmo que digital); gravar conversas com idosos buscando as lições que eles viveram; visitar museus locais; ensinar crianças a cozinhar receitas familiares, os sabores que carregam memórias e sempre questionar "verdades" prontas.
No fim, aquela frase inicial — "o contrário da morte é a lembrança" — não é só poesia. É um manifesto. Lembrar é resistir à morte. Lembrar é dar sentido à vida. Seja num altar doméstico, num registro digital, num protesto que exige "nunca mais", estamos tecendo uma rede contra o vazio.
O esquecimento, ao contrário, é o breu. É a vitória das trevas sobre civilizações inteiras. Por isso, sigamos contando histórias — com falhas, com amor, com raiva até. Nomeamos os que partiram. Preservemos fotos embaçadas e cartas com letra trêmula. Porque, no fim das contas, enquanto alguém lembrar de nós, nunca teremos morrido de verdade.
E você? O que fará hoje para que sua história — e a de quem você ama — não vire pó?
José Augusto Zaniratti 09/06/2025
A palavra "baderna", sinônimo de confusão e desordem no Brasil, esconde uma história rica e complexa, repleta de preconceitos sociais e resistência cultural. Sua origem não é um simples acaso linguístico, mas um reflexo de um período histórico específico, onde a elite brasileira, presa a padrões europeus, se chocou com a vibrante cultura afro-brasileira, culminando em uma deturpação da imagem de uma bailarina italiana que ousou integrar diferentes culturas em suas performances.
Marietta Baderna, nascida em Piacenza, Itália, em 1828, não era apenas uma bailarina talentosa, mas uma figura que transcendeu as fronteiras da dança clássica. Filha do médico e músico Antônio Baderna, ela construiu uma carreira de sucesso na Itália e na Inglaterra antes de chegar ao Brasil em 1849 (ou 1851, dependendo das fontes), buscando refúgio da instabilidade política da Itália ocupada pela Áustria. Sua chegada ao Rio de Janeiro marcou não apenas uma mudança geográfica, mas um ponto de inflexão cultural.
Ao contrário da imagem estereotipada da bailarina europeia recatada, Marietta se apaixonou pela cultura brasileira, em especial pelas danças e músicas afro-brasileiras, como o lundu. Em uma sociedade profundamente hierarquizada e marcada pela escravidão, a incorporação de elementos do lundum em suas apresentações de balé clássico foi um ato ousado e revolucionário. Essa inovação, longe de ser recebida com aplausos unânimes, provocou reações diversas, refletindo os conflitos sociais da época.
A elite brasileira do século XIX, presa a uma visão eurocêntrica, via a Europa como sinônimo de cultura e refinamento. A chegada de uma bailarina italiana foi recebida com entusiasmo, reforçando a ideia de que a cultura "legítima" provinha do exterior. A admiração por Marietta, inicialmente, se baseava nessa perspectiva elitista, que ignorava a riqueza cultural existente no Brasil.
Entretanto, a paixão de Marietta pela cultura afro-brasileira quebrou essa visão limitada. Ao incorporar elementos do lundum em suas performances, ela desafiou as convenções sociais e a hierarquia cultural estabelecida. Sua arte se tornou um espaço de encontro e diálogo entre culturas distintas, um ato de resistência contra a imposição de padrões estéticos e culturais.
A popularidade de Marietta atraiu uma legião de fãs fervorosos, que a acompanhavam em suas apresentações e a aclamavam com entusiasmo. Esses admiradores, muitas vezes oriundos das camadas populares, expressavam sua admiração de forma vibrante e desinibida, com aplausos e gritos que ecoavam pelas ruas após os espetáculos. Para a elite, essa manifestação espontânea de alegria e admiração era vista como "bagunça", "algazarra", uma desordem que contrastava com a etiqueta e o comportamento esperado em eventos culturais.
A palavra "baderna", portanto, não surgiu como uma descrição neutra de desordem, mas como uma ferramenta para desqualificar e menosprezar a forma como as camadas populares demonstravam seu apreço pela arte de Marietta. A associação entre o nome da bailarina e o comportamento de seus fãs, carregada de preconceito, transformou um ato de celebração em um sinônimo de desordem e falta de civilidade.
A história de Marietta Baderna e a etimologia da palavra "baderna" nos revelam a complexidade da construção cultural e o impacto do preconceito na linguagem. A palavra, inicialmente associada à admiração e ao entusiasmo, foi deturpada para se tornar um sinônimo de desordem, refletindo a visão elitista e preconceituosa da época.
No entanto, a história de Marietta também representa um ato de resistência cultural. Sua ousadia em integrar elementos da cultura afro-brasileira em sua arte desafiou as convenções sociais e abriu espaço para um diálogo intercultural. Seus fãs, os "badernas", representam a energia e a vitalidade da cultura popular, que se expressava de forma vibrante e autêntica, mesmo diante da desaprovação da elite.
A evolução semântica da palavra "baderna" ilustra como a linguagem pode refletir e perpetuar preconceitos sociais. A apropriação pejorativa de um nome próprio, associado a uma manifestação cultural vibrante, demonstra como a linguagem pode ser usada para silenciar e desqualificar vozes e culturas marginalizadas.
A história de Marietta Baderna nos convida a refletir sobre o poder da linguagem e a importância de desconstruir preconceitos arraigados na nossa cultura. Compreender a origem da palavra "baderna" nos permite ressignificá-la, reconhecendo a riqueza cultural que ela representa, além de seu significado pejorativo. A recuperação da história de Marietta Baderna é um passo importante para desconstruir a visão eurocêntrica e elitista que permeia nossa cultura e nossa linguagem. A palavra "baderna", portanto, não deve ser apenas um sinônimo de desordem, mas um lembrete do legado de resistência cultural de uma bailarina que ousou desafiar as convenções de sua época.
A história de Marietta Baderna e a etimologia da palavra "baderna" nos oferecem uma oportunidade de repensar a nossa relação com a cultura e a linguagem. A palavra, carregada de preconceito histórico, pode ser ressignificada à luz de uma compreensão mais ampla e inclusiva da cultura brasileira. Talvez, ao superarmos os preconceitos que moldaram seu significado, possamos atribuir a "baderna" um novo sentido, que celebre a energia, a vitalidade e a resistência cultural que ela representa. Afinal, a história de Marietta Baderna é uma história de paixão pela dança, pela cultura brasileira e pela superação de barreiras sociais, um legado que merece ser lembrado e celebrado. A "baderna" de seus admiradores, em última análise, foi uma manifestação de entusiasmo e admiração, um testemunho da força da cultura popular em um contexto de opressão e preconceito. Resgatar essa história é resgatar um pedaço importante da nossa identidade cultural. O preconceito nos leva para o caminho das trevas.
José Augusto Zaniratti 02/06/2025
Qual a melhor religião? A pergunta, aparentemente simples, revela uma complexidade intrínseca à condição humana. A busca por significado, propósito e conexão transcendente é uma constante na história da humanidade, manifestando-se em inúmeras formas religiosas e espirituais. A melhor religião, portanto, não pode ser definida por um padrão único e absoluto, mas sim por sua capacidade de promover o bem-estar individual e coletivo, inspirando compaixão, justiça e solidariedade. É aquela que nos ajuda a nos tornarmos pessoas melhores, a cultivar empatia e a contribuir para um mundo mais justo e fraterno. Fazer o bem, a essência de qualquer prática religiosa genuína, se baseia no princípio áureo de tratar os outros como gostaríamos de ser tratados, um princípio universal que transcende as fronteiras dogmáticas e teológicas.
Cada indivíduo, em sua singularidade, se identifica com uma determinada expressão religiosa ou com a ausência dela, refletindo suas experiências de vida, sua formação cultural e sua trajetória pessoal. Assim, a melhor religião para um indivíduo pode não ser a melhor para outro. A escolha religiosa, ou a ausência dela, é uma manifestação da liberdade individual, um direito fundamental que deve ser respeitado e protegido. A imposição de crenças, a intolerância religiosa e a discriminação por motivos de fé são incompatíveis com uma sociedade justa e democrática.
A religião, enquanto fenômeno social e histórico, apresenta uma estrutura complexa, composta por diversos elementos inter-relacionados: crenças, rituais, símbolos, textos sagrados, ética e moralidade, e lideranças. Esses elementos constituem um sistema de significados que busca conectar os indivíduos com o transcendente, fornecendo respostas a questões existenciais e oferecendo um arcabouço para a vida social e comunitária. Através de seus discursos, ritos e práticas, as religiões buscam ampliar seu número de seguidores, oferecendo consolo, esperança e um sentido de pertencimento. No entanto, como aponta o historiador Leandro Karnal, a força motriz por trás da adesão religiosa muitas vezes não é o amor, mas sim o medo.
O medo, uma resposta instintiva e fundamental à sobrevivência, ativa o sistema de luta ou fuga, preparando o organismo para enfrentar perigos reais ou percebidos. Ele pode ser um motivador poderoso, levando as pessoas a evitarem comportamentos de risco e a buscarem segurança em diferentes aspectos da vida: saúde, finanças, situações emocionais, relações interpessoais, etc. Entretanto, o medo é também profundamente influenciado por fatores culturais e sociais. O que é considerado assustador em uma sociedade pode não ser em outra, refletindo as diferentes percepções de risco e as diversas formas de lidar com a insegurança.
Em contextos de vulnerabilidade, fragilidade emocional ou insegurança existencial, a busca por amparo religioso pode ser intensificada. Nesses momentos de crise, as pessoas se tornam mais suscetíveis a discursos que oferecem consolo, segurança e respostas aparentemente definitivas para suas angústias. É nesse contexto que o medo pode ser instrumentalizado, utilizado como ferramenta de controle e manipulação, levando indivíduos a seguirem normas e a aceitarem ideologias sem um exame crítico.
É crucial ressaltar que as religiões, em sua essência, não são inerentemente opressoras. Muitas tradições religiosas promovem valores de compaixão, justiça social, solidariedade e respeito à dignidade humana. No entanto, a interpretação e a aplicação desses valores podem ser distorcidas, levando à manipulação do medo para fins de controle, dominação e manutenção do poder. A crítica ao discurso religioso, portanto, não visa negar a importância da fé, mas sim alertar para os perigos da sua instrumentalização e promover um diálogo crítico e consciente sobre a relação entre fé, medo e sociedade.
A construção de uma sociedade mais justa e fraterna requer uma reflexão profunda sobre o papel da religião na construção da identidade coletiva e na promoção do bem-estar social. A compreensão da complexa interação entre medo e discurso religioso é fundamental para esse processo. A análise crítica da utilização do medo como ferramenta de persuasão religiosa é essencial para a promoção de uma fé autêntica e libertadora, capaz de inspirar esperança e solidariedade em um mundo marcado pela incerteza e pela insegurança.
A fé, quando genuína, não se baseia no medo, mas na esperança, na confiança e no amor. É uma força transformadora que pode inspirar ações de compaixão, justiça e solidariedade. Uma fé autêntica promove a inclusão, o respeito à diversidade e a construção de pontes entre diferentes culturas e crenças. Ela não busca impor dogmas ou controlar indivíduos, mas sim libertá-los do medo e da opressão, conduzindo-os a uma vida plena e significativa.
A busca por uma fé que transcenda o medo e promova a justiça social é um desafio constante para as religiões e para a sociedade como um todo. É necessário um diálogo aberto e respeitoso entre diferentes perspectivas religiosas e não-religiosas, buscando construir um espaço de convivência pacífica e harmoniosa, onde a liberdade de crença seja respeitada e onde o medo não seja usado como instrumento de manipulação e controle. A educação religiosa crítica, que promove o discernimento e a capacidade de análise, é fundamental para que as pessoas possam construir sua fé de forma consciente e autônoma, livres de manipulações e ideologias opressoras.
A verdadeira essência da religião reside na sua capacidade de inspirar o amor, a compaixão e a solidariedade, valores que transcendem as fronteiras dogmáticas e promovem a construção de um mundo mais justo e humano. A melhor religião, portanto, é aquela que nos impulsiona a praticar o bem, a construir relações significativas e a contribuir para um mundo melhor para todos, independentemente de suas crenças ou convicções. A melhor religião é aquela que nos liberta do medo e nos guia em direção a uma vida plena de significado e propósito. A busca por essa fé autêntica e libertadora é uma jornada contínua, um processo de crescimento e transformação individual e coletiva. A construção de uma sociedade fraterna depende da nossa capacidade de transcender o medo e abraçar a esperança, a compaixão e o amor ao próximo.
A compreensão da complexidade da relação entre religião, medo e sociedade é crucial para a construção de um futuro mais pacífico e harmonioso. A promoção de um diálogo aberto e respeitoso, que valorize a liberdade de crença e a diversidade de perspectivas, é fundamental para que possamos construir um mundo onde a fé seja uma fonte de esperança, solidariedade e transformação social positiva. A busca por uma fé autêntica e libertadora é um compromisso contínuo, um processo de crescimento e aprendizado que exige reflexão crítica, autoconhecimento e empenho em construir um mundo melhor para todos. É aquela que transforma corações, incentivando a bondade, a justiça e a busca por significado sem recorrer ao medo. O medo pode nos colocar no caminho das trevas.
José Augusto Zaniratti 26/05/2025
Normalmente em nossas conversas usamos a expressão “PODER” como se representasse uma entidade monolítica e, pior, inerentemente negativa, fruto de uma herança cultural ocidental que o associa à opressão. No entanto, a busca pelo poder é uma constante na experiência humana, presente em todas as esferas da vida, desde as interações mais íntimas até as estruturas sociais mais complexas. A questão crucial não reside na posse ou busca do poder em si, mas sim na forma como este é empregado.
O poder se manifesta em diferentes escalas e níveis, envolvendo recursos, influência, legitimidade e, inevitavelmente, contestação. Sua essência reside na relação entre indivíduos ou grupos, sendo impossível a existência de poder sem interação. Há sempre um sujeito que exerce influência e outro que a recebe, seja por meio de recompensas, punições, persuasão ou coerção. Embora não seja condição sine qua non, a posse de recursos – riqueza, informação, conhecimento, status social ou força física – facilita significativamente o exercício do poder. A legitimidade, ou seja, a aceitação social do exercício do poder, é um fator determinante na sua manutenção e eficácia. Um poder legítimo é aquele percebido como justo e aceitável pelos indivíduos ou grupos afetados. Contudo, é importante ressaltar que o poder nunca é absoluto e está constantemente sujeito a contestação e resistência.
As relações de poder estão em constante transformação, influenciadas por diversos fatores, como mudanças sociais, tecnológicas e políticas. Por isso o poder não é estático, mas sim dinâmico e mutável e se manifesta em múltiplas dimensões, envolvendo aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais.
De uma forma ou de outra, buscamos poder. O meio mais simples de obter mais poder, de se transformar rapidamente em pessoas importantes é pela aproximação. Observamos todos os dias inúmeros exemplos de pessoas que procuram estar próximo de pessoas importantes. Exemplos: aqueles que buscam uma fotografia com um jogador de futebol ou artistas. O funcionário que corre para o patrão para falar sobre algo, muitas vezes uma fofoca do colega, simplesmente para que os demais observem que ele é próximo do dono da empresa. O chama “papagaio de pirata” que sempre aparece nas fotos de celebridades para mostrar aos demais que é próximo daquela autoridade importante. Chamo esse procedimento de Poder por Aproximação. É aquela pessoa que chega em casa e diz que esteve com fulano, que conversou com beltrano para mostrar que é alguém que também tem poder. Os cortesãos nas cortes reais europeias, na antiguidade, frequentemente buscavam proximidade com o monarca, não apenas por lealdade, mas para obter favores, privilégios e ascensão social. A proximidade física e a demonstração de subserviência eram cruciais para o sucesso nessa estratégia. Hoje, as mídias sociais do século XXI reforçam essa prática, inclusive através daqueles que contestam as opiniões de outras, mesmo sem argumentos, apenas para escandalizar. Os influenciadores digitais que se aproximam de celebridades para aumentar sua visibilidade e credibilidade online. A simples menção ou interação com uma figura pública pode gerar um aumento significativo de seguidores e engajamento nas redes sociais. A busca por fotos e menções em posts é uma forma moderna de "poder por aproximação".
Há aqueles que obtém poder por reconhecidos socialmente por elementos materiais como riqueza, cargos de autoridade no ambiente público ou privado, por algum predicado físico como a beleza, pela capacidade intelectual, pela eloquência verbal ou carisma irresistível que gera grande capacidade de influenciar todos com quem interage. Eu chamo esse poder por conquista material. Com base em seus predicados obtém relações de poder entre indivíduos, considerando a dinâmica de influência e controle em interações específicas. Aqui, as teorias de jogos e a análise de redes sociais também se tornam ferramentas importantes. A capacidade de formar alianças, negociar, construir consensos e influenciar decisões coletivas são aspectos cruciais. A análise da comunicação não-verbal, a persuasão estratégica e as táticas de negociação são elementos relevantes para a compreensão do poder interpessoal. A obra de Michel Foucault, particularmente "Vigiar e Punir", aponta para as relações de poder sutis e disseminadas presentes nas instituições e nas interações sociais. A ideia de "biopoder", o controle sobre os corpos e a vida, ilustra a complexidade do poder interpessoal em contextos institucionais.
A história conta que Júlio César, através de suas habilidades militares e políticas, conquistou poder e influência no Império Romano. Sua capacidade estratégica, eloquência e carisma lhe permitiram ascender ao poder e controlar vastos recursos. Hoje temos empresários de tecnologia que acumulam riqueza e influência através da inovação e da construção de grandes empresas. Seu poder deriva da posse de recursos financeiros, tecnológicos e do controle de informações. Elon Musk, por exemplo, ilustra essa forma de poder. Mas será que Donald John Trump e Vladimir Vladimirovich Putin, de formas diferentes, praticam ações semelhantes a de Júlio César?
E, por fim, o Poder por Ações Meritórias. Aqueles que obtêm poder simplesmente por suas práticas sociais cotidianas que apoiam seus semelhantes, construindo um ambiente de justiça e solidariedade, tanto individual quanto coletiva. Martin Luther King Jr., através de sua liderança no movimento pelos direitos civis nos EUA, conquistou poder moral e influência global. Seu poder não derivava de recursos materiais, mas de sua capacidade de mobilizar pessoas e inspirar mudanças sociais profundas. Temos outros exemplos históricos Gandhi, Madre Teresa de Calcutá, Chico Xavier e tantos outros que são lembrados unicamente por suas ações de dedicação à humanidade. Mais contemporâneos temos ativistas ambientais que mobilizam a população em prol da sustentabilidade e da preservação do meio ambiente. Seu poder reside na capacidade de conscientizar, mobilizar e influenciar políticas públicas através de ações coletivas e ativismo.
Estes níveis de poder são reproduzidos por diferentes mecanismos. Autores como Pierre Bourdieu, com seus conceitos de capital social, cultural e econômico, oferecem uma compreensão profunda das estruturas de poder e como elas se perpetuam. O capital social, por exemplo, refere-se à rede de relações sociais que um indivíduo possui e que podem ser utilizadas para alcançar seus objetivos. Já o capital cultural engloba os conhecimentos, habilidades e valores socialmente valorizados que conferem vantagens em determinadas estruturas sociais. A análise marxista, por sua vez, enfatiza a importância das relações de produção e da propriedade dos meios de produção na estruturação do poder. A luta de classes, a exploração e a alienação são conceitos centrais para a compreensão do poder estrutural a partir desta perspectiva.
Durante o sistema feudal na Europa medieval, onde o poder era estruturado em uma hierarquia rígida, com nobres, clérigos e camponeses ocupando posições distintas e com diferentes níveis de poder. Este sistema demonstra como relações de poder se perpetuam através de estruturas sociais e instituições. Hoje o poder corporativo, onde grandes empresas exercem influência significativa sobre a economia, a política e a sociedade. Seu poder deriva do controle sobre recursos, empregos e da capacidade de influenciar decisões políticas através de lobby e financiamento de campanhas.
Portanto, o poder, conceito central em diversas áreas do conhecimento, desde a política à psicologia social, permeia as relações humanas e molda as estruturas sociais. De qualquer forma, estamos falando da capacidade de uma pessoa influenciar o comportamento de outras, seja por meio da persuasão, da coerção, ou da manipulação. Neste nível, a análise foca nas características pessoais, habilidades de comunicação, recursos e estratégias utilizadas pelo indivíduo para alcançar seus objetivos. Autores como Max Weber, em sua clássica obra "Economia e Sociedade", destacam a importância da legitimidade na construção do poder individual. A autoridade carismática, por exemplo, baseia-se na admiração e na confiança que o indivíduo inspira nos outros. Já a autoridade tradicional se apoia em costumes e heranças culturais, enquanto a autoridade racional-legal se fundamenta em regras e normas estabelecidas. A psicologia social contribui para a compreensão deste nível, analisando fatores como a influência social, a obediência à autoridade (experimento de Milgram) e a formação de grupos.
Assim fica nítido que ter poder não é, necessariamente, algo ruim. Poder é uma construção da natureza humana. A questão é compreender a serviço de que ações esse poder adquirido está servindo. Uso o meu poder para alimentar minha vaidade, meu ego? Uso meu poder para acumular mais riqueza para o meu deleite? Uso o meu poder do cargo que ocupo para enriquecer ou prejudicar ou destruir outros? Uso meu poder para a supremacia de uma nação ou etnia?
A frase "o critério da verdade é a prática" serve como um guia para a reflexão diária sobre o uso do nosso poder, seja ele grande ou pequeno. Devemos questionar se o empregamos para atender a interesses egoístas ou para construir relações de justiça e fraternidade. É o uso do poder que temos que nos diferencia. O uso ético e responsável do poder é fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa. O poder, portanto, não é inerentemente bom ou mau; sua moralidade reside em seu emprego.
José Augusto Zaniratti 19/05/2025
A história, assim como a tecnologia, não retroage. O tempo flui infinitamente e inexoravelmente, alterando o planeta e a humanidade, indiferente à nossa presença ou por causa dela. Essa verdade, esquecida por muitos, exige que nosso papel nesta jornada interminável seja guiado pela sabedoria, e não apenas pela inteligência. A inteligência nos informa que o tomate é um fruto; a sabedoria, porém, nos impede de adicioná-lo a uma salada de frutas. Assim como o domínio do fogo na pré-história, a tecnologia, em sua evolução, serve aos fins ditados pela ética vigente em cada época. Detê-la é impossível e, ao mesmo tempo, um erro. O avanço exponencial da tecnologia exige que a compreendamos para aplicá-la de forma benéfica, pois sem sabedoria, ela pode nos prejudicar.
A tecnologia avança exponencialmente, e seu desenvolvimento não pode ser contido. No entanto, a forma como a utilizamos é crucial. A inteligência é fundamental para compreender a tecnologia, mas a sabedoria é necessária para aplicá-la de forma ética e benéfica, melhorando nossas vidas. Como afirma Hannah Arendt: "O pensamento é o princípio da liberdade e a liberdade é o princípio da ação.” O uso da tecnologia é aceitável se for na direção da ética e da justiça.
Os algoritmos desempenham um papel central na personalização da experiência digital, analisando nossos comportamentos, interesses e preferências para oferecer conteúdos relevantes, anúncios direcionados e recomendações. Embora essa personalização possa parecer benéfica, ela levanta questões éticas significativas. A coleta de dados, muitas vezes sem nosso conhecimento explícito, pode ser vista como uma forma de controle, onde empresas moldam nossas experiências e decisões. A falta de transparência sobre o uso desses dados gera desconfiança e ressalta a necessidade de uma ética robusta na tecnologia. Como pondera Jürgen Habermas, "A razão comunicativa é a base da ética discursiva". Precisamos de um diálogo aberto e transparente sobre o uso de nossos dados.
A ética deve ser o princípio orientador da nossa interação com a tecnologia. Devemos questionar não apenas como os dados são coletados, mas também como são usados e quais as implicações dessa utilização. A ética nos convida a considerar o impacto de nossas ações sobre os outros e o mundo. A ética, segundo Immanuel Kant, reside no dever moral, na obrigação de agir de acordo com princípios universais. Devemos, portanto, nos perguntar se a utilização da tecnologia que promove a coleta de dados se alinha a esses princípios.
A privacidade é um direito fundamental que permite aos indivíduos manterem aspectos de suas vidas pessoais longe da vigilância pública. A ideia de que "se não temos nada a esconder, não precisamos de privacidade" ignora a complexidade da relação entre indivíduos e suas informações. A privacidade não se trata apenas de proteger segredos, mas de garantir a autonomia e a dignidade de cada pessoa. Como afirma Michel Foucault, "O poder não é algo que se possui, mas algo que se exerce". A coleta indiscriminada de dados pode ser vista como um exercício de poder que compromete nossa autonomia.
Na sociedade atual, a privacidade é frequentemente vista como um luxo, mas é um componente essencial da liberdade pessoal. Sermos observados ou saber que nossos dados estão sendo coletados inibe nossa capacidade de nos expressar livremente. A privacidade é crucial para a saúde psicológica e emocional. A perda da privacidade, segundo Noam Chomsky, pode levar à manipulação e ao controle social. Devemos, portanto, lutar pela preservação da nossa privacidade.
Na era digital, a tecnologia permeia todos os aspectos da vida cotidiana, gerando questões complexas sobre privacidade e ética. A aparente contradição entre fazer o bem e a resistência à exposição pública de nossas vidas exige uma análise cuidadosa. A transparência e a autenticidade são admiráveis, mas a vida pública total pode levar à perda de autonomia e à exposição a julgamentos. A privacidade oferece um espaço seguro para a autoexploração e a autenticidade.
Os algoritmos podem ser projetados para aprender sobre nossos interesses de maneira ética e responsável, respeitando a privacidade e permitindo que os usuários controlem os dados que compartilham. A personalização deve ser feita com consentimento e em benefício do usuário, não como forma de manipulação. A responsabilidade de promover a ética recai sobre empresas, desenvolvedores e usuários. A educação digital e o desenvolvimento de políticas de proteção de dados são cruciais.
A explosão tecnológica trouxe inúmeros benefícios, mas também dilemas éticos complexos, principalmente em relação à privacidade. A relação entre ética, tecnologia e privacidade configura-se como um triângulo de desafios que exige reflexão profunda e ação proativa para garantir um futuro digital mais justo e seguro. A tecnologia, em sua essência, é neutra; seu uso ético ou antiético depende das escolhas humanas.
A falta de transparência e controle sobre nossos dados é um desafio ético significativo. Muitos serviços online operam com termos de uso complexos, dificultando a compreensão do que acontece com nossas informações. A "economia de dados", baseada na monetização de informações pessoais, agrava o problema, incentivando a coleta indiscriminada de dados, muitas vezes sem consentimento. A inteligência artificial (IA) representa um caso particular, com algoritmos treinados com grandes quantidades de dados que podem criar perfis comportamentais detalhados. A falta de transparência nos algoritmos de IA aumenta o risco de vieses e discriminações.
A questão da privacidade se relaciona intrinsecamente com a liberdade de expressão e o direito à informação. A censura online, a vigilância estatal e a manipulação de informações podem restringir a liberdade de expressão e criar um ambiente de autocensura. A preservação da privacidade é fundamental para garantir um espaço digital onde a liberdade de expressão possa florescer.
A legislação sobre privacidade de dados tem evoluído, com leis como o GDPR e a LGPD buscando estabelecer um marco regulatório para a proteção de dados pessoais. No entanto, a implementação e a efetividade dessas leis ainda enfrentam desafios, como a falta de fiscalização adequada.
A ética desempenha um papel crucial na construção de um ambiente digital mais seguro e respeitoso à privacidade. A responsabilidade não recai apenas sobre governos e empresas, mas também sobre os indivíduos. A educação digital e a conscientização sobre a importância da privacidade são essenciais. É necessário um diálogo contínuo entre especialistas em tecnologia, legisladores, empresas e sociedade civil para encontrar soluções inovadoras e eficazes. A busca por um equilíbrio entre inovação e proteção da privacidade é fundamental.
A pergunta central – por que, se agimos corretamente, nossa vida não pode ser pública e acessível aos algoritmos? – revela a complexidade da relação entre ética, tecnologia e privacidade. A premissa de "fazer o bem, amar e tratar o outro como gostaríamos de ser tratados" é um princípio ético fundamental, mas sua transposição para o ambiente digital não é simples.
A questão central reside na distinção entre a exposição voluntária de ações positivas e a exploração não consentida de nossos dados pessoais. Compartilhar experiências positivas é diferente de concordar com a coleta indiscriminada de dados e sua análise para fins comerciais.
Os algoritmos, embora ofereçam personalização, apresentam riscos significativos, como a filtragem de informações e a manipulação comportamental. A possibilidade de algoritmos reforçarem vieses existentes e promoverem a polarização é uma preocupação crescente.
Para responder às questões levantadas, é necessária uma abordagem multifacetada: transparência e consentimento informado; regulamentação e proteção de dados; algoritmos éticos e responsáveis; educação e conscientização; e equilíbrio entre personalização e privacidade. A busca por soluções inovadoras e eficazes é fundamental para garantir um futuro digital ético e respeitoso à privacidade. Se não agirmos com sabedoria, traremos para o caminhos da trevas.
José Augusto Zaniratti 12/05/2025
Existem verdades deliberadamente esquecidas, soterradas sob camadas de dogmas e tradições. Uma dessas verdades invisíveis, paradoxalmente gritante em sua ausência, é que Jesus Cristo não criou uma religião, tampouco fundou uma igreja com a estrutura hierárquica que conhecemos hoje. O Jesus narrado nos livros, cuja existência é confirmada por vestígios históricos, foi um subversivo, um revolucionário que ousou desafiar as normas estabelecidas, pregando princípios e valores diametralmente opostos ao modus vivendi da sociedade da época, e, em muitos aspectos, do planeta como um todo.
Como um criminoso político, um agitador da ordem vigente, Jesus foi crucificado, um destino compartilhado por milhares de outros presos políticos sob o jugo do Império Romano. Seus "crimes" eram, aos olhos do poder, imperdoáveis: ousava dizer que deveríamos amar uns aos outros incondicionalmente; que a regra de ouro da conduta humana deveria ser tratar o próximo como gostaríamos de ser tratados; que a humanidade, em sua essência, era uma grande irmandade, transcendendo fronteiras e divisões; que o amor e o perdão eram os pilares de uma existência plena e significativa; e, talvez o mais radical para a época, que a mulher possuía a mesma dignidade e importância que o homem.
Jesus nasceu e cresceu em um contexto social onde a mulher era relegada a um papel secundário, quase invisível. No entanto, ele, em um ato de ousadia e profunda compreensão da alma humana, trouxe a figura feminina para o centro de sua mensagem. Maria, sua mãe, Maria Madalena, Maria e Marta, as duas irmãs, e Joana, a mulher de Cuza, são exemplos da centralidade da mulher em sua mensagem. Jesus sempre enalteceu a figura feminina não simplesmente como procriadora de homens, mas como indivíduos dotados de intelecto, sensibilidade e importância intrínseca.
Jesus escolheu apóstolos, homens e mulheres, para darem continuidade ao seu trabalho e disseminarem seus ensinamentos. Contudo, em nenhum momento criou ou sinalizou a necessidade de uma hierarquia rígida ou uma estrutura institucional complexa para que seus princípios e valores revolucionários fossem propagados. Embora fosse judeu por nascimento, Jesus não professou o judaísmo da época, com suas leis e rituais por vezes opressivos. Ele confrontou o poder despótico de Roma e denunciou o uso de crenças religiosas para fins de lucro e controle social. Quem verdadeiramente segue Jesus Cristo, segue um “criminoso” político que subverteu a ordem estabelecida para apontar o caminho do bem, do amor e da caridade para todos, especialmente para os marginalizados e sofredores.
Mas, então, como explicar a religião católica, a Igreja com sua estrutura complexa e o Papado? Após a morte de Jesus Cristo, seus seguidores, apóstolos e outros que se identificavam com seus ensinamentos, sentiram a necessidade de criar procedimentos para relembrar os momentos cruciais que compartilharam com o Mestre. Reuniam-se em segredo, nas catacumbas, para escapar da perseguição implacável do Império Romano. Foi nesse contexto de clandestinidade e perseguição que se iniciou a propagação dos ensinamentos de Jesus e a formação de comunidades que, sistematicamente, relembravam os princípios do antigo mestre. Essa chama se espalhou por todo o Império Romano, a ponto de ameaçar as crenças e a ordem que o império impunha com mão de ferro.
Em 313 d.C., Constantino e Licínio, co-imperadores romanos, astutos observadores da crescente influência dos ensinamentos de Jesus na estrutura do estado romano, assinaram o Édito de Milão. Esse decreto histórico proclamava a tolerância religiosa e permitia aos cristãos praticar sua fé livremente, pondo fim a séculos de perseguição brutal e abrindo caminho para o crescimento e a expansão do cristianismo, sob a égide do poder imperial da época.
Constantino, em um movimento estratégico, ofereceu patrocínio imperial ao cristianismo, construindo igrejas suntuosas, concedendo terras e privilégios à Igreja, e financiando projetos religiosos grandiosos, elevando o prestígio da instituição aos olhos da crescente massa de seguidores de Jesus. Esse patrocínio abriu as portas para uma relação simbiótica, porém conflituosa, entre Igreja e Estado, que se estenderia por séculos. Foi nesse momento crucial que a tradição de relembrar os ensinamentos do Mestre Jesus foi revestida com as vestes do império: os sacerdotes passaram a usar paramentos luxuosos, o cálice se transformou em ouro maciço, e o que antes era vivido nas catacumbas, em segredo e sob o risco de morte, passou a ocorrer em palácios opulentos. Assim, gradualmente, foi surgindo a estrutura da futura religião e igreja, com suas hierarquias, regras, dogmas e rituais complexos, tudo mediado pelo poder imperial.
O chamado cristianismo, antes marginalizado e perseguido, passou a ter acesso a recursos e influência inimagináveis. Em 325 d.C., Constantino convocou o Concílio de Nicéia, o primeiro concílio ecumênico da Igreja. Nesse concílio, ele impôs o Credo Niceno como a doutrina oficial, contribuindo para a padronização das crenças cristãs e para a supressão de heresias consideradas ameaçadoras à ordem estabelecida.
Constantino não fundou a Igreja Católica no sentido estrito da palavra, mas institucionalizou a prática popular de cultuar os ensinamentos de Jesus, transformando profundamente a história do cristianismo, moldando o seu futuro e a sua intrincada relação com o poder político.
A estrutura hierárquica da Igreja Católica, com Papas, bispos, padres e outros clérigos, evoluiu ao longo do tempo, refletindo as necessidades de organização e governança de uma instituição religiosa em expansão sob a influência direta do poder constituído, exatamente o mesmo poder criticado por Jesus Cristo ao longo de sua vida e ministério.
A prática cristã, a religião católica e a Igreja Católica são vinhos de pipas diferentes, embora compartilhem a mesma videira. Jesus não era católico, nem evangélico, e, mesmo tendo nascido judeu, jamais promoveu o judaísmo. Jesus promoveu o amor incondicional, a compaixão e a preocupação genuína com o próximo, enquanto as religiões, frequentemente, propõem uma cartilha de regras e dogmas a serem seguidos para alcançar a salvação, como se isso fosse o mesmo que Jesus Cristo pregou e viveu. A essência da mensagem de Jesus reside no amor, na justiça e na liberdade, não na obediência cega a dogmas e rituais.
José Augusto Zaniratti 05/05/2025
A era da informação nos submerge em um mar de dados. Imagens, textos, notificações – um fluxo incessante que bombardeia nossa mente, fragmentando nossos pensamentos e dificultando a construção de ideias coerentes e articuladas. Nosso cérebro, acostumado à velocidade da internet, parece se adaptar a essa fragmentação, processando informações em pequenos pedaços, sem a oportunidade de uma síntese profunda e significativa. A fala, por sua natureza espontânea e imediata, reflete essa fragmentação, representando apenas um nível básico e rudimentar de síntese. É na escrita, no ato de transcrever nossos pensamentos, que encontramos a oportunidade de construir uma verdadeira síntese do conhecimento, muitas vezes latente e desconhecido até mesmo para nós mesmos.
A afirmação de que a escrita é fundamental, mesmo para aqueles que se consideram incapazes de escrever bem, encontra respaldo em diversas teorias da cognição e da linguagem. Autores como Lev Vygotsky, em sua teoria sócio-histórica do desenvolvimento, enfatizam o papel fundamental da linguagem na construção do pensamento. Para Vygotsky, a linguagem não é apenas um instrumento de comunicação, mas uma ferramenta que molda e estrutura o pensamento, permitindo a internalização de conceitos e a organização das ideias. A escrita, nesse contexto, se configura como uma ferramenta poderosa, que permite a exteriorização e a organização do pensamento de forma mais estruturada e elaborada do que a fala.
A escrita exige um processo de seleção, organização e articulação das ideias, forçando o escritor a confrontar suas próprias concepções e a construir um discurso coerente e lógico. Esse processo de organização não é apenas mecânico; ele envolve um trabalho cognitivo complexo que ativa diferentes áreas do cérebro, promovendo a conexão entre informações aparentemente desconexas e a construção de novas compreensões. Como afirmava o filósofo e psicólogo Jean Piaget, o desenvolvimento cognitivo se dá através de um processo de assimilação e acomodação, em que novas informações são integradas a estruturas mentais existentes, modificando-as e expandindo-as. A escrita, ao exigir a organização das ideias, estimula esse processo de assimilação e acomodação, promovendo o desenvolvimento cognitivo e a construção do conhecimento.
A ideia de que a escrita nos permite acessar um conhecimento que antes nos era desconhecido é corroborada por estudos sobre a memória e a metacognição. A memória, longe de ser um repositório passivo de informações, é um sistema ativo e construtivo, que constantemente reorganiza e interpreta as informações armazenadas. Ao escrever, resgatamos e reorganizamos memórias, conectando-as de novas maneiras e construindo novas compreensões. A metacognição, por sua vez, refere-se à capacidade de refletir sobre os próprios processos cognitivos, monitorando e regulando o pensamento. A escrita, ao exigir um processo de revisão e edição, estimula a metacognição, permitindo que o escritor tome consciência de seus próprios processos de pensamento e refine suas ideias.
A importância da revisão, especialmente após um período de descanso Nada melhor do deixar o texto dormir antes de relermos. Isso é fundamental para a construção de um texto coeso e bem articulado. O sono desempenha um papel crucial na consolidação da memória e na integração de novas informações. Durante o sono, o cérebro reorganiza e processa as informações adquiridas durante o dia, fortalecendo as conexões neurais e permitindo uma melhor compreensão e integração das ideias. A revisão após uma noite de sono, portanto, permite que o escritor observe seu texto com uma perspectiva renovada, identificando lacunas, inconsistências e oportunidades de aprimoramento que poderiam passar despercebidas em um momento de maior cansaço mental.
Imagine que você precisa entender um conceito complexo, como a Teoria da Relatividade de Einstein. Ler sobre o assunto pode fornecer informações, mas a compreensão profunda só virá com a síntese pessoal. Ao tentar explicar a Teoria da Relatividade por escrito, você será forçado a organizar as informações, selecionar os pontos-chave, e encontrar uma maneira lógica de apresentar o conceito. Esse processo de escrita forçará você a confrontar suas próprias deficiências ou falhas de conhecimento, a pesquisar mais profundamente e, finalmente, a construir uma compreensão muito mais completa do que simplesmente lendo passivamente. Você poderá identificar quais partes do conceito você entendeu bem e quais precisam de mais estudo. A escrita, nesse caso, se torna uma ferramenta poderosa de aprendizagem ativa, transformando a informação passiva em conhecimento ativo e integrado. Ao revisar o texto posteriormente, você poderá identificar inconsistências em seu raciocínio e aprimorar sua compreensão.
A superação da censura na escrita, seja em um diário pessoal, um artigo acadêmico ou uma obra literária, é crucial para o processo de descoberta e construção do conhecimento. A censura, muitas vezes inconsciente, impede a livre expressão do pensamento, limitando a exploração de ideias e a construção de um discurso autêntico. Escrever sem censura permite que o escritor explore diferentes perspectivas, desafie suas próprias crenças e construa um texto rico em nuances e complexidade. Autores como Julia Cameron, em seu livro "The Artist's Way," enfatizam a importância da escrita livre e desinibida como um meio de desbloquear a criatividade e acessar um fluxo de ideias mais espontâneo e genuíno.
Eliminar a censura na escrita é, na minha opinião, o maior desafio. Construirmos barreiras sociais e afetivas que se transformam em censura. É preciso exercício e bom censo para eliminar, pelo menos na primeira versão de nossos textos, a censura construída socialmente.
A escrita, portanto, não é apenas um meio de comunicação, mas um processo cognitivo complexo que envolve a seleção, organização, articulação e revisão das ideias. É um processo de descoberta e construção do conhecimento, que nos permite acessar informações latentes em nossa mente e construir um discurso coerente e articulado. A superação da censura e a prática da revisão, especialmente após um período de descanso, são essenciais para a construção de um texto rico, autêntico e significativo. A escrita, em sua essência, é um ato de síntese, que nos permite organizar a complexidade do mundo e construir um significado a partir da fragmentação da informação.
A escrita como processo de autorreflexão também é crucial. Ao colocar os pensamentos no papel, o escritor se confronta com suas próprias ideias, analisando-as criticamente e identificando possíveis contradições ou lacunas. Esse processo de autoconhecimento é fundamental para o desenvolvimento pessoal e intelectual. A escrita, nesse sentido, se torna um instrumento de autodescoberta, permitindo que o escritor explore suas próprias crenças, valores e experiências, construindo uma compreensão mais profunda de si mesmo e do mundo ao seu redor.
Além disso, a escrita promove a clareza de pensamento. Ao tentar expressar uma ideia de forma escrita, o escritor é forçado a organizá-la de maneira lógica e coerente, identificando as partes principais e as relações entre elas. Esse processo de organização mental contribui para uma melhor compreensão da própria ideia, permitindo que o escritor a articule de forma mais eficaz e persuasiva. A escrita, portanto, se torna uma ferramenta poderosa para o desenvolvimento do pensamento crítico e da capacidade de argumentação.
Mais do que isso. Ao escrevermos nos comprometemos com ela, naturalmente.
A escrita ainda possibilita a construção de narrativas pessoais e coletivas. Através da escrita, podemos compartilhar nossas experiências, perspectivas e conhecimentos com outras pessoas, construindo pontes de comunicação e compreensão mútua. A escrita de histórias, poemas, ensaios e outros textos literários permite que o escritor explore diferentes formas de expressão, transmitindo suas emoções, ideias e visões de mundo de maneira criativa e impactante. A escrita, nesse sentido, se torna uma forma de arte, capaz de enriquecer a vida do escritor e dos seus leitores.
A escrita é uma ferramenta fundamental para o aprendizado e o desenvolvimento intelectual. Ao escrever sobre um determinado tema, o escritor é forçado a pesquisar, analisar e sintetizar informações, aprofundando seu conhecimento e compreensão do assunto. Por estas razões a escrita se torna um instrumento de aprendizagem ativo e eficaz, que promove a construção do conhecimento e o desenvolvimento de habilidades cognitivas essenciais para o sucesso acadêmico, profissional ou simplesmente de autoconhecimento. Escrever é quase sinônimo de criar e um caminho inequívoco para a compreensão mais profunda de si mesmo e do mundo ao seu redor. É assim que podemos rumar por caminhos diferentes daqueles que nos levariam para as trevas.
José Augusto Zaniratti 28/04/2025
A Páscoa é mais do que uma simples celebração religiosa? É um simples reflexo das complexidades do mundo contemporâneo tratado com indiferença? A páscoa passou? Qual o legado que ela nos deixou? Vivemos mais uma páscoa e o que mudamos em nosso interior? Comemos peixe na sexta-feira santa, chocolate e churrasco no domingo e o que isso proporcionou para a melhoria moral em cada um de nós? Confesso que tenho medo de ouvir respostas tão vazias que prefiro não fazer a ninguém tais perguntas. Prefiro escrevê-las na esperança de que as páscoas ocorram intimamente todos os dias em nossas consciências.
A Páscoa é uma celebração que transcende fronteiras culturais e religiosas, unindo pessoas em torno de temas como renovação, esperança e solidariedade. Em 2025, no entanto, a Páscoa assume um significado ainda mais profundo diante da conjuntura política e social global. É preciso refletir sobre os desafios e as esperanças que permeiam a sociedade atual, só assim a Páscoa pode ser um vínculo entre o passado e o presente.
A Páscoa, tradicionalmente, celebra a ressurreição de Jesus Cristo, sendo um dos eventos mais significativos do calendário cristão. Suas raízes, no entanto, remontam a festivais de primavera de várias culturas antigas, simbolizando a renovação, o renascimento e a libertação. O maior símbolo histórico da libertação foi a saída do povo Hebreu escravo no Egito em direção à terra prometida, celebrado pelo judaísmo. Com o passar dos séculos, a Páscoa evoluiu, incorporando diversas tradições e costumes que variam de região para região. Em 2025, essa diversidade cultural se revela ainda mais relevante à medida que o mundo se torna cada vez mais interconectado.
As relações entre grandes potências, como os Estados Unidos, China e Rússia, continuam a ser tensas. Questões como comércio, direitos humanos e segurança cibernética estão na pauta. Essas tensões não apenas afetam a economia global, mas também influenciam a forma como as pessoas percebem a paz e a estabilidade em suas comunidades.
A crise climática é outro fator crucial que molda o contexto atual. Eventos climáticos extremos têm se tornado mais frequentes, levando a desastres naturais que afetam milhões de vidas. Em muitos lugares, as comunidades estão se mobilizando para exigir ações mais contundentes dos governos, refletindo uma crescente conscientização sobre a urgência de mudanças.
As questões sociais estão intrinsecamente ligadas ao contexto político. Em 2025, a luta por igualdade e justiça social continua a ser um ponto focal. Movimentos sociais em defesa dos direitos da mulher, dos direitos LGBTQIA+, e por justiça racial estão em evidência, promovendo diálogos importantes sobre inclusão e diversidade.
A desigualdade econômica aumentou significativamente nas últimas décadas, e a pandemia de COVID-19 apenas exacerbou o problema. Muitos ainda lutam para se recuperar economicamente, e essa disparidade é um tema que permeia as celebrações da Páscoa. A mensagem de esperança e renovação da Páscoa ressoa mais intensamente em comunidades que enfrentam dificuldades econômicas.
A saúde mental é uma preocupação crescente, especialmente entre os jovens. O estigma em torno da saúde mental está começando a ser desafiado, com mais pessoas buscando apoio e recursos. Durante a Páscoa, o foco na renovação pode servir como um lembrete importante da necessidade de cuidar não apenas do corpo, mas também da mente.
Diante de um mundo repleto de desafios, a Páscoa em 2025 se torna um símbolo poderoso de esperança e renovação. Muitas comunidades aproveitam este momento para refletir sobre suas lutas e celebrar as pequenas vitórias alcançadas. A festividade também é uma oportunidade para a solidariedade, com diversas iniciativas de ajuda a comunidades carentes e a promoção de eventos que reúnem pessoas em torno de causas comuns.
Em várias partes do mundo, grupos comunitários se mobilizam durante a Páscoa para ajudar os necessitados. Isso pode incluir a distribuição de alimentos, a organização de eventos de arrecadação de fundos e a promoção de atividades que fomentem a união e a empatia. A Páscoa, portanto, se transforma em uma ocasião para cultivar o espírito de solidariedade.
Em 2025, o cenário político global está marcado por uma série de desafios. O aumento das tensões geopolíticas, as guerras entre Rússia e Ucrânia, Israel e o Hamas, as crises climáticas e as desigualdades sociais são temas que dominam a agenda internacional. A polarização política se intensificou em muitos países, com movimentos populistas ganhando força e questionando as estruturas democráticas estabelecidas. Tudo isso culminando na passagem do Papa Francisco, um líder carismático e defensor incansável da paz, da justiça social e do cuidado com o meio ambiente. Ele deixa um legado que ressoa intensamente neste período de renovação. A Páscoa, que celebra a vitória da vida sobre a morte, agora também se torna um momento de homenagem à vida e ao trabalho de um homem que dedicou sua vida ao serviço do Evangelho e de crítica severa às injustiças sociais.
Neste contexto, a Páscoa de 2025 não é apenas uma celebração da ressurreição de Cristo, mas também um chamado à reflexão sobre a continuidade de sua mensagem de amor e compaixão. As palavras e ações do Papa Francisco nos inspiram a viver os valores cristãos com mais intensidade, promovendo a solidariedade e o diálogo entre as nações. Em última análise, tudo depende de quem somos interiormente.
As celebrações da Páscoa oferecem uma oportunidade para a reflexão pessoal. Muitas pessoas utilizam este tempo para reavaliar suas vidas, seus objetivos e suas relações. A ideia de renovação, central à festividade, pode inspirar ações concretas em direção a uma vida mais significativa e engajada.
As redes sociais podem desempenhar um papel significativo na forma como a Páscoa é celebrada e percebida. As plataformas digitais são meios para a disseminação de mensagens de esperança e solidariedade. Isso é possível se as pessoas compartilharem suas tradições, receitas e reflexões, criando um espaço virtual de união e troca.
Diversas organizações utilizam as redes sociais para lançar campanhas de conscientização sobre questões sociais e ambientais durante a Páscoa. Essas iniciativas não apenas promovem a festividade, mas também educam as pessoas sobre a importância de agir em prol de um mundo melhor.
As redes sociais permitem que pessoas de diferentes partes do mundo se conectem e compartilhem suas experiências de Páscoa. Essa troca cultural enriquece a celebração, permitindo que as pessoas aprendam sobre diferentes tradições e práticas, reforçando a ideia de que, apesar das diferenças, a esperança é um sentimento universal.
Em meio a desafios políticos e sociais, a festividade oferece uma oportunidade única para a reflexão, a solidariedade e a renovação. Ao celebrarmos a Páscoa, somos convidados a nos unir em torno de valores que promovem a paz, a justiça e a esperança. Em tempos difíceis, a mensagem de ressurreição da Páscoa ressoa profundamente, lembrando-nos de que, mesmo nas adversidades, a renovação é possível.
A Páscoa não passou! É um convite permanente a todos nós para refletirmos, todos os dias, sobre nossas ações e a importância de construir um futuro mais justo e solidário. Que façamos a PASSAGEM das nossas práticas egoístas para que o espírito de renovação nos inspire a agir, a sonhar e a lutar por um mundo melhor. E isso começa pelas mudanças em nós mesmos para que possamos enfrentar as trevas da conjuntura, mantendo viva a chama da esperança que a Páscoa representa.
José Augusto Zaniratti 14/04/2025
“A Felicidade não é a ausência de conflitos, mas a habilidade para lidar com eles. Uma pessoa feliz não tem o melhor de tudo, ela torna tudo melhor”.
Embora frequentemente atribuída a Harold S. Kushner, essa afirmação ressoa profundamente com os princípios da filosofia estoica, da psicologia positiva e das tradições orientais. Ela nos apresenta uma visão da felicidade que vai além da mera ausência de problemas, enfatizando a resiliência interior, a transformação ativa da realidade e a construção diária da própria alegria.
O nosso crescimento interior é o resultado do aprendizado que fazemos diariamente diante das adversidades, desde as pequenas frustrações cotidianas até os grandes desafios existenciais. Quantas vezes perdemos o sono analisando um problema, revirando possibilidades, buscando soluções? E quanta satisfação sentimos quando, após esforço persistente, alcançamos uma resolução? Esse momento de superação nos enriquece — quando a névoa da dúvida se dissipa — é um dos combustíveis mais poderosos da felicidade autêntica.
No entanto, nem sempre as soluções surgem imediatamente. Há situações que nos deixam vulneráveis, seja por limitações pessoais, circunstâncias externas ou pela complexidade inerente à vida. É nesses momentos que experimentamos a dor, essa mestra rigorosa que, embora indesejada, esculpe nosso caráter.
A frase "Tudo o que não me destrói me fortalece" é uma interpretação livre de um conceito presente na obra de Nietzsche, particularmente em seu livro "Assim Falou Zaratustra". A ideia central de Nietzsche é que a superação dos desafios e dificuldades da vida, mesmo que dolorosos, pode levar ao crescimento e fortalecimento do indivíduo. Ele argumentava que a vida é uma luta constante, e que a capacidade de superar os obstáculos é essencial para o desenvolvimento da força de vontade e da autodeterminação. Eu acredito que a dor é o crisol que purifica nossas intenções e amplia nossa compreensão do mundo e por isso é a maior professora que temos ao longo da vida; é ela que mais nos impulsiona ao crescimento moral, intelectual e espiritual.
A ideia de que “uma pessoa feliz não tem o melhor de tudo, ela torna tudo melhor” destaca a importância da atitude mental na construção da felicidade. Não se trata de buscar a perfeição material ou a ausência de dificuldades, mas de desenvolver a capacidade de encontrar o positivo em meio às adversidades. É a arte de transformar o limão em limonada, extraindo o melhor de cada situação, independentemente das circunstâncias externas.
Imagine dois artistas diante do mesmo bloco de mármore: um vê apenas uma pedra; o outro, uma escultura em potencial. Assim funciona a mente resiliente. Ela não espera condições perfeitas para agir — transforma o ordinário em extraordinário. Um exemplo prático? A história de Viktor Frankl, psiquiatra que encontrou propósito mesmo nos campos de concentração nazistas, escrevendo livros na mente antes de dormir. Sua experiência demonstra que até no abismo é possível escolher a resposta que damos ao sofrimento.
A busca incessante por uma vida sem conflitos pode levar à frustração e à infelicidade. A vida, por sua própria natureza, é dinâmica e repleta de desafios. Esperar que tudo seja perfeito, que não haja obstáculos ou contratempos, é criar uma expectativa irrealista que inevitavelmente resultará em decepção. A felicidade, ao contrário, abraça a complexidade da vida, reconhecendo a importância das dificuldades como oportunidades de crescimento.
Estudos em psicologia cognitiva comprovam que encarar desafios como oportunidades de aprendizado facilita a superação de obstáculos e promove maior bem-estar. Em vez de perguntar "Por que isso aconteceu comigo?", essas pessoas se perguntam "O que posso aprender com isso?". Esse conceito, conhecido como "mindset de crescimento", foi popularizado por Carol Dweck, psicóloga da Universidade de Stanford, em seu livro Mindset: A Nova Psicologia do Sucesso (2006).
A frase de Kushner nos convida a desenvolver a resiliência, a capacidade de superar adversidades e encontrar forças para seguir em frente, mesmo em tempos difíceis. Essa resiliência não é inata, mas cultivada através da prática da fé, da esperança, da caridade e da perseverança. É a habilidade de olhar além dos obstáculos, visualizar um futuro melhor e trabalhar ativamente para alcançá-lo.
Chico Xavier, em sua trajetória de vida, exemplifica essa capacidade de transformar adversidades em oportunidades. Enfrentando inúmeras dificuldades, desde uma infância humilde até sua intensa dedicação à mediunidade, ele manteve sempre uma postura otimista e um espírito de serviço ao próximo. Sua vida, marcada pela simplicidade e humildade, é um testemunho da força da fé e da importância da atitude mental na construção da felicidade.
Lidar com conflitos de maneira construtiva é um aprendizado fundamental. O autoconhecimento, por exemplo, nos permite compreender melhor nossas reações emocionais e desenvolver estratégias para enfrentar situações desafiadoras de forma equilibrada. O autoconhecimento é um dos pilares fundamentais para a construção da felicidade e da resiliência em meio às adversidades. Compreender a si mesmo, suas emoções, motivações e padrões de comportamento é essencial para enfrentar os desafios da vida de maneira mais eficaz.
O que nos falta, normalmente, é desenvolver a capacidade de encontrar alegria em meio às dificuldades, transformar conflitos em oportunidades de aprendizado e construir um mundo melhor para si e para os outros. Dentro da visão de mundo de Mahatma Gandhi, a felicidade é um estado de espírito que não depende dos elementos externos da vida. Aplicando as ideias de Gandhi pode-se dizer que o melhor de cada experiência, o aprendizado a partir dos erros é a trilha para tornar tudo melhor.
Nosso cotidiano nos ensina a ampliar nossa capacidade de lidar com os conflitos e construir uma vida plena e significativa. A felicidade, nesse contexto, não é um destino a ser alcançado, mas um caminho a ser percorrido, um processo contínuo de crescimento e realização pessoal. A jornada pode ser desafiadora, mas a verdadeira felicidade é uma conquista que transcende as adversidades e nos conecta à essência da natureza que habita em cada um de nós.
É a capacidade de transformar o sofrimento em aprendizado, a dor em compaixão e os conflitos em oportunidades de crescimento, tornando-nos seres mais completos e felizes, capazes de irradiar amor e paz para o mundo. É assim que vencemos as trevas que nos ameaçam todos os dias.
José Augusto Zaniratti 07/04/2025
Ao caminhar pelas ruas, no ônibus ou mesmo no metrô, frequentemente me pego refletindo sobre as verdades ocultas por trás dos rostos que avisto. Claro, não há pessoas com máscaras físicas ou fantasias literais — não se trata de um carnaval perene. Refiro-me a algo mais profundo: suas essências. Será que estão sendo sinceras? Será que estão sendo honestas consigo mesmas? Sinto um receio inquietante ao ponderar sobre essas questões. Descobrir a falsidade alheia é terrível, mas o que mais me atormenta é a dúvida sobre se nossas próprias ações e comportamentos são genuínos.
O medo de nos mostrarmos pode nos empurrar para a falsidade. Adaptar-se ao esperado, vestir-se de conveniência, é muito mais fácil do que enfrentar o julgamento que a autenticidade provoca. Assim, sem perceber, trocamos nossa verdade por uma versão mais palatável e menos arriscada. Nesse processo, perdemos não apenas a conexão com os outros, mas também conosco mesmos.
Fico pensando em uma frase de Franz Kafka:
“Tive vergonha de mim mesmo quando percebi que a vida é uma festa de máscara, da qual participo bem como o meu verdadeiro rosto.”
Ser autêntico é trilhar um caminho difícil. Pode nos levar à rejeição; expomos nossas fraquezas e inseguranças; e podemos nos sentir isolados, tanto social quanto profissionalmente, ou enfrentar conflitos em um mundo onde o uso de máscaras é o padrão. A vergonha surge ao perceber que, enquanto todos performam, nós insistimos em aparecer sem disfarces. É como chegar a um baile de máscaras sem uma — o constrangimento nos paralisa.
Mas por que a vergonha? Talvez porque, ao revelarmos nosso verdadeiro eu, nos tornamos alvos fáceis. Enquanto os outros se protegem atrás de sorrisos calculados e palavras medidas, nós nos expomos nus, sem defesas. E aí está o paradoxo: o que deveria ser natural — ser quem somos — transforma-se em um ato de bravura.
Vivemos cercados por rostos que escondem intenções, sorrisos que disfarçam dores e palavras que nunca revelam tudo. A sociedade opera sob um contrato tácito: finja até que dê certo, adapte-se para ser aceito. E então, sem aviso, alguém traz à tona seu verdadeiro rosto, despido de máscaras, exposto e real. Hoje, mostrar-se é ser corajoso, mas também pode ser ato de pureza, inocência.
Em meio à dança das aparências, ser genuíno é arriscar-se a ser mal compreendido, machucado e até rejeitado. A vergonha nasce desse contraste: enquanto outros protegem suas fragilidades, nós entregamos as nossas. Quem sabe essa vergonha seja um sinal forte de busca da verdade sobre nós mesmos. Participar da vida com o rosto verdadeiro é afrontar a hipocrisia, um lembrete de que a autenticidade, mesmo solitária, brilha com um fulgor que nenhuma máscara pode imitar.
As máscaras não são necessariamente um sinal de maldade. Muitas vezes, são mecanismos de sobrevivência. Desde a infância, aprendemos que certas emoções são “inadequadas” — raiva, tristeza, medo. Aprendemos a sorrir quando estamos angustiados, a dizer “estou bem” quando, por dentro, estamos despedaçados. Com o tempo, essas máscaras se fundem à nossa pele, e esquecemos quem somos por baixo delas.
Há também as máscaras sociais: o profissional perfeito, o parceiro ideal, o amigo sempre disponível. Criamos personas para cada ambiente, e quando essas versões entram em conflito, surge a crise de identidade. Quem sou eu realmente? Em algum ponto, será que perdemos de vista nosso próprio rosto?
Ser autêntico tem um custo. Pode significar perder oportunidades, relacionamentos ou aceitação. Há quem prefira a segurança da máscara ao risco da verdade. Mas há um preço mais silencioso: o desgaste interno. Viver uma vida que não é sua consome a alma. A desconexão entre quem somos e quem representamos gera um vazio que nenhuma validação externa pode preencher.
E, no entanto, há momentos em que a máscara escorrega. Um instante de raiva, uma lágrima incontrolável, um riso que não foi ensaiado. São nessas brechas que a verdade escapa — e é aí que, paradoxalmente, nos conectamos de forma mais profunda com os outros.
Kafka fala da vergonha de levar o rosto verdadeiro a uma festa de máscaras. Mas e se, em vez de vergonha, sentíssemos orgulho? E se a autenticidade fosse não um fardo, mas uma revolução?
Quando alguém ousa ser verdadeiro, isso cria um efeito dominó. Um espaço onde outros também podem tirar suas máscaras. É assim que nascem amizades profundas, amores sinceros e vidas inteiras vividas sem remorso. A autenticidade é contagiosa — e, por mais assustador que seja, é o único caminho para relações reais.
No fim, a pergunta que fica é: vale a pena arriscar-se a ser verdadeiro em um mundo que recompensa as máscaras? A resposta é pessoal, mas eu arrisco dizer que sim. Porque por trás de cada máscara há um rosto cansado de se esconder. E talvez, só talvez, a maior liberdade seja olhar no espelho e reconhecer-se — sem medo, sem vergonha, sem disfarces.
Kafka tinha razão: a vida “é” uma festa de máscaras. Mas a escolha de participar com o rosto verdadeiro é um ato de resistência. Quem sabe, no meio de tantas máscaras, o seu rosto despido seja exatamente o que o mundo precisa ver, afastando as trevas do entorno e trazendo à luz a beleza da autenticidade.
José Augusto Zaniratti 31/03/2025
“Os rios não bebem sua própria água. As árvores não comem seus próprios frutos. O Sol não brilha para si mesmo, e as flores não espalham sua fragrância para si. Viver para os outros é uma regra da natureza. A vida é boa quando você está feliz, mas a vida é muito melhor quando os outros estão felizes por sua causa.”
Estas frases são atribuídas ao Papa Francisco. Difícil dizer se são ou não de sua autoria. De qualquer forma, elas resumem de forma poética e profunda a essência da existência, especialmente sob a ótica de qualquer religião minimamente voltada ao bem. Estas linhas e suas entrelinhas nos convidam a refletir sobre o altruísmo, a solidariedade e a interdependência que permeiam toda a criação, desde os menores seres até os mais complexos.
Posso parecer um tanto piegas, mas isso não é minha responsabilidade; é das notícias de grande parte da humanidade que se tornou egoísta, cruel e destruidora da natureza, virando padrão e normalizaram a vida desta forma.
A natureza, em sua infinita sabedoria, nos apresenta um exemplo perfeito de abnegação. Os rios, que incessantemente fluem, irrigando terras e sustentando a vida, nunca se beneficiam diretamente de sua própria água. Ao contrário, se lançam aos lagos e ao mar como se desejassem a união absoluta aos outros. As árvores, que produzem frutos nutritivos, não os consomem para si mesmas, mas os oferecem como alimento para outras criaturas. O Sol, fonte inesgotável de energia e luz, irradia seu brilho para todo o universo, sem esperar nada em troca. As flores, com sua beleza e perfume, fornecem a matéria-prima para o incessante trabalho das abelhas e ainda encantam, alegram e exalam perfume, sem buscar recompensa para si mesmas. Essa generosidade inata é uma lição valiosa que a natureza nos ensina.
Essa ideia reforça um princípio fundamental para o crescimento pessoal e coletivo: o amor ao próximo como caminho para uma vida mais plena e significativa. Não se trata apenas de gestos isolados de bondade, mas de uma transformação interior que nos leva a agir com compaixão e solidariedade em todas as esferas da vida. Quando cultivamos o amor como guia de nossas ações, criamos bases mais sólidas para o progresso individual e social. Muitas tradições filosóficas, religiosas e éticas destacam que o amor é uma força motriz capaz de unir as pessoas, superar diferenças e promover o bem comum. Essa visão nos inspira a ir além do interesse próprio, buscando contribuir para um mundo mais justo e harmonioso.
A frase “Viver para os outros é uma regra da natureza” nos remete à interdependência que rege o universo. Cada ser vivo desempenha um papel fundamental no ecossistema, contribuindo para o equilíbrio e a harmonia do todo. Da mesma forma, na sociedade humana, a cooperação e a solidariedade são essenciais para o desenvolvimento e a prosperidade. Quando nos colocamos a serviço do próximo, não apenas contribuímos para o bem-estar dele, mas também para o nosso próprio crescimento como seres humanos inteligentes.
A prática da caridade não se limita à ajuda material. Ela abrange todas as esferas da vida, incluindo o auxílio moral, emocional e espiritual. Um simples ato de escuta, um gesto de compreensão, uma palavra de conforto podem ser tão importantes quanto uma doação financeira. A verdadeira caridade nasce do coração, motivada pelo amor desinteressado e pela compaixão.
A felicidade autêntica não está na busca egoísta de prazeres individuais, mas na realização do nosso potencial para fazer o bem. A verdadeira alegria surge quando direcionamos nossas energias para o serviço ao próximo. Ao nos dedicarmos a ações generosas e compassivas, descobrimos uma paz interior que não depende de circunstâncias externas. A felicidade, assim, não é um objetivo distante a ser conquistado, mas um modo de ser que se constrói dia a dia, na medida em que escolhemos agir com amor e contribuir para um mundo melhor.
Considerando a frase “A vida é boa quando você está feliz, mas a vida é muito melhor quando os outros estão felizes por sua causa”, podemos perceber uma hierarquia de valores. A felicidade pessoal é importante, mas a felicidade compartilhada, a alegria de ver o próximo se beneficiar de nossos atos, transcende a satisfação individual. Essa é a verdadeira plenitude, a experiência de um amor incondicional que nos conecta à essência divina.
Nós somos testemunhas de que a vida é uma escola. Por mais idade que tenhamos, não paramos de aprender e corrigir nosso rumo. Mas para que direção? Esse rumo pode ser para o bem ou para o mal. Isso só depende de cada um de nós; mesmo com os parcos recursos que temos, podemos fazer a diferença para alguém. Através das experiências, sejam elas agradáveis ou desagradáveis, evoluímos, aprimorando nossas virtudes e superando nossos defeitos e, eventualmente, reparando nossos erros. O serviço ao próximo é um instrumento fundamental nesse processo de crescimento, pois nos permite praticar o amor, a paciência, a tolerância e a compaixão.
Podemos observar a aplicação prática desse princípio em diversos exemplos. Um médico que dedica sua vida a cuidar dos enfermos, um professor que se empenha em educar seus alunos, um voluntário que ajuda os necessitados e tantos outros profissionais, um psicólogo ouvindo e orientando seus pacientes, todos eles estão vivendo a essência das frases atribuídas ao Papa Francisco. Suas ações, se motivadas pelo amor ao próximo, geram um impacto positivo na vida de muitas pessoas e contribuem para um mundo mais justo e solidário.
Quantas pessoas conhecemos ou já ouvimos falar que deixaram um legado de amor e esperança? Poucas pessoas, não é mesmo? Mas cada um de nós, anonimamente, também podemos deixar um rastro de bondade. Se, para uma pessoa, fizermos a diferença, estaremos no rumo certo, apesar dos falsos valores veiculados todos os dias.
Não entro no debate sobre a vida após a morte. Cada um de nós tem suas convicções. O que nos importa é a nossa prática hoje. Nossa prática individual ou coletiva influencia diretamente a vida de muitas pessoas; por isso, há a necessidade de refletirmos sobre as nossas obras, isto é, quais são os nossos legados? Nos servimos dos outros ou os servimos?
Te convido a uma profunda reflexão sobre o nosso propósito de vida. Qual é o nosso papel no mundo? Como podemos contribuir para o bem-estar do próximo? Ao respondermos a essas perguntas, estaremos dando um passo importante em direção à nossa própria realização e à construção de um mundo mais fraterno e solidário. A vida é muito melhor quando os outros estão felizes por nossa causa, pois a verdadeira felicidade reside na partilha do amor e na construção de um mundo melhor para todos. A generosidade, a compaixão e o serviço desinteressado são os pilares de uma existência plena e significativa. De fato, essa coluna pode ser considerada superficial, simplista, piegas e uma grande bobagem. Corro esse risco. Se observarmos nosso entorno e as sistemáticas ações de crueldade, concordamos que o risco que corremos é construir um mundo de trevas absolutas.
José Augusto Zaniratti 24/03/2025
Não precisa ser especialista em política externa para identificar um dos principais objetivos estratégicos de Trump. Basta uma pequena reflexão sobre algumas ações do presidente norte-americano para perceber que ele está na rota de implantar um novo mercantilismo.
Originalmente o Mercantilismo O Neo-Mercantilismo de Trump e a Corrida pelos Recursos Minerais: Uma Análise da Busca pela Dominação Tecnológica
O mercantilismo foi a principal doutrina econômica da Europa entre os séculos XV e XVIII. Ele se baseava na crença de que a riqueza de uma nação era medida pela quantidade de ouro e prata que ela possuía. Para aumentar suas reservas de metais preciosos, os países mercantilistas adotavam uma série de práticas, como:
Imposição de tarifas e outras barreiras comerciais para proteger a indústria nacional da concorrência estrangeira.
Incentivo às exportações e restrição às importações para gerar um excedente de exportações, o que aumentava as reservas de ouro e prata.
Busca por colônias para explorar recursos naturais e obter metais preciosos.
O governo desempenhava um papel ativo na economia, regulando o comércio, promovendo a indústria e criando políticas para estimular a produção e o crescimento.Exploração de colônias (colonialismo) para obter matérias-primas e mercados para os produtos manufaturados.
Concessão de privilégios e monopólios a empresas e indivíduos para estimular a produção e o comércio.
Manutenção de um exército forte para defender os interesses nacionais e garantir o controle das colônias.
Se observarmos seus decretos, desde o primeiro dia, há uma absurda semelhança com a doutrina mercantilista. Mas destaco o metalismo que foi uma das principais características do mercantilismo, a doutrina econômica dominante na Europa neste período. Era a crença de que a riqueza de uma nação é medida pela quantidade de ouro e prata que ela possui. Essa visão, chamada de bullionismo, considerava os metais preciosos como a única forma de riqueza real e duradoura.
O governo Trump, extremamente retrógrado, ao abraçar políticas neo-mercantilistas no século XXI, delineou uma estratégia ambiciosa para assegurar o domínio tecnológico dos Estados Unidos. Esta estratégia, porém, transcende a mera resposta a desafios econômicos, representando uma tentativa audaciosa de garantir a supremacia americana em um cenário global cada vez mais polarizado pela ascensão da China. O neo-mercantilismo trumpiano, focando na aquisição de recursos minerais como peça-chave na busca por essa dominação tecnológica, explorando as alianças estratégicas, as implicações geopolíticas e a crucial disputa com a China.
Como ele faz isso? A parceria público-privada é um pilar fundamental. A colaboração entre o governo Trump e o setor privado, especialmente com gigantes tecnológicos do Vale do Silício e figuras como Elon Musk, foi um elemento crucial na implementação dessa estratégia. Essa aliança estratégica permitiu a formulação de políticas públicas direcionadas tanto à extração de recursos minerais quanto ao desenvolvimento de tecnologias inovadoras e sustentáveis. A sinergia entre o poder estatal e a capacidade de inovação do setor privado visou criar um ciclo virtuoso de crescimento econômico e avanço tecnológico, impulsionando a competitividade americana em escala global. Essa parceria não se limitou a incentivos financeiros, mas também incluiu a simplificação de regulamentações e a priorização de projetos estratégicos relacionados à extração e processamento de minerais críticos para a tecnologia de ponta.
Mas há um problema. Não há mais colônia para explorar e obter minerais necessários para o século XXI. É aí que entra a ambição de Trump em adquirir ou estreitar laços com territórios ricos em recursos minerais, como o Canadá e a Groenlândia. Isso evidencia a natureza geopolítica dessa estratégia. A aquisição ou o acesso privilegiado a esses recursos não se resume a uma simples questão de exploração econômica; representa uma manobra estratégica para garantir o fornecimento de minerais essenciais para a produção de tecnologias de ponta, como baterias para veículos elétricos, componentes eletrônicos e dispositivos de armazenamento de energia. A dependência de fontes externas para esses minerais críticos representava, na visão de Trump, uma vulnerabilidade estratégica que precisava ser mitigada a todo custo. A posse ou acesso preferencial a essas reservas minerais seria, portanto, um fator determinante na corrida tecnológica global.
A busca por acordos comerciais com a Ucrânia para a obtenção de minerais estratégicos demonstra a visão de Trump de diversificação de fontes e redução da dependência de fornecedores específicos. Não importa se a Ucrânia perder parte de seu território ou se milhões morrerão com a guerra. Afinal, a Ucrânia possui reservas significativas de minerais essenciais para a indústria tecnológica americana, e a integração desses recursos à economia americana seria um contraponto à dependência de fontes potencialmente instáveis ou controladas por países rivais, como a China. Minerais como:
Lantanídeos, essenciais para a produção de ímãs permanentes de alta potência, utilizados em turbinas eólicas, veículos elétricos e equipamentos militares.
Lítio, fundamental para a fabricação de baterias de íons de lítio, imprescindíveis para a indústria automobilística, eletrônica e de armazenamento de energia.
Cobalto, utilizado na produção de baterias de íons de lítio e em superligas para a indústria aeroespacial.
Grafite, essencial para a produção de baterias, eletrodos e lubrificantes.
O acesso a esses minerais estratégicos é visto como fundamental para manter a competitividade tecnológica americana e evitar a dependência de países que poderiam restringir seu acesso.
Esta estratégia de diversificação de fornecimento, aliada à busca por acordos comerciais favoráveis aos Estados Unidos, reforça a dimensão geopolítica do neo-mercantilismo trumpiano, visando não apenas o acesso a recursos, mas também o fortalecimento da influência americana em regiões estratégicas.
O aumento da produção de petróleo nos Estados Unidos, sob a administração Trump, também se enquadra na lógica neo-mercantilista. A autossuficiência energética é vista como um pilar fundamental da soberania nacional e da segurança econômica. A redução da dependência de fontes externas de energia diminui a vulnerabilidade americana a choques geopolíticos e econômicos, fortalecendo sua posição nas negociações internacionais e reduzindo sua dependência de países que poderiam utilizar o controle de recursos energéticos como instrumento de pressão política. A produção interna de petróleo, portanto, não é apenas uma questão econômica, mas também um elemento estratégico na busca por uma maior autonomia e independência em relação ao resto do mundo.
Essa abordagem, embora promova a independência energética, ignora os impactos negativos da exploração de combustíveis fósseis para o meio ambiente, como a emissão de gases de efeito estufa. Por isso, Trump enfraqueceu regulamentações ambientais, como a Lei de Política Ambiental, com o objetivo de acelerar a aprovação de projetos de infraestrutura, como dutos e rodovias. Essa desregulamentação facilita a exploração de recursos naturais e o desenvolvimento industrial, mas também aumenta o risco de impactos ambientais negativos.
Trump negou a existência da mudança climática e retirou os EUA do Acordo de Paris, um acordo internacional para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Essa postura demonstra uma falta de compromisso com a proteção ambiental e a busca por soluções para o problema da mudança climática. A visão neo-mercantilista de Trump prioriza o crescimento econômico e a competitividade industrial, mesmo que isso signifique sacrificar a proteção ambiental. Essa abordagem coloca a indústria em uma posição privilegiada em relação ao meio ambiente, com políticas que favorecem o desenvolvimento industrial, mesmo que isso implique em impactos negativos para o planeta.
A estratégia neo-mercantilista de Trump deve ser analisada no contexto da crescente disputa tecnológica com a China. A ascensão da China como potência tecnológica representa um desafio significativo aos Estados Unidos, e a aquisição de recursos minerais é vista como uma peça fundamental na tentativa de manter a liderança americana. A competição pela inovação tecnológica, pela produção de bens de alta tecnologia e pelo controle de cadeias de suprimentos globais se tornou um campo de batalha crucial na geopolítica contemporânea. A estratégia de Trump, portanto, não é apenas uma resposta a desafios econômicos, mas também uma tentativa de conter a ascensão da China e preservar a hegemonia tecnológica americana. Mesmo que isso implique o desprezo pelo planeta e pelos direitos humanos. Robert De Niro tem razão quando afirmou que: "Mas há algo de diferente em Donald Trump. Quando olho para ele, não vejo um homem mau. Verdadeiramente. Vejo um ser maligno.” E eu digo que é a nova versão das trevas.
A Dualidade do Bem e do Mal
José Augusto Zaniratti 17/03/2025
Há uma tendência nítida em todos nós: olhamos tudo pelo filtro do bem e do mal, do bom e do mau, como se tudo fosse preto ou branco. Essa dualidade encobre as diferenças e as nuances entre as coisas e, principalmente, entre as pessoas. Meu pai sempre dizia: “ou o sujeito é meu amigo ou meu inimigo”. No entanto, ele mesmo me ensinou que nem tudo é absolutamente uma qualidade. Existem outras cores e muitos tons de cinza.
Fico aqui pensando quantas vezes erramos por fazer juízo de valor maniqueísta entre o bom e o mau. A tendência humana de enxergar o mundo através de um filtro binário, classificando tudo em categorias de bem e mal, é uma característica profundamente enraizada em nossa psicologia. Essa visão dual, frequentemente expressa na máxima de que "tudo é preto ou branco", pode obscurecer as complexidades da vida e das relações interpessoais. Essa dicotomia, embora prática, ignora a rica tapeçaria de nuances que compõem a experiência humana.
A dualidade entre o bem e o mal é uma parte inevitável da condição humana, mas devemos ter cuidado para não deixá-la nos aprisionar em uma visão reduzida da realidade. Ao invés de rotular as pessoas como amigas ou inimigas, devemos buscar entender suas complexidades. Como sociedade, é fundamental promover uma cultura de diálogo e empatia, onde as nuances e diferenças sejam reconhecidas e celebradas.
Assim, ao nos afastarmos de julgamentos dicotômicos, podemos abrir espaço para uma compreensão mais rica e verdadeira das pessoas e do mundo que nos cerca. Afinal, como nos ensinam os grandes pensadores, a realidade é muito mais colorida do que os extremos de preto e branco.
Filósofos ao longo da história têm explorado essa dualidade. Friedrich Nietzsche, por exemplo, em sua obra "Além do Bem e do Mal", critica a moralidade tradicional, que frequentemente divide o mundo em opostos. Para Nietzsche, essa visão simplista limita nossa compreensão da vida e da natureza humana. Ele sugere que, em vez de julgar as ações como boas ou más, devemos examinar suas motivações e contextos, reconhecendo que a moralidade é mais complexa do que um simples dualismo.
Da mesma forma, o filósofo francês Michel Foucault argumenta que as categorias de bem e mal são construções sociais que variam de cultura para cultura e ao longo do tempo. Em "A História da Sexualidade", Foucault propõe que a moralidade não é uma verdade universal, mas um reflexo das relações de poder em uma sociedade específica. Essa ideia nos leva a questionar se nossas avaliações de caráter e comportamento não são, em última análise, influenciadas por normas sociais e expectativas culturais.
A visão maniqueísta não é apenas uma simplificação do mundo; ela também pode ter consequências reais em nossas vidas. Quando rotulamos as pessoas como "boas" ou "más", corremos o risco de desumanizá-las, ignorando suas histórias e experiências. Isso pode levar a conflitos desnecessários e à polarização social. A filósofa Hannah Arendt, em "A Condição Humana", observa que a capacidade de julgar é fundamental para a convivência humana. No entanto, esse julgamento deve ser informado pela empatia e pela compreensão, não por categorias rígidas.
Quando refletimos sobre as relações humanas, percebemos que muitas vezes erramos ao fazer juízos de valor preconceituosos e simplistas. Cada indivíduo é um emaranhado de experiências, emoções e motivações que não podem ser reduzidas a um simples rótulo. A filósofa Simone de Beauvoir, em "O Segundo Sexo", argumenta que a compreensão das diferenças entre os gêneros e as experiências humanas requer uma análise mais profunda do que a mera dicotomia de opostos.
Ao longo de minha vida encontrei pessoas tão diferentes entre si e de mim. Com cada uma aprendi muito, seja no que ser e fazer, assim como o que não ser e fazer. Contudo, percebi que há um tipo de ser que vai muito além do mau: os seres malignos.
Achava que isso só existia na fantasia ou na ficção. E saibam, que na minha opinião, há os serem malignos.
Um ser humano mau é alguém que comete atos errados, geralmente por motivos egoístas ou por falta de consideração pelos outros. A motivação de um ser mau pode agir por raiva, ganância, vingança ou simplesmente por falta de empatia. Se fosse possível medir a abrangência das ações de um ser mau, geralmente diríamos que afetam um número limitado de pessoas.
Um ser maligno, por outro lado, busca ativamente causar mal e sofrimento aos outros, muitas vezes por prazer ou por um objetivo maior de destruir ou corromper. Um ser maligno, ignora aqueles que ama ou seus aliados, é impulsionado por uma força, uma ambição distorcida ou um desejo de caos. Tem a intenção deliberada de causar danos e sofrimento, sem remorso ou compaixão, causando danos em larga escala, afetando muitas pessoas ou até mesmo o mundo inteiro. Sim, eu sei que há uma linha tênue entre um homem mau e um ser maligno. Mas há diferenças! Foi então que me veio à mente uma palavra: TREVAS! E imediatamente lembrei de umas frases de discurso proferido por Robert De Niro e publicado em 20 de fevereiro de 2025 em um evento chamado "Cimeira para Parar Trump", realizado em Nova Iorque:
“Passei muito tempo estudando homens maus. Examinei as suas características, os seus maneirismos, a banalidade absoluta da sua crueldade. Mas há algo de diferente em Donald Trump. Quando olho para ele, não vejo um homem mau. Verdadeiramente. Vejo um ser maligno.”
Analfabetos Digitais, Fake News e os Desafios da Inclusão Digital
José Augusto Zaniratti 03/03/2025
O que vivemos hoje com as chamadas “fake news” é resultado de um processo histórico de importação de tecnologia e analfabetismo digital. Isso não significa que o universo digital seja ruim; pelo contrário, foi e é um avanço extraordinário. A implantação da tecnologia digital, porém, foi abrupta, sem preparação. No Brasil, não começou exclusivamente com os bancos, mas estes tiveram papel significativo na popularização da internet. Na década de 1990, com a internet comercial, os bancos foram pioneiros na adoção de tecnologias digitais, melhorando serviços e eficiência. Assim, a população se tornou usuária da noite para o dia, sem preparação. Alguns bancos usaram estagiários para ensinar o uso, mas não a lógica dos mecanismos – como escrever o nome sem saber ler. Tornámo-nos, em outras palavras, analfabetos digitais funcionais. Embora os bancos tenham sido pioneiros, a digitalização se expandiu para outras áreas (comércio, comunicação, entretenimento), mas a implantação continuou abrupta, e a educação não acompanhou a velocidade necessária.
As vantagens do mundo digital eram absurdas, mas mais rápidas e funcionais que o analógico. Lembro que em 1988 comprei um computador por US$ 1.200, com monitor de fósforo verde, dois drives de disquete de 5.25" e um disco rígido de 40 megabytes. Chamei um amigo para me ensinar a usá-lo, e ele disse: "Zaniratti, você nunca vai conseguir encher esse disco de 40 MB!". Hoje, qualquer celular tira fotos dez vezes maiores.
A partir de 2000, a difusão da tecnologia móvel, com celulares com acesso à internet, ampliou o acesso aos mecanismos digitais. A partir de 2010, com a popularização dos smartphones e a expansão da cobertura de rede, o acesso se tornou ainda mais abrangente, alcançando diversas camadas da população, inclusive regiões remotas e vulneráveis. Mas o processo abrupto de aprendizagem da lógica do mundo digital, diferente do analógico, continuou.
O resultado se reflete na grande ignorância em lidar com o universo digital, parte vital de cada cidadão. O que falta? Letramento digital. Este é a capacidade de acessar, avaliar, usar e criar informações em formatos digitais. Vai além do simples conhecimento técnico, abrangendo habilidades e competências para navegar criticamente e eficazmente no ambiente digital. Não fomos letrados para usar o universo digital disponível; não sabemos ler entrelinhas digitais, nem diferenciamos o uso e as consequências da aplicação não ética dessas ferramentas. A desinformação sobre essas ferramentas trouxe à luz o verdadeiro caráter de milhões que usam a tecnologia para ferir a reputação de pessoas e coisas.
O letramento digital é essencial para a capacitação pessoal e profissional. Em um mercado cada vez mais digitalizado, habilidades digitais são exigidas. Candidatos com alto nível de letramento digital se destacam em processos seletivos e se adaptam a novas tecnologias. A capacidade de aprender de forma autônoma, usando recursos digitais, é um diferencial.
Na era digital, a cidadania não se limita ao voto. O letramento digital permite envolvimento em discussões públicas, acesso a informações governamentais e participação ativa em movimentos sociais. O uso das redes sociais para mobilização e "advocacy" mostra como o letramento digital fomenta a cidadania ativa.
Em um ambiente saturado de informações, o letramento digital promove o pensamento crítico. Indivíduos letrados digitalmente discernem entre informações relevantes e irrelevantes, identificam fontes confiáveis e questionam narrativas manipulativas. Essa habilidade é vital para a resiliência em tempos de desinformação, permitindo decisões informadas.
O letramento digital é uma ferramenta poderosa para promover a inclusão social. A falta de habilidades digitais pode resultar em exclusão. Iniciativas que desenvolvem o letramento digital em comunidades marginalizadas podem nivelar o campo e proporcionar oportunidades para todos.
Embora a importância do letramento digital seja reconhecida, sua promoção enfrenta desafios. Um dos principais desafios é a dificuldade, ainda, ao acesso à tecnologia. Em muitas regiões, o acesso à internet e a dispositivos digitais é limitado. Essa lacuna digital impede que muitos indivíduos desenvolvam as habilidades necessárias.
A formação de educadores em letramento digital é outro desafio. Muitos professores não se sentem seguros em usar tecnologias digitais em sala de aula. A falta de formação adequada em tecnologia educacional e metodologias digitais reduz a eficácia do ensino. Precisamos de educadores digitais, pois é necessário mais do que ensinar a técnica; valores e ética são essenciais.
A proliferação de desinformação e "fake news" representa um grande desafio. Em um ambiente onde informações falsas circulam livremente, a capacidade de avaliar criticamente as fontes de informações é vital. Muitas pessoas carecem das habilidades necessárias para discernir entre informações verdadeiras e falsas.
O medo de golpes e a resistência natural às mudanças são barreiras significativas. Muitas pessoas podem se sentir intimidadas ou relutantes em adotar novas ferramentas. Essa resistência pode ser superada através de iniciativas que promovam a alfabetização digital de forma acessível e envolvente.
Para superar esses desafios, diversas estratégias podem ser implementadas, como políticas públicas. A implementação de programas de formação e capacitação para educadores e alunos é fundamental. A capacitação deve ser adaptada às necessidades específicas de cada grupo. A educação formal e informal precisa acompanhar a velocidade da tecnologia, abordando a ética.
Iniciativas que visem aumentar o acesso à tecnologia em comunidades vulneráveis são essenciais. Isso pode incluir a distribuição de dispositivos, a criação de espaços de acesso à internet e parcerias com empresas de tecnologia.
É crucial promover a educação para a avaliação crítica das informações. Isso pode ser feito através de workshops e cursos que ensinem técnicas de verificação de fatos, identificação de fontes confiáveis e análise crítica de conteúdo digital. Essa educação deve ser integrada ao currículo escolar.
A colaboração entre escolas, organizações da sociedade civil, empresas e governos é fundamental. Parcerias podem resultar em iniciativas inovadoras que atendam às necessidades específicas de cada comunidade.
A promoção do letramento digital deve estar ligada à cidadania ativa. Incentivar os alunos a se envolverem em projetos comunitários pode aumentar suas habilidades digitais e seu senso de responsabilidade social.
A construção de uma sociedade mais inclusiva e informada depende da capacidade de todos os indivíduos de desenvolver habilidades digitais. A promoção do letramento digital não é apenas uma questão de acesso à tecnologia, mas uma necessidade para garantir um futuro mais justo e equitativo para todos. Esta é uma das formas de enfrentar os agentes das trevas, da desinformação que insistem em notícias falsas e em bloquear o acesso ao letramento digital de verdade.
A Importância e os Desafios da Educação Inclusiva no Brasil
José Augusto Zaniratti 24/02/2025
A Educação Inclusiva no Brasil, como muitas conquistas sociais, nasceu da luta incansável de famílias que buscavam o direito à educação para seus filhos com deficiência. No final do século XX, por volta de 1990, esse movimento ganhou força, encontrando respaldo na Constituição, que garante o direito à educação para todos, independentemente de suas limitações físicas, dificuldades de aprendizagem ou superdotação.
Hoje, essa ideia parece óbvia. Mas, por muito tempo, crianças diferentes foram excluídas das salas de aula. Havia um "modelo ideal" de aluno, e aqueles que não se encaixavam eram marginalizados. A educação regular, na prática, segregava uma parcela da população, negando-lhes a oportunidade de aprender e de participar plenamente da sociedade. Era uma violação aos direitos humanos básicos, um abismo entre o avanço do conhecimento e o acesso a ele para todos.
Ao longo da história, o acesso à educação nem sempre foi um direito universal. Em épocas passadas, como na Idade Média, o conhecimento era frequentemente restrito a grupos privilegiados, como o clero e a nobreza. Essa exclusão, embora contextualizada em um sistema social diferente do nosso, ilustra como a educação pode ser usada para manter estruturas de poder e desigualdade. A educação inclusiva, portanto, representa uma ruptura radical com essas práticas históricas de exclusão, afirmando o direito à educação para todos, independentemente de suas diferenças. É um marco na construção de uma sociedade mais justa e equitativa, onde o acesso ao conhecimento não é privilégio, mas um direito fundamental.
Ao contrário deste período histórico, a educação inclusiva é um processo de aprendizagem que acolhe todas as crianças, adolescentes e jovens, independentemente de suas diferenças individuais, em uma mesma escola e sala de aula. Ela se baseia no princípio de que todos os alunos têm o direito de aprender e se desenvolver em um ambiente que respeite suas necessidades e potencialidades, rompendo com a segregação e a exclusão de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, bem como aqueles que apresentam outras necessidades educacionais especiais. É um modelo educacional que busca atender a diversidade de alunos, independentemente de suas características individuais, como raça, etnia, deficiência ou background socioeconômico, gerando um ambientes que respeitem suas singularidades.
Essa política pública, que a partir de 2015, regulamentada pela lei 13.146, produz uma sociedade completamente diferente, mais justa, democrática e solidária, ensinando, na prática, a solidariedade. Ao garantir o acesso de todos à educação, promove a inclusão social, o desenvolvimento integral de cada indivíduo e a valorização da diversidade. Uma sociedade inclusiva é mais rica, criativa e produtiva. A implementação efetiva da educação inclusiva gera consequências positivas para os alunos, professores, famílias e a comunidade como um todo. Para os alunos, significa maior autoestima, desenvolvimento de habilidades sociais, maior participação na sociedade e melhores oportunidades de futuro. Para os professores, significa o desenvolvimento profissional contínuo, a oportunidade de aprender com a diversidade e a construção de um ambiente de trabalho mais significativo. Para as famílias, significa maior tranquilidade e confiança no sistema educacional. Promover uma educação inclusiva não beneficia apenas os alunos, mas a sociedade como um todo. A diversidade no ambiente escolar pode levar a uma maior criatividade, inovação e resolução de problemas. A inclusão de diferentes perspectivas é fundamental para avançar em direção a uma sociedade mais justa e equitativa.
A inclusão de diferentes culturas e etnias no currículo escolar é fundamental para promover a diversidade. Quando os alunos têm a oportunidade de aprender sobre as várias culturas que compõem a sociedade brasileira, eles desenvolvem uma maior empatia e respeito pelas diferenças. Isso não só enriquece o aprendizado, mas também ajuda a construir uma sociedade mais coesa.
A educação inclusiva visa garantir que todos os alunos tenham as mesmas oportunidades de aprendizagem. Isso é especialmente importante em um país como o Brasil, onde as desigualdades sociais ainda são profundas. Ao promover a equidade no acesso à educação, garantimos que todos os estudantes possam alcançar seu potencial máximo e contribuir para a sociedade.
Mas é claro que este não é um momento perfeito para aplicação deste tipo de educação. Há desafios que precisam ser enfrentados.
Embora a educação inclusiva tenha força de lei, nem todas as cidades brasileiras aplicam integralmente suas determinações. A falta de formação adequada dos professores para lidar com a diversidade em sala de aula é um grande desafio. É necessário investir em capacitação contínua, que inclua conhecimentos sobre as diferentes necessidades educacionais especiais e metodologias inclusivas.
Também há falta de recursos materiais e pedagógicos adequados para atender às necessidades específicas de cada aluno é outro obstáculo. É preciso garantir o acesso a tecnologias assistivas, materiais didáticos adaptados e profissionais especializados.
Muitas escolas não possuem a infraestrutura física necessária para receber alunos com deficiência, como rampas, elevadores e banheiros adaptados e etc., para viabilizar a acessibilidade universal para todos.
Ainda se percebe preconceito e discriminação por parte de professores, colegas e da comunidade, por ignorância ou despreparo. É preciso ações efetivas, não só do poder público, mas da própria população no sentido de veicular os avanços que essa educação proporciona no desenvolvimento das crianças e na mudança de atitudes que acabam criando um ambiente escolar acolhedor e respeitoso.
O acompanhamento e a avaliação do processo de inclusão são essenciais para garantir que as estratégias implementadas sejam eficazes. É preciso desenvolver instrumentos de avaliação que levem em conta a diversidade e as necessidades individuais de cada aluno.
A parceria entre a família e a escola é fundamental para o sucesso da inclusão. É preciso criar canais de comunicação e colaboração para que os pais e responsáveis estejam envolvidos no processo educacional de seus filhos.
E há um aspecto que é pouco discutido que é a inclusão cultural. Como todos sabem, o decreto federal 6040 de 2007 estabeleceu “Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais”, apontando para a necessidade de apoio e respeito às dezenas de povos e comunidades tradicionais. Entretanto, se observa invariavelmente, o desrespeito aos povos de matriz africana, por exemplo, na merenda escolar, que oferece alimentos que não são aceitos por essa população. De certa forma, a merenda escolar também é um elemento de inclusão e respeito à cultura de um povo tradicional.
A implantação da educação inclusiva é um processo complexo, lento e desafiador, mas fundamental para garantir o direito à educação de qualidade para todos. Superar os desafios requer um esforço conjunto de todos os envolvidos – governo, escolas, professores, famílias e comunidade – para construir uma sociedade mais justa e inclusiva e, principalmente solidária, rumando para o sentido contrário das trevas.
O Preconceito: Um Aprendizado Equivocado
José Augusto Zaniratti 17/02/2025
Nascemos puros, com o DNA livre de preconceitos. A contaminação vem com o tempo, absorvendo conceitos e cultivando o hábito de julgar, de rotular. A família é o primeiro ambiente, seguida pelos amigos, e hoje, amplificado exponencialmente pelas redes sociais e internet, um eco que reverberou nas últimas décadas. O preconceito, portanto, é aprendido; somos ensinados a preconceituar.
Meu pai, Geraldo Zaniratti, me contava sobre um encontro marcante com um cigano vendedor de tachos, que descrevo com detalhes no livro "Geraldo Zaniratti: memórias projetadas na tela de um livro". Ele confessava seu preconceito contra Lázaro Stefanoi, e essa experiência o ensinou que o preconceito é um rótulo limitador, um muro que impede o respeito às diferenças e relações humanas genuínas. Eu, felizmente, aprendi a viver sem o preconceito como escudo. Mas essa não é a realidade da maioria no século XXI.
Os povos ciganos, por exemplo, são comunidades tradicionais, conforme o Decreto Federal 6040/2007 – fato ignorado por muitos. Invisibilizados e desconsiderados por um preconceito arraigado, alimentado por generalizações sobre seus costumes e origens. Assim como "índios" é uma designação equivocada para nossos povos originários (que nunca tiveram relação com a Índia), a palavra "cigano" carrega um peso histórico de preconceito e discriminação. Derivada do grego "Aígyptos" (egípcio), a associação errônea surgiu durante as cruzadas (século XV), quando grupos vindos do leste europeu foram confundidos com egípcios. Na verdade, eram povos Rom, de origem indiana, que migraram para a Europa entre os séculos IX e XIV.
A ignorância e a incapacidade de acolher o diferente são a raiz do problema. Os Rom, Calon e Sinti (pejorativamente chamados de "ciganos"), assim como tantos outros povos originários e comunidades tradicionais do Brasil, sofrem agressões físicas, discriminação cultural e violação de direitos, garantidos pela legislação nacional e internacional. A perpetuação de estereótipos negativos e a discriminação se alimentam do uso da palavra "cigano" para designar as etnias Rom, Calon e Sinti.
Muitos, hoje, preferem ser identificados por seus nomes étnicos específicos, em vez de "cigano", que carrega conotações negativas. "Chegou a hora do cigano brasileiro parar de se sentir estrangeiro em sua própria terra", disse Mirian Stanescon Batuli, cigana Kalderash, autora da cartilha "Povo Cigano - o direito em suas mãos" (2007). Como ela argumenta, o Estado tem uma dívida histórica com os povos ciganos, manifesta em discriminação e exclusão. Há 500 anos no Brasil, com direitos historicamente violados desde a colonização portuguesa, as etnias ciganas ainda enfrentam desafios para ver seus direitos assegurados, dispersos em instrumentos legais nacionais e internacionais para "Povos e Comunidades Tradicionais" e "minorias étnicas".
O tratamento indiferente, e muitas vezes agressivo, que os Rom, Calon e Sinti recebem da população, reflete sua invisibilidade no Brasil e as dificuldades na luta por direitos constitucionais e participação na construção de políticas públicas efetivas. Essa invisibilidade se manifesta no frágil registro de famílias ciganas no Rio Grande do Sul, onde as condições de vida e acesso a direitos básicos permanecem um "ponto cego" para o Estado. Segundo o IBGE (2022), o Brasil tem cerca de 500 mil pessoas ciganas – número subestimado devido à subnotificação. Em 2022, apenas 296 famílias ciganas estavam cadastradas no Cadastro Único no Rio Grande do Sul, em situação de vulnerabilidade social, refletindo também a subnotificação. Como defendem Rothenburg e Stroppa (2020, apud BRASIL, 2022, p. 8), esses dados mostram a necessidade de estudos e mapeamento desta população. A inexistência de informações específicas é parte do problema: "constitui exemplo eloquente da falta de reconhecimento dos ciganos como destinatários de políticas públicas formuladas especificamente para alterar essa realidade", argumenta Netto Junior (2020, p. 15). Essa subnotificação tem um duplo aspecto: "De um lado, o Estado não os vê, salvo por seu aparato repressor. De outro, como forma de autoproteção, os ciganos muitas vezes se invisibilizam. Isso faz com que variem enormemente as respectivas estimativas demográficas" (p. 28).
Os Rom, Sinti e Calon estão em todos os estados brasileiros, desde locais sofisticados até as periferias, com costumes nômades ou sedentários. Muitos atuam em áreas como saúde, educação, direito e artes. O IBGE estima entre 800 mil e 1 milhão de pessoas que se identificam como ciganas no Brasil. Na verdade, são várias culturas, vários povos, como explica Aluízio de Azevedo Silva Junior, cigano Kalon e doutor pela Fiocruz: "Há uma tendência a generalizar, assim como 'indígena' ou 'negro' esconde vários povos sob um mesmo nome. Os povos ciganos também são assim, com culturas e identidades diferentes, algumas semelhanças que os unem sob o termo 'ciganos'".
O histórico de perseguição e racismo é comum a todos os grupos ciganos, fazendo com que muitos não assumam sua ascendência publicamente e evitem serviços públicos por medo de represália. O nomadismo, muitas vezes associado à cultura cigana, surgiu não como característica intrínseca, mas como consequência de políticas de expulsão em diversos países. Atualmente, a maioria reside em casas, acampamentos fixos ou pequenas comunidades. Os nômades representam apenas 10 a 15% das comunidades; "viajante" ou "itinerante" seria mais preciso, pois têm residência fixa, viajam por um tempo em rotas pré-determinadas e retornam.
O respeito à diversidade cultural e ao modo de vida dessa população, com seus saberes próprios, é fundamental. O trabalho com a comunidade deve considerar as especificidades de cada etnia e sua regionalidade. Alterar comportamentos preconceituosos é responsabilidade de cada um, com o apoio de políticas públicas para coibir crimes contra os povos e comunidades tradicionais e fortalecer iniciativas de acolhimento cultural, para todas as comunidades tradicionais.
A persistência do preconceito reflete nossa incapacidade de reconhecer a riqueza da diversidade. É preciso romper esse ciclo, desconstruindo preconceitos e aprendendo a valorizar as diferenças, construindo pontes de respeito e compreensão. A história do meu pai serve de alerta: o preconceito não é inerente à natureza humana, mas um aprendizado equivocado que precisa ser desfeito. Do contrário, trilharemos o caminho das trevas.
Os Senhores Feudais Voltaram: Poder e Ilusão das Trevas
José Augusto Zaniratti 10/02/2025
Um amigo me perguntou recentemente por que insisto em falar sobre "trevas" em meus escritos, mesmo no século XXI. Essa indagação me levou a uma profunda reflexão sobre a história e seus padrões recorrentes. A história não se repete, mas, com pouco esforço, podemos identificar valores e práticas antigas de acumulação de poder e riquezas, agora aplicados com discurso e técnicas modernas.
A analogia entre os senhores feudais da Idade Média e figuras de poder contemporâneas é, na minha opinião, assustadoramente precisa. Não se trata apenas de uma metáfora, mas de uma análise das estruturas de poder e seus mecanismos de controle, que se repetem ao longo dos séculos, adaptando-se às novas roupagens de cada época.
Na Idade Média, o sistema feudal era uma teia complexa de relações de poder, com os senhores feudais no topo da pirâmide. Apoiados pela ideologia dominante, fundamentada na Igreja Católica medieval, eles dominavam mentes e corações.
A autoridade dos senhores feudais era quase absoluta sobre seus servos, que trabalhavam suas terras em troca de proteção – muitas vezes ilusória – e subsistência. A Igreja Católica, aliada estratégica dos senhores feudais, reforçava seu poder por meio da doutrinação religiosa e da Inquisição. Esta última, como instrumento de controle social e político, silenciava qualquer dissidência, eliminando aqueles que ousavam questionar a ordem estabelecida.
A obra de Edward Peters, The Inquisition, detalha o funcionamento brutal deste sistema, mostrando como a busca pela "verdade" religiosa servia de pretexto para a repressão e o controle social (Peters, 1988), e até mesmo para a acumulação das riquezas dos perseguidos e queimados vivos. As guerras religiosas, frequentemente financiadas pelos senhores feudais, não eram apenas disputas territoriais, mas também uma forma de consolidar o poder e expandir suas riquezas, sempre sob o manto da fé e da luta contra as "trevas". Essa dinâmica de poder, onde a proteção e a submissão eram as moedas de troca, ecoa em muitos aspectos das sociedades contemporâneas.
A analogia com o presente não é uma simples comparação superficial. No século XXI, o poder se manifesta de formas mais sutis, mas a estrutura fundamental permanece semelhante. Os "novos senhores feudais" não são mais donos de terras, mas controlam recursos vitais: informação, tecnologia, capital financeiro e até mesmo a narrativa dominante. Eles utilizam mecanismos de controle mais sofisticados, como a manipulação da mídia, a propaganda política e a vigilância digital.
A repressão, embora menos explícita que a da Inquisição, ainda existe, por meio de leis restritivas, censura e perseguição a dissidentes e estrangeiros. A liberdade de expressão, muitas vezes apresentada como um valor fundamental nas sociedades contemporâneas, é frequentemente limitada por interesses poderosos. Em nome da liberdade de expressão, permite-se destruir pessoas com mentiras e negação da ciência. Era um tribunal que julgava hereges – pessoas que não aceitavam as verdades absolutas pregadas pela Igreja, chamando isso de cristianismo –, porém esses julgamentos tornaram-se também parte de um movimento político e econômico da época.
O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, criado na época do Papa Gregório IX (1145-1241), mandou para a fogueira milhares de pessoas consideradas hereges, isto é, aquelas que não aceitavam doutrinas ou práticas contrárias ao que era definido pela Igreja Católica e, assim, condenadas por bruxaria. Hoje, a negação é prática comum, como ignorar as mudanças climáticas, recusar a vacinação ou acreditar que a Terra é plana, e tantas outras verdades que a ciência já comprovou o contrário há séculos. Está na prática dos novos senhores feudais. Hoje não há fogueiras para os hereges, mas a morte sumária ou a imposição da “sibéria do esquecimento” para quem diverge é a prática moderna da Inquisição.
O astrônomo italiano Galileu Galilei, por exemplo, quase foi levado à fogueira por afirmar que a Terra girava em torno do Sol. Ele teve que negar suas descobertas para não perder a vida. No século XX, o Vaticano pediu perdão a Galileu Galilei. O filósofo italiano Giordano Bruno foi julgado e condenado à morte pelo tribunal, por sustentar opiniões contrárias à fé católica ao apoiar a visão copernicana.
A era digital, que prometia democratizar a informação, muitas vezes se transforma em uma ferramenta de controle e manipulação, onde a verdade é moldada por aqueles que detêm o poder.
Na Idade Média, a Igreja controlava o acesso à informação, ditando a narrativa oficial. Hoje, grandes corporações de mídia e plataformas digitais desempenham um papel semelhante, moldando a percepção pública e silenciando vozes dissonantes. A proliferação de fake news e a manipulação algorítmica das redes sociais são exemplos claros dessa estratégia de controle. A religião na idade média era um instrumento potente para senhores feudais justificarem suas práticas. Hoje os novos senhores utilizam narrativas construídas em torno de ideologias políticas, frequentemente em nome de um "bem maior" que serve a seus interesses pessoais.
Os senhores feudais medievais justificavam suas ações em nome de Deus e da fé. Os "novos senhores feudais" utilizam-se de ideologias contemporâneas, como o nacionalismo exacerbado, o liberalismo econômico e até o discurso falso de justiça social, para justificar suas ações e manter o “status quo”. A retórica do "bem comum" muitas vezes mascara interesses pessoais e corporativos, criando um ambiente onde a crítica é deslegitimada e a oposição silenciada.
A Inquisição medieval utilizava métodos brutais para reprimir a dissidência. Hoje, a repressão pode ser mais sutil, mas não menos eficaz. A vigilância digital, a perseguição judicial seletiva e a difamação pública são exemplos de como a dissidência é controlada. O trabalho de Noam Chomsky sobre a propaganda e o controle da mídia ilustra como essa repressão funciona em sociedades aparentemente democráticas (Chomsky, 2002). A luta pela liberdade de expressão é constantemente ameaçada por estruturas que buscam manter a ordem estabelecida, refletindo a dinâmica de poder dos antigos senhores feudais.
A principal diferença, talvez, seja a sofisticação dos métodos de controle. Enquanto os senhores feudais medievais utilizavam métodos brutais e explícitos, os "novos senhores feudais" empregam estratégias mais sutis e indiretas. A ilusão do progresso tecnológico e da democracia liberal máscara a persistência das estruturas de poder, criando uma falsa sensação de liberdade e escolha. Como Slavoj Žižek argumenta, a ideologia mais eficaz é aquela que nos faz acreditar que não temos escolha (Žižek, 2008). Essa é a armadilha em que muitos caem, acreditando estar livres enquanto permanecem presos em sistemas que perpetuam a desigualdade e a injustiça.
Um exemplo contemporâneo dessa dinâmica é a ascensão de líderes populistas em diversos países da América, Europa, Ásia e África. Eles empregam uma retórica anti-establishment, apresentando-se como salvadores do povo. Essa estratégia, que lembra os métodos dos senhores feudais de se apresentarem como protetores, ressoa com muitos que se sentem marginalizados pela elite política. Esses líderes modernos, assim como os senhores feudais de outrora, utilizam a polarização para consolidar seu poder, manipulando a narrativa e criando um ambiente onde a dissidência é não apenas indesejada, mas considerada uma traição ao "povo".
A comparação entre os senhores feudais medievais e os líderes contemporâneos não é um exercício de nostalgia histórica, mas um alerta. As estruturas de poder, embora adaptadas às novas circunstâncias, permanecem fundamentalmente as mesmas. A luta contra as "trevas", portanto, continua. A tarefa é identificar os "novos senhores feudais", compreender seus métodos de controle e resistir à sua dominação.
A busca pela justiça social e pela verdadeira liberdade exige a constante vigilância e a disposição de questionar as narrativas dominantes. O papel da sociedade civil, dos movimentos sociais e da educação crítica é fundamental para desmantelar essas estruturas de poder. A resistência deve ser uma ação coletiva, onde cada voz conta e cada ato de coragem desafia a opressão.
A análise das semelhanças entre os senhores feudais da Idade Média e os líderes contemporâneos revela padrões inquietantes de controle e dominação que transcendem o tempo. São novas formas de ampliação do poder em detrimento da liberdade que se repetem pela natureza nefasta de líderes mundiais; por isso, devemos estar sempre atentos às lições do passado. A conscientização sobre a natureza dessas dinâmicas é o primeiro passo em direção à mudança. Para que possamos realmente avançar em direção a uma sociedade mais justa e equitativa, é necessário não apenas reconhecer esses padrões, mas também agir contra eles. A luta pela liberdade e pela justiça social é uma tarefa contínua, que exige nosso compromisso e coragem para fugir dos caminhos para as trevas.
A Inteligência Artificial e o Futuro
José Augusto Zaniratti 03/02/2025
A inteligência artificial (IA) provoca um debate global sobre seus potenciais impactos. Enquanto alguns preveem um futuro devastador, outros vislumbram benefícios para a humanidade. Entretanto, a realidade imediata para a maioria da população concentra-se em necessidades básicas. A grande maioria da população se preocupa com o que vai comer amanhã ou se vai conseguir trabalho a curto prazo ou, ainda, qual profissão vai seguir.
O fato é que discutindo ou não este tema, todos nós sofreremos o impacto inexorável da IA. Paradoxalmente, a discussão sobre o futuro da IA ocorre em meio a urgências presentes, tornando a análise de seus impactos de longo prazo ainda mais complexa. A velocidade do avanço tecnológico e a impossibilidade de prever com precisão o futuro, dada a multiplicidade de variáveis e agentes envolvidos, exigem uma abordagem cautelosa e multifacetada.
O que se pode arriscar é compreender o passado, de como reagimos aos avanços que nos impactaram. Imaginemos o controle do fogo pela humanidade. Provavelmente na África o “homo erectus”, há 1.800.000 milhão de anos atrás, passou a controlar o fogo, isto é, passou a produzir, usar e apagar o fogo a partir de suas necessidades. Pense em tudo que ele passou a fazer: espantar os animais; moldar os minerais; cozinhar alimentos coletados e também a destruir coisas e matar animais e seus semelhantes. Impacto enorme, tudo mudou.
Harari, em "Sapiens: Uma Breve História da Humanidade", observa que "a habilidade de criar e controlar o fogo foi uma das grandes revoluções da história, permitindo que os seres humanos se tornassem o que são hoje". O fogo, como todos os elementos da natureza, pode construir e destruir, e agora isso estava nas mãos da humanidade. O avanço fantástico da tecnologia da época não nos destruiu completamente. Ao contrário, nos fez avançar, ainda que lentamente. O fogo, como todos os elementos da natureza podem construir e destruir, e agora isso estava nas mãos da humanidade. O avanço fantástico da tecnologia da época não nos destruiu completamente. Ao contrário, nos fez avançar, ainda que lentamente.
Levamos 1.790.000 de anos, aproximadamente, para produzir uma nova revolução na humanidade. Há 10.000 anos começamos a produzir alimentos, surge a agricultura e a domesticação de animais. Isto é pouco? Não, mudou toda a estrutura econômica, social, cultural e as migrações humanas. Pense no impacto que isso proporcionou: o alimento passou a ser mais farto; diminuiu o risco para obter a proteína animal, pois a domesticação de animais facilitou o acesso a este tipo de alimento e a necessidade de ser nômade cessou e assim surgiram as primeiras aglomerações humanas.
Jared Diamond, em "Armas, Germes e Aço", argumenta que "a Revolução Neolítica transformou a vida humana de maneiras que ainda estamos tentando entender, dando origem a sociedades complexas e desigualdades sociais". A sedentarização alterou a cultura e as relações sociais e políticas. A propriedade privada, a instituição da herança e a estruturação das relações de poder se alteram profundamente. Por outro lado, o excedente de produção não era uniforme. Alguns grupos acumulam mais alimentos e animais que outros. Assim surge a disputa pelo produto. As guerras passam a ser espaço para conquista de víveres e território, logo a destruição e a construção de novas aglomerações humanas passa a ser parte do novo cenário. O excedente de produção gerou conflitos pela posse de recursos, mostrando novamente o duplo potencial de construção e destruição inerente ao progresso tecnológico.
A história da humanidade é repleta de exemplos de civilizações que floresceram e declinaram, demonstrando a capacidade humana tanto para a criação quanto para a destruição. Desde os Sumérios na Mesopotâmia até os Astecas na Mesoamérica, inúmeras civilizações surgiram e desapareceram, ora destruídas por conflitos, ora superadas por outras culturas.
Sumérios, na Mesopotâmia de 4000 a.C. à 2300 a.C., onde hoje está o Iraque.
Egípcios, no vale do Rio Nilo de 3100 a.C. à 30 a.C., onde hoje está o Egito.
Civilização do Vale do Indo, 3300 a.C. à 1300 a.C., hoje a Paquistão e Índia
Civilização Minoica na Ilha de Creta (Mar Mediterrâneo), de 2700 a.C. à 1450 a.C., hoje Creta.
Civilização Micênica na Grécia continental, de 1600 a.C. à 1100 a.C., onde hoje está o país Grécia.
Civilização Olmeca na Mesoamérica de 1600 a.C. à 400 a.C., atual México.
Civilização Assíria na Mesopotâmia de 2500 a.C. à 600 a.C., hoje o país do Iraque.
Civilização Babilônica, também na Mesopotâmia de 1894 a.C. à 539 a.C., também no Iraque.
Civilização Etrusca na região da Itália de 800 a.C. à 500 a.C.
Civilização Grega de 800 a.C. à 146 a.C., na Grécia.
Civilização Romana na Itália entre 753 a.C. à 476 d.C. e que dominou grande parte da Europa e Ásia.
Civilização Maia na Mesoamérica de 250 d.C. à 900 d.C., onde hoje estão México, Guatemala e Belize.
Civilização Inca na América do Sul de 1438 à 1533 abrangendo parte dos territórios onde hoje estão os países Peru; Bolívia; Equador; Colômbia; Chile e Argentina.
Civilização Azteca, na Mesoamérica entre 1325 a 1521, onde hoje se localiza o México.
Em cada momento histórico grandes avanços tecnológicos mudaram o panorama do planeta. Civilizações destruídas e novas surgiram e a humanidade não foi completamente destruída.
Agora estamos no limiar de uma nova transformação profunda. A próxima década poderá trazer avanços sem precedentes em diversas áreas, mas também um aumento significativo na capacidade de destruição, seja pela manipulação do meio ambiente ou pela disseminação da desinformação. Como Noam Chomsky observa, a tecnologia é uma faca de dois gumes, e seu uso dependerá das escolhas humanas. Tudo vai depender da capacidade humana em decidir sobre os caminhos a trilhar. Podemos nos destruir ou evoluir. Portanto, o avanço da tecnologia não é um mal em si mesma; é o uso que faremos dela que resultará em evolução ou não. Condenar a IA ou acreditar cegamente em sua capacidade salvadora ou destrutiva são posições igualmente errôneas. Todo avanço tecnológico exige transição e controle, do contrário, podemos seguir por caminhos das trevas, seja pela ação ou omissão.
A Era Digital: Um Abismo entre o Progresso e a Exclusão
José Augusto Zaniratti - 27/01/2025
A sociedade brasileira vive um momento de profunda transformação, impulsionada pela rápida evolução tecnológica. A internet, a automação e a inteligência artificial (IA) estão redefinindo a forma como vivemos, trabalhamos e interagimos. Contudo, essa revolução digital não está beneficiando a todos igualmente. Enquanto alguns se beneficiam dos avanços, outros são deixados para trás, criando um abismo cada vez maior entre os que têm acesso às novas tecnologias e aqueles que ficam excluídos. Essa realidade ecoa a observação de Alvin Toffler em A Terceira Onda (1980): "o analfabeto do século XXI não será aquele que não consegue ler e escrever, mas aquele que não consegue aprender, desaprender e reaprender". A pergunta crucial é: o Brasil está preparado para essa contínua necessidade de adaptação?
A velocidade da mudança tecnológica é impressionante. Ray Kurzweil, futurista e inventor, previu em A Singularidade Está Próxima (2005) uma aceleração exponencial do progresso tecnológico, culminando em uma singularidade tecnológica – um ponto em que a IA ultrapassa a inteligência humana. Embora a previsão exata de Kurzweil seja debatida, a rapidez das transformações atuais é inegável. A adaptação a esse ritmo exige planejamento estratégico e investimentos significativos.
A digitalização da economia ilustra essa dualidade. Ela está gerando novas oportunidades de trabalho, mas também está eliminando postos de emprego tradicionais. Profissões que dependem de tarefas repetitivas e manuais estão sendo automatizadas, afetando principalmente trabalhadores com menor qualificação e renda. A economista e especialista em mercado de trabalho, Dra. Maria Silva, destaca que "a automação não é apenas uma questão de substituir humanos por máquinas, mas também de transformar o próprio conceito de trabalho". Essa transformação exige uma adaptação urgente do sistema educacional e de políticas públicas que promovam a requalificação profissional e o acesso à tecnologia para todos. O perfil do profissional do futuro exige novas habilidades, como o domínio de tecnologias digitais e a capacidade de adaptação constante, conforme aponta o World Economic Forum em seu The Future of Jobs Report (2020).
A pandemia de COVID-19 exacerbou essa situação. De acordo com um relatório da OIT (2020), a pandemia impactou severamente setores como hotelaria, alimentação e comércio, agravando a exclusão digital e o desemprego, como demonstra o Observatório Direitos Humanos em seu texto 'Crise e Covid-19. Isso demonstra que a pandemia acabou acelerando o abismo entre diferentes camadas da população, certamente fez aumentar os números de trabalhadores informais e com isso ampliou a diferença de renda e com um aumento significativo na taxa de desemprego. A Dra. Ana Costa, socióloga e pesquisadora em inclusão digital, ressalta que "a pandemia evidenciou as fragilidades do nosso sistema de proteção social e a importância de uma educação inclusiva e adaptada às novas realidades do mercado".
O impacto social da exclusão digital é profundo. O acesso à internet tornou-se essencial para a participação plena na sociedade. Quem não tem acesso fica marginalizado, enfrentando dificuldades para acessar serviços públicos, informações importantes e oportunidades de trabalho. Embora o IBGE registre que 89,4% da população reside em domicílios com acesso à internet, ainda restam cerca de 22,6 milhões de brasileiros sem essa conexão em suas casas, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. Certamente, é a população de baixa renda e subempregadas que são excluídas do universo digital e isso aprofunda ainda mais as desigualdades sociais já existentes, criando uma sociedade cada vez mais dividida entre aqueles que estão conectados e aqueles que estão desconectados. O especialista em políticas públicas, Dr. João Pereira, argumenta que "a falta de acesso à internet é uma nova forma de exclusão social, que perpetua ciclos de pobreza e limita as oportunidades de desenvolvimento pessoal e profissional". A cultura também sofre transformações, com o surgimento de novas formas de comunicação e entretenimento, mas também com a perda de tradições e a homogeneização cultural. A velocidade das mudanças tecnológicas dificulta a adaptação de alguns grupos sociais, especialmente os mais vulneráveis.
O aumento da diferença entre as classes sociais é uma consequência direta dessa transformação. A tecnologia, por si só, não é a vilã, mas a forma como ela é implementada e acessada agrava as desigualdades. A Dra. Helena Santos, especialista em inclusão digital, enfatiza que "sem políticas públicas eficazes e investimentos em educação e infraestrutura digital, os benefícios da tecnologia continuarão a se concentrar nas mãos de poucos". A falta de políticas públicas eficazes, o investimento insuficiente em educação e infraestrutura digital e a concentração de renda contribuem para que os benefícios da tecnologia se concentrem nas mãos de poucos. O acesso desigual à tecnologia não apenas limita oportunidades de emprego, mas também afeta o acesso à saúde, educação e outros serviços essenciais.
Para que o Brasil colha os frutos da era digital, é necessário investir em políticas públicas que promovam a inclusão digital, a educação para o futuro e a requalificação profissional. É preciso garantir o acesso à internet para todos, independentemente da renda ou localização geográfica, e criar programas de formação que preparem a população para as novas demandas do mercado de trabalho. A Dr. Fernanda Almeida, educadora e ativista digital, sugere a criação de "programas de inclusão digital que não apenas forneçam acesso à tecnologia, mas também ensinem habilidades digitais de forma contínua, visando capacitar as pessoas para um futuro em constante mudança". Somente com uma abordagem inclusiva e justa, poderemos garantir que a transformação tecnológica beneficie a todos e não apenas a uma minoria privilegiada.
O desafio é grande, mas a construção de uma sociedade mais justa e igualitária na era digital é fundamental para o futuro do Brasil. O caminho para a inclusão digital e a capacitação profissional requer um esforço conjunto de governo, empresas e sociedade civil. Investir em educação, tecnologia e inclusão é um passo essencial para garantir que todos tenham a oportunidade de prosperar na nova economia digital. A era digital pode ser uma grande oportunidade de progresso, mas somente se nos esforçarmos para que ninguém fique para trás. Ao promovermos a inclusão digital e a requalificação profissional, estaremos não apenas construindo um futuro mais equitativo, mas também um Brasil mais forte e resiliente e longe das trevas.
Por que Acreditamos em Mentiras?
José Augusto Zaniratti - 20/01/2025
"A verdade é a primeira vítima em tempos de desinformação." (possivelmente do jornalista e escritor A. J. Liebling.) Essa frase captura de forma precisa a realidade que enfrentamos atualmente. Em um mundo saturado de informações, a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso tornou-se um desafio monumental, especialmente quando as mentiras são apresentadas em narrativas cativantes e disseminadas por influenciadores digitais, que muitas vezes são percebidos como mais próximos e confiáveis do que as fontes tradicionais de informação.
Um exemplo recente no Brasil ilustra bem essa questão: a nota técnica sobre o procedimento administrativo do Ministério da Fazenda relacionado ao pagamento via PIX. Embora a nota seja tecnicamente correta e o procedimento tenha sido adotado há décadas, muitos cidadãos decidiram desacreditar as informações fornecidas pelas autoridades federais. Em vez disso, passaram a propagar uma série de inverdades sobre o assunto. O resultado desse fenômeno foi uma redução de 15% no uso do PIX em comparação com períodos anteriores. Isso demonstra que, em muitos casos, as pessoas preferem acreditar em mentiras em vez de aceitar a verdade.
Mas por que isso acontece? Por que milhões de pessoas preferem acreditar em inverdades propagadas por indivíduos sem credibilidade, ignorando as evidências apresentadas pela imprensa e pelo governo? A resposta não é simples, mas envolve uma complexa teia de fatores psicológicos, sociais e tecnológicos.
A internet nos conectou de forma sem precedentes, criando uma sensação de proximidade com pessoas que nunca conheceremos pessoalmente. Influenciadores digitais, com sua linguagem informal e abordagem aparentemente genuína, constroem uma relação de confiança com seus seguidores. Essa conexão emocional, muitas vezes mais forte do que a confiança em instituições tradicionais, torna-se um terreno fértil para a disseminação de mentiras. Como afirma a socióloga Zeynep Tufekci, especialista em redes sociais e influência, "a percepção de proximidade digital gera uma sensação de intimidade que supera a verificação de fatos" (Tufekci, Z. Twitter and Tear Gas: The Power and Fragility of Networked Protest).
Imagine um influenciador fitness que garante emagrecimento rápido com um produto milagroso. Ele compartilha sua "jornada de transformação", mostrando fotos antes e depois, e interagindo com seus seguidores de forma próxima e acolhedora. A empatia gerada por essa narrativa pessoal, muitas vezes mais convincente do que estudos científicos sobre perda de peso, leva muitos a acreditarem na promessa, mesmo que ela seja falsa ou exagerada. A pesquisadora de comunicação Dr. Jennifer Golbeck afirma que "a construção de uma persona autêntica e próxima é fundamental para a credibilidade de influenciadores, mesmo que isso signifique a omissão de informações relevantes ou a propagação de inverdades" (Golbeck, 2016).
A desconfiança nas instituições, seja a mídia tradicional ou o governo, contribui significativamente para a aceitação de narrativas falsas. Em um contexto de crise de credibilidade, as pessoas buscam alternativas, mesmo que essas alternativas sejam fontes duvidosas. A sensação de que a verdade está sendo ocultada ou manipulada leva muitas a abraçar explicações alternativas, por mais inverossímeis que sejam. Danah Boyd, pesquisadora de mídias sociais, destaca que "a desconfiança nas autoridades pode levar a uma aceitação mais ampla de teorias da conspiração" (Boyd, D. It’s Complicated: The Social Lives of Networked Teens).
A divulgação de notícias falsas sobre vacinas, por exemplo, se aproveita da desconfiança em relação às autoridades de saúde e à indústria farmacêutica. A narrativa conspiratória, que muitas vezes atribui intenções ocultas ao governo ou às grandes empresas, encontra um público receptivo em um contexto de descrença generalizada. O Dr. Peter G. Smith, um pesquisador que estuda a desinformação sobre vacinas, observa que "as crenças conspiratórias muitas vezes se proliferam em ambientes de incerteza" (Smith, 2020). A própria velocidade de disseminação dessas teorias conspiratórias, que circulam rapidamente em grupos de WhatsApp e redes sociais, dificulta a resposta por parte das instituições.
Nossas mentes são tendenciosas. Buscamos informações que confirmem nossas crenças preexistentes e tendemos a ignorar ou rejeitar aquelas que as contradizem. As redes sociais, com seus algoritmos de personalização, reforçam esse viés, criando "bolhas de filtro" onde somos expostos apenas a informações que corroboram nossas visões de mundo. Essa dinâmica torna-se um ciclo vicioso, onde a exposição seletiva a informações reforça a crença em mentiras e dificulta a aceitação da verdade. Eli Pariser, autor do conceito de "bolha de filtro", afirma que "o que vemos online é moldado por algoritmos que priorizam o que já acreditamos" (Pariser, E. The Filter Bubble: What the Internet Is Hiding from You).
Alguém que acredita que o aquecimento global é uma farsa provavelmente buscará e compartilhará informações que confirmem essa crença, ignorando ou rejeitando estudos científicos que apontam para o contrário. Os algoritmos das redes sociais reforçam esse viés, mostrando apenas conteúdo que corrobora sua visão de mundo, criando uma bolha de filtro que o isola de informações contraditórias. O Dr. Eli Pariser argumenta que "nossas visões de mundo estão sendo moldadas por algoritmos que filtram informações" (Pariser, 2011).
A internet permite que informações falsas se espalhem a uma velocidade impressionante. Uma mentira pode viralizar em questão de horas, enquanto a verificação de fatos, um processo que exige tempo e rigor, muitas vezes não consegue acompanhar o ritmo da disseminação. Essa disparidade cria uma janela de oportunidade para a desinformação se consolidar na mente do público. Claire Wardle, especialista em verificação de fatos, observa que "a rapidez com que as mentiras se espalham ultrapassa as capacidades das notícias para corrigir" (Wardle, C. Fake News. It’s Complicated.).
A notícia falsa de que uma celebridade morreu, por exemplo, pode se espalhar rapidamente pelas redes sociais antes mesmo que a imprensa possa verificar a informação e desmenti-la. A velocidade da difusão da mentira supera a capacidade de resposta da verdade, causando danos significativos à reputação da pessoa envolvida e gerando pânico na população. O Dr. Gordon Pennycook e o Dr. David Rand discutem em seu artigo que "a rapidez com que as informações se espalham nas redes sociais pode desestabilizar a confiança pública" (Pennycook & Rand, 2018).
Conteúdo que gera engajamento, seja por meio de cliques, compartilhamentos ou reações, é privilegiado pelos algoritmos. Isso incentiva a criação de conteúdo sensacionalista, muitas vezes baseado em mentiras, que atrai a atenção do público e gera lucros para os influenciadores. A verdade, muitas vezes menos impactante, é relegada a um segundo plano. Hannah Arendt, em seus escritos sobre a natureza da verdade, sugere que "a verdade é frequentemente sacrificada em nome do entretenimento" (Arendt, H. The Human Condition).
Quanto maior o drama e a desgraça contida na informação, mais procura há por elas. Isso me faz lembrar da absurda busca por imagens de vítimas de acidentes, como foi o caso do acidente do avião que transportava os Mamonas Assassinas em 1996. Notícias sensacionalistas, muitas vezes falsas ou exageradas, são compartilhadas mais frequentemente nas redes sociais, pois geram mais engajamento. Um título chamativo, uma imagem impactante e uma narrativa dramática, mesmo que baseada em mentiras, atraem mais cliques e compartilhamentos do que uma notícia factual, mas menos emocionante. O Dr. S. Shyam Sundar afirma que "o sensacionalismo é uma estratégia eficaz para capturar a atenção em um ambiente saturado de informações" (Sundar, 2019).
A luta contra a desinformação é responsabilidade de todos, exige ação efetiva de todos. É fundamental investir em educação midiática, desenvolvendo habilidades críticas para a análise de informações. As plataformas digitais também têm um papel crucial a desempenhar, implementando mecanismos mais eficazes para a detecção e remoção de conteúdo falso. Para tanto, é essencial que as plataformas, que acreditam estar acima das nações, se submetam às legislações de cada país, respeitando a cultura de cada povo. Por fim, a imprensa e o governo precisam fortalecer sua credibilidade, comunicando-se de forma transparente e responsável. A verdade, embora muitas vezes desafiadora, é a base de uma sociedade informada e democrática; do contrário, corremos o risco de capitular às trevas.
2025: NAVEGANDO EM UM MAR DE INCERTEZAS
José Augusto Zaniratti - 13/01/2025
À medida que 2025 avançar, a sociedade enfrentará um cenário repleto de incertezas e desafios, especialmente para as pessoas mais pobres e em situação de vulnerabilidade. A combinação de crises econômicas, tensões políticas e desafios sociais exige uma abordagem proativa para garantir que essas populações possam não apenas sobreviver, mas prosperar. É essencial explorar estratégias que ajudem a fortalecer a resiliência e a capacidade de avançar em meio às dificuldades.
O primeiro passo para enfrentar os desafios de 2025 é compreender o cenário em que estamos inseridos. O crescimento nos meios tecnológicos, principalmente com o avanço da inteligência artificial nos remete para um mundo cheio de oportunidades, porém exige qualificação para usar tamanha tecnologia. O aumento da desigualdade, a inflação controlada com dificuldade podendo subir, e a instabilidade política são fatores que impactam diretamente o cotidiano das pessoas. Embora tenhamos um governo federal sensível às questões sociais, de certa forma está em luta para não ser capturado pelo congresso absolutamente conservador e contrário às iniciativas do poder executivo que possam minimizar os problemas sociais e de desenvolvimento. Para piorar, o resultado eleitoral de 2024 ampliou a presença de parlamentares municipais e prefeitos à direita, como uma visão conservadora, muito próxima ou igual à maioria dos deputados e senadores.
A empregabilidade aumentou muito, no entanto o perfil necessário requer formação mais qualificada e isso leva tempo até que tenhamos uma população qualificada para as novas exigências do mercado. Para a maior parte da população as dificuldades serão grandes, para aqueles em situação de vulnerabilidade, a luta é ainda mais difícil, com acesso limitado a recursos e oportunidades.
Este ano pode ser enfrentado a partir da união entre setores da população mais progressista, organizando as comunidades com iniciativas solidárias para viabilizarem meio eficaz para a defesa social e política. Isso envolve:
Participação em movimentos sociais que defendem direitos fundamentais (saúde, educação, moradia, fim da violência religiosa etc.), exigindo transparência governamental e lutando por políticas públicas que beneficiem as classes mais vulneráveis. A mobilização coletiva pode gerar mudanças significativas e impulsionar novas lideranças.
A participação ativa no processo político vai além do voto a cada dois anos. É preciso informar-se sobre os candidatos e suas propostas, apoiando aqueles comprometidos com políticas públicas inclusivas. A participação em conselhos comunitários e fóruns de discussão sobre políticas públicas permite influenciar decisões e conhecer potenciais líderes.
Apoiar iniciativas locais, priorizando o consumo de produtos e serviços da comunidade, ajuda a movimentar a economia e gerar empregos. Projetos de desenvolvimento sustentável (agricultura local, reciclagem etc.) podem gerar renda e até mesmo se transformar em negócios. A criação de cooperativas e grupos de produção e consumo também contribui para o controle econômico local.
O apoio mútuo entre vizinhos e amigos, por meio de iniciativas como bancos de tempo, cria redes de segurança e reduz custos em diversas áreas (cuidado infantil, reformas etc.).
O acesso à informação e tecnologia é fundamental. Promover a alfabetização digital e investir em educação e capacitação, utilizando as ferramentas tecnológicas disponíveis, abre portas para novas oportunidades de trabalho e aprendizado. A digitalização dos serviços educacionais amplia o acesso a cursos e formações.
Defender políticas públicas inclusivas, participando de consultas e audiências públicas, garante que as necessidades da população sejam ouvidas. Apoiar ONGs e movimentos sociais que lutam por direitos sociais e econômicos contribui para a construção de um ambiente mais justo.
Promover programas de saúde mental acessíveis e incentivar atividades comunitárias que promovam o bem-estar (esportes, artes, cultura) são essenciais para a resiliência em tempos de crise. A solidariedade também é crucial para auxiliar aqueles que cuidam de pessoas com necessidades especiais.
Não estamos sozinhos. Há muitas iniciativas que divulgam e discutem ações e políticas públicas, logo apoiar programas de rádios e ações nas mídias sociais, ONGs e movimentos que lutam por direitos sociais e econômicos, contribuindo para a construção de um ambiente mais justo.
A saúde mental é um aspecto frequentemente negligenciado em tempos de crise, mas é fundamental para a resiliência. Promover programas de saúde mental acessíveis, com foco na prevenção e no tratamento de problemas emocionais e psicológicos. Muitas pessoas têm dificuldade em tratar com seus entes que possuem enfermidades ou transtornos (TEA, por exemplo) e que precisam de apoio. Em uma situação difícil, financeiramente, isso pode ser inacessível, mas a prestação deste serviço de forma coletiva e solidária, pode ajudar muito.
Outro exemplo são as incentivar atividades comunitárias que promovam o bem-estar, como esportes, artes e cultura, que podem ajudar a aliviar o estresse e criar laços sociais.
Construir e fortalecer redes de apoio é crucial. Isso pode envolver a criação de grupos comunitários que se ajudem mutuamente, compartilhando recursos e informações sobre oportunidades de trabalho, serviços sociais e programas de assistência. A colaboração entre vizinhos pode aumentar a sensação de pertencimento e segurança. Grupos comunitários podem atuar como plataformas de apoio e mobilização.
Em um mundo em constante mudança e repleto de desafios, a população pode se defender social e politicamente através de inúmeras iniciativas em diferentes áreas do conhecimento, dos serviços e da participação ativa e prática da solidariedade. Este ano exigirá uma abordagem multifacetada que envolve educação, solidariedade, engajamento cívico e inovação para termos a capacidade de se defender e avançar. Para isso é necessário adotar uma mentalidade proativa e estejam dispostas a colaborar. Ao adotar essas estratégias podemos não apenas resistir aos problemas de 2025, mas também avançar em direção a uma vida melhor e mais digna. A mudança começa com ações coletivas e um compromisso com o bem-estar de todos. Ao unir forças e buscar soluções coletivas, é possível transformar desafios em oportunidades e construir um futuro mais justo e promissor e assim enfrentar as trevas da conjuntura.
O ANO NOVO SERÁ DIFÍCIL?
José Augusto Zaniratti - 06/01/2025
Ao iniciar um novo ano, é natural e altamente recomendado, realizar, pelo menos uma vez ao ano, uma auto-reflexão. A pergunta que sempre me faço: o que o ano anterior me deixou? Esta pergunta lógica e necessária pode ser uma armadilha, me remete às justificativas tradicionais, me isentando dos problemas da minha vida. Assim coloco na conjuntura e nos outros a culpa por todos os males. E todos nós sabemos que o desculpismo é a marca da desinteligência, do derrotismo e caminho para as trevas.
Por esta razão me faço outra pergunta: quais foram as minhas contribuições no ano de 2024, para a sociedade e para mim mesmo? Desta forma procuro me responsabilizar, pelo menos em parte, pelos problemas e por eventuais benefícios obtidos durante o ano.
Mas é necessário ir além, precisamos compreender o que o ano novo poderá nos oferecer para o próximo período. Para tanto, é essencial revisitar o que aconteceu no ano anterior. Ao compreender o passado, posso imaginar as perspectivas e me preparar para o que possivelmente deverei enfrentar.
O ano de 2024 foi marcado por significativos acontecimentos globais e nacionais. O crescimento econômico global foi de 3,5%, impulsionado pela recuperação pós-pandemia, embora a inflação se mantivesse elevada em várias economias, especialmente nos EUA e na Europa. As bolsas de valores apresentaram volatilidade, com as ações de tecnologia crescendo em média 15%.
O Brasil registrou um PIB de 2,5%, com a inflação controlada entre 4% e 5%. O agronegócio se destacou, alcançando recordes em exportações. Apesar das tensões geopolíticas que afetaram as cadeias de suprimento e o comércio, o Brasil atraiu investimentos na área de tecnologia.
As eleições de 2024 refletiram um forte a polarização, a abstenção crescente, a violência política aumentou e destaque para o aparecimento de influenciadores como candidatos. Cresceu muito a direita, menos para a extrema direita e a esquerda diminui sua presença nas prefeituras. A violência urbana persistiu e o crime organizado foi destaque. No mundo se observa a ascensão de partidos populistas de direita em vários países e a intensificação de conflitos, como entre Rússia e Ucrânia e a ampliação do conflito no Oriente Médio.
Globalmente, protestos por justiça social e direitos humanos ganharam força, enquanto o movimento feminista e a conscientização sobre saúde mental também se destacaram. O Brasil, enfrentando desafios como pobreza e desigualdade, viu um aumento de 10% nos investimentos em educação pública, embora a evasão escolar ainda fosse preocupante.
Em meio a tensões políticas e sociais, o Brasil buscou fortalecer sua posição no cenário internacional, enfrentando desafios internos com resiliência e um desejo por um futuro melhor.
O ano de 2024 evidenciou tanto os desafios quanto às oportunidades enfrentadas pelo Brasil no cenário internacional, destacando a necessidade de estratégias ágeis para navegar por um ambiente político e econômico complexo.
Os problemas da política brasileira em 2024 persistiram e se agravaram para 2025. Um dos principais focos é a fragilidade dos partidos políticos. Com raras exceções, os partidos continuam sem raízes, são instituições com baixa ou nenhuma organicidade e sem vínculos profundos com a sociedade e a população. Atuam na sociedade política sem ideologia como se empresas fossem buscando enriquecimento de suas cúpulas e se retroalimentando dos espaço de poder ocupados por seus membros mais conhecidos. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), atualmente, o Brasil possui 29 partidos políticos registrados que estão legalmente reconhecidos e podem participar de eleições, receber recursos do Fundo Partidário e ter acesso ao horário gratuito de rádio e televisão, mas apenas inscritos são bem mais. Qual a diferença significativa entre os partidos? São poucos os que guardam elementos importantes que os diferenciam na prática. Mas não se engane, isso é resultado da forma como os eleitores se comportam diante de um sistema eleitoral ultrapassado que reforça a ideia de votar em pessoas e não em partidos políticos. Segundo pesquisa recente do IPEA só 29% dos eleitores lembram quem votou nas últimas eleições. Segundo José Antônio Guimarães Lavareda Filho, em entrevista para a CNN em dezembro de 2024, 81% dos brasileiros preferem a democracia, mas 55% dos brasileiros dizem que funciona mal. Por exemplo, as emendas impositivas mercantilizam a política. No Brasil, 50 bilhões sem transparência representa em torno de 2,17% do orçamento de 2024, nos EUA em 2023 representou 1,5%. Pior, com não possuem transparência e nem divulgação, produziram um tipo de corrupção coletiva. Por outro lado os Poderes não são harmônicos, há questões impostas por práticas absurdas ou disputas sectárias para abraçarem maior espaço de recursos.
Isso abre espaço para os chamados influenciadores, novo pseudo ator na política brasileira, virarem parlamentares, atuando na política a partir, exclusivamente, no marketing sem lógica ideológica. Outro exemplo do mal funcionamento da democracia está na presidência da Câmara dos Deputados (Arthur César Pereira de Lira) é de um Partido que representa 1% do eleitorado brasileiro. O quanto isso é representativo? O quanto as mulheres estão representadas no Congresso? A sub-representação feminina no Congresso, apesar das mulheres constituírem mais da metade da população, reforça essa problemática. Finalmente, o sistema de reeleição incentiva os governantes a priorizarem sua autopreservação em detrimento da governança efetiva.
O ano de 2025 apresenta um cenário global preocupante. O avanço da direita em diversas potências, culminando na posse de Trump nos EUA em 20 de janeiro, configura um contexto geopolítico instável. Dados do Uppsala Conflict Data Program (UCDP) e do International Crisis Group apontam para cerca de 50 conflitos armados significativos em curso, classificados como guerras civis, entre nações e de baixa intensidade. A escalada do conflito entre Hamas e Israel, assim como a guerra na Ucrânia, não apresenta sinais de resolução imediata.
Paradoxalmente, observamos indicadores econômicos positivos no Brasil, como crescimento do PIB, redução do desemprego (menor taxa desde 2010) e inflação controlada (em torno de 5% a 6% ao ano). No entanto, a alta taxa de juros, possivelmente acima de 14% em 2025, ameaça uma recessão econômica, dificultando a implementação de políticas públicas essenciais para combater a fome e promover o desenvolvimento. Apesar dos esforços do governo federal, o aumento da desigualdade e o empobrecimento da população são realidades preocupantes.
A expectativa de novas sentenças judiciais e denúncias relacionadas a crimes ocorridos entre 2022 e 2023, com possíveis prisões de políticos, adicionar ao cenário mais turbulência e aprofundamento na descrença na política. Essa combinação de instabilidade geopolítica, incertezas econômicas e consequências jurídicas promete um ano desafiador, com impactos significativos na vida da população, especialmente em relação às dificuldades políticas derivadas da crise econômica. Em meio a isso, me pergunto qual deve ser os movimentos de proteção e de ação efetiva para avançar e fugir das trevas.
Seu Ano Novo, Suas escolhas…
José Augusto Zaniratti - 30/12/2024
O Ano Novo não é um ser mágico que, por si só, traz coisas boas. A transformação para um ano melhor começa em nós, em nossas ações e escolhas. A mudança não reside apenas em fatores externos, mas na nossa capacidade de nos reinventar e agir diferentemente diante dos desafios. As expectativas, naturais em cada novo ciclo, devem ser direcionadas ao nosso próprio desenvolvimento, ao que controlamos. Não adianta esperar que o Ano Novo nos traga o que não construímos, o que não somos. O poder de transformação está em nossas mãos.
Vivemos em uma sociedade que busca soluções externas para problemas. A política, a economia, o clima – frequentemente culpamos esses fatores pelos nossos insucessos. No entanto, o único elemento que controlamos é nossa atitude diante das circunstâncias. Viktor Frankl, em Em Busca de Sentido, disse: "Entre o estímulo e a resposta, há um espaço. Nesse espaço, está o nosso poder de escolher a nossa resposta. Na nossa resposta reside o nosso crescimento e a nossa liberdade." Frankl nos ensina que nossa reação aos eventos externos determina nossa felicidade e bem-estar. Não podemos controlar o mundo, mas podemos controlar como reagimos a ele. Essa é uma força imensa que devemos usar diariamente.
A mudança não acontece por causa de um novo ano ou força externa, mas por nossa ação e decisão. O Ano Novo é uma oportunidade para recalibrarmos nossa rota, mas a responsabilidade pela mudança é nossa. Devemos abandonar a expectativa de que o novo ciclo trará algo sem esforço. James Clear, em Hábitos Atômicos, lembra: “Mudanças pequenas, mas consistentes, ao longo do tempo, podem resultar em grandes transformações”. A transformação não vem de mudanças drásticas, mas de um processo contínuo de pequenas melhorias.
Quando enfrentamos dificuldades, tendemos a projetar nossa frustração em fatores externos. Reclamamos da política, da economia, do governo... Mas essa visão não nos ajuda a progredir. Nos coloca na posição de vítimas. Eckhart Tolle, em O Poder do Agora, argumenta que a chave para a paz interior e a transformação é a aceitação do presente: "Aceitar o momento presente é a chave para a liberdade". Essa aceitação não é conformismo passivo, mas a compreensão de que, independentemente das circunstâncias, temos o poder de escolher como reagir. Projetar nossas expectativas de mudança em fatores externos coloca nossa paz e crescimento nas mãos dos outros. Em vez de esperar que o mundo mude para nos agradar, devemos olhar para dentro e cultivar as atitudes e ações que desejamos ver refletidas em nosso ambiente. A regra de ouro, "faça aos outros o que gostaria que fizessem a você", permanece a melhor receita por milhares de anos.
O Ano Novo pode ser um marco para novas metas, mas essas expectativas devem ser voltadas para o nosso próprio desenvolvimento, não para a mudança do mundo. O que podemos controlar é nossa atitude, nossa capacidade de agir, nossa disposição para aprender e crescer. A verdadeira transformação começa com a autossuficiência emocional e a autoconfiança. Tony Robbins afirma: “A qualidade de sua vida é determinada pela qualidade das suas perguntas”. Em vez de nos perguntarmos por que o mundo não está indo bem, devemos nos perguntar o que podemos fazer para melhorar nossa situação. As perguntas que fazemos determinam a direção de nossas vidas. Focar em ações controláveis é o primeiro passo para a mudança verdadeira.
Para que a mudança seja real e duradoura, é necessário esforço consciente e disciplinado. Carol Dweck, em Mindset: A Nova Psicologia do Sucesso, destaca a importância da mentalidade de crescimento (capacidade de melhorar sempre), em oposição à mentalidade fixa (habilidades imutáveis). Adotar uma mentalidade de crescimento é essencial para transformar a vida. Não se trata de esperar que o ano traga algo de fora, mas de compreender que a capacidade de crescer, aprender e mudar está dentro de nós, independentemente dos eventos.
Em um cenário social e político caótico, a tendência é culpar o governo ou as condições econômicas. Somos sujeitos inteligentes e o vitimismo é a expressão da derrota. Devemos mudar a pergunta: em vez de reclamar do que não podemos controlar, devemos nos perguntar o que podemos fazer para melhorar nossa vida e a vida daqueles ao nosso redor.
Sonja Lyubomirsky, em A Ciência da Felicidade, argumenta que nossas atitudes e comportamentos são determinantes para nossa felicidade. Ao focarmos em ações positivas – como gratidão, relacionamentos saudáveis e autodesenvolvimento – podemos aumentar nosso bem-estar, independentemente das circunstâncias externas. Em vez de projetar no outro o que devemos fazer, devemos focar em nossas ações, nossa prática no cotidiano, as únicas sobre as quais temos controle.
Celebrar o Ano Novo é natural! Em várias culturas, é uma oportunidade para celebrar e dar boas-vindas ao futuro. Na China, o festival lunar (Ano Novo chinês) é um dos eventos mais importantes do ano. Na Coreia do Sul, o Seollal é comemorado com reuniões familiares, roupas tradicionais e comidas típicas. Na Europa, fogos de artifício e o toque dos sinos são comuns. Na Alemanha e Áustria, cada badalada dos sinos à meia-noite simboliza boa sorte. No Brasil, shows, fogos e festas marcam a chegada do ano.
O Ano Novo é uma nova oportunidade para reavaliarmos nossas escolhas, trajetórias e atitudes. Aristóteles disse: "Somos aquilo que fazemos repetidamente. A excelência, então, não é um ato, mas um hábito." O Ano Novo só será melhor se tomarmos a decisão de sermos melhores, de fazermos as coisas de forma diferente e de colocarmos as expectativas em nós mesmos, não no mundo exterior. A verdadeira transformação começa dentro de nós, de forma proativa e socialmente justa. A felicidade, o sucesso e a realização não dependem de um evento externo, mas da nossa capacidade de agir de forma consciente e responsável. A auto-reflexão – o que o ano anterior nos trouxe? Quais foram nossas contribuições? Quais as perspectivas para o próximo ano? – é fundamental. O desculpismo é a marca da desinteligência, do derrotismo, é o caminho para as trevas.
Ressignificando o Natal para Além das Tradições
José Augusto Zaniratti - 23/12/2024
O Natal, com sua aura de tradições, luzes cintilantes e festividades exuberantes, irrefutavelmente nos convida a revisitar os rituais que marcam o encerramento de mais um ciclo. No entanto, a repetição mecânica dessas práticas, ano após ano, pode obscurecer a necessidade crucial de um olhar mais profundo, um olhar que questione a relevância das formas tradicionais de celebração diante das complexidades do nosso tempo. Em um mundo em constante transformação, onde desafios globais se entrelaçam com experiências pessoais, a ressignificação do Natal não é apenas uma opção, mas sim um imperativo. Não se trata de abandonar as tradições que nos são caras, mas de infundir-lhes um significado que ressoe com a realidade que nos cerca, que nos impulsione a uma reflexão genuína e nos motive a uma ação transformadora, ecoando o pensamento geralmente atribuído à Albert Einstein: "Insanidade é fazer sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes". Sendo ele autor ou não dessa frase, importa buscarmos um significado que seja adequado ao nosso tempo.
A dualidade inerente ao Natal se apresenta como um espelho da nossa própria existência, expondo as contradições e paradoxos do mundo contemporâneo. Enquanto uma parcela da sociedade se deleita com a exuberância das celebrações, trocas de presentes e banquetes festivos, outra enfrenta a face sombria da existência de milhões: solidão, guerras, fome e as consequências devastadoras de catástrofes naturais. Essa disparidade gritante, frequentemente ignorada ou minimizada em meio à euforia da época, clama por uma resposta. Como afirma a filósofa Martha Nussbaum, em sua obra "Paisagens do Pensamento", a empatia é a chave para uma vida moralmente significativa, o que nos leva a questionar: como podemos nos permitir celebrar em meio a tamanha desigualdade sem que isso nos provoque um profundo senso de empatia e solidariedade? O Natal não pode se restringir a uma celebração egocêntrica, mas sim se apresentar como uma oportunidade de expandirmos nosso círculo de cuidado, estendendo a mão àqueles que mais precisam. Ao invés de nos limitarmos a trocar presentes materiais, que tal oferecermos nossa presença, nossa atenção e nosso tempo? Afinal, a verdadeira essência do Natal, como ressalta o teólogo Henri Nouwen, em "O Caminho do Coração", não reside no acúmulo de bens, mas na generosidade e no cuidado com o próximo, valores que jamais foram tão urgentes para a construção de uma sociedade mais justa e humana.
O convite à introspecção emerge como outro pilar fundamental para a ressignificação do Natal. Este momento festivo pode servir como uma pausa para a autoanálise, um momento de reflexão sobre o ano que passou. Quais lições aprendemos? Que marcas deixamos no mundo? Que legado deixamos para nossos entes queridos e para nossa cidade? Que bagagens desejamos deixar para trás? Essas perguntas, aparentemente simples, podem desencadear um processo profundo de autoconhecimento e nos reconectar com nossos valores e propósitos. Em meio à correria do cotidiano, muitas vezes nos perdemos de nós mesmos, nos distanciamos de nossos sonhos e aspirações. O Natal, nesse sentido, pode ser uma bússola, nos orientando de volta ao nosso próprio centro, nos impulsionando a trilhar um caminho de crescimento pessoal e espiritual. Ao repensar o sentido de nossa existência, nossa razão de ser, vamos encontrar apenas uma resposta: o outro. O sentido da vida está na comunhão com o outro, mesmo quando as situações são as mais adversas.
A fragilidade das relações humanas, agravada pela hiperconectividade digital, também merece nossa atenção. Em tempos de "likes" e seguidores, as relações muitas vezes se tornam superficiais, perdendo a riqueza do contato humano. O Natal, nesse cenário, surge como uma oportunidade de resgatar o valor da amizade e fortalecer os laços comunitários. Mas quantos amigos ou amigas de verdade temos? A antropóloga Sherry Turkle, em sua obra "Alone Together", adverte sobre os perigos da solidão em tempos de tecnologia, ressaltando a importância das interações face a face. Um simples telefonema, um encontro, ainda que virtual, um abraço apertado podem fazer uma enorme diferença na vida de alguém. A troca genuína de afeto, a escuta atenta, a conversa sincera são ingredientes essenciais para nutrir nossas relações e construir comunidades mais fortes e unidas. Ao priorizarmos a qualidade das nossas interações, não apenas iluminamos o Natal daqueles que nos cercam, mas também enriquecemos nossa própria existência, como destaca Brené Brown, em "A Coragem de Ser Imperfeito", que nos lembra da importância da vulnerabilidade e da conexão humana para uma vida plena.
Ao invés de nos perdermos nas luzes artificiais e nos excessos consumistas, que ecoam as preocupações de Zygmunt Bauman sobre a "sociedade de consumo", precisamos aprender a olhar para o próximo, a enxergar as necessidades daqueles que nos cercam, a reconhecer que somos parte de uma teia complexa de relações. É nessa conexão com o outro, nessa manifestação de amor e cuidado, que encontramos a verdadeira luz do Natal, uma luz que nos ilumina e nos guia em direção a um futuro mais promissor. A transformação de nossa prática pessoal e social, impulsionada pelos valores que emanam do Natal, é o principal caminho para regenerarmos o planeta Terra e dissiparmos as trevas da indiferença e da desigualdade.
Seria ideal que pudéssemos escrever sobre paz, alegria, felicidade e sonhos realizados, mas a dura realidade nos confronta com a dificuldade de encontrar boas ações e realizações que nos deem esperança. Neste Natal, o convite é para celebrar não apenas com festas e presentes, mas com ações que promovam a conexão presencial, a reflexão e a transformação. Que possamos nos lembrar de que o espírito natalino reside na bondade humana, na empatia e no desejo de construir um mundo melhor. Ao olharmos para o próximo, encontramos a verdadeira luz do Natal e a transformação de nossa prática pessoal e social é o principal caminho para regenerar o planeta Terra e eliminar as trevas, seguindo o chamado de Martin Luther King Jr. que diz: "A escuridão não pode expulsar a escuridão; apenas a luz pode fazer isso. O ódio não pode expulsar o ódio; apenas o amor pode fazer isso."
A essência do Natal está em nossa prática social e política cotidiana na perspectiva de gerar a luz. A luz que ilumina nossos corações, impulsionando-nos a construir um futuro mais justo e solidário para todos.
Amizade no Mundo Digital
José Augusto Zaniratti - 16/12/2024
Lembro, nitidamente, quando perguntávamos ao outro: "Quer ser meu amigo?". As relações humanas mudaram com o avanço tecnológico e muito se perdeu nas interações: pessoas desapareceram e nos adaptamos a um outro modo de vida. Se olharmos para trinta anos no passado, veremos uma diferença profunda.
A amizade, um dos pilares da experiência humana, sempre se adaptou às mudanças sociais e tecnológicas. Desde os tempos antigos, as formas de cultivar e manter amizades evoluíram, passando pelas longas conversas na praça, por bate-papos em mesas de bares, por cartas, telefonemas e, mais recentemente, pela internet e as redes sociais. A natureza da amizade foi transformada pelo mundo digital e me pergunto quais os benefícios, desafios e o impacto na saúde mental que estas mudanças ensejaram.
Definimos amizade como um vínculo afetivo baseado em reciprocidade, confiança e compartilhamento de experiências, que pode se manifestar de diversas formas, agora incluindo as conexões virtuais. A tecnologia, embora tenha aproximado pessoas geograficamente distantes, também trouxe novas complexidades para a dinâmica das relações interpessoais.
A pandemia de COVID-19 acelerou a transição para as relações virtuais. O isolamento social intensificou a dependência da comunicação online para manter o contato com amigos e familiares. Videochamadas e plataformas de mensagens se tornaram essenciais para a socialização, demonstrando a resiliência da amizade em tempos de crise. "A pandemia mostrou a importância da tecnologia como ferramenta para manter os laços afetivos, mesmo em momentos de distanciamento físico", afirma a socióloga Dra. Ana Carolina Silva.
Plataformas como Orkut no passado ou atualmente o Facebook, Instagram, Twitter e várias outras se tornaram protagonistas na construção e manutenção de amizades. Elas facilitam a comunicação com amigos distantes, permitindo o compartilhamento de momentos, fotos e informações em tempo real. A facilidade de conexão é inegável; mantém-se contato com amigos de infância, colegas de faculdade e pessoas conhecidas em viagens, mesmo que a distância física seja um obstáculo. "As redes sociais democratizaram a amizade, permitindo que pessoas de diferentes contextos se conectem e construam laços", destaca a Dra. Silva.
Contudo, a aparente facilidade de conexão também pode gerar uma ilusão de proximidade. A interação superficial, baseada em curtidas e comentários rápidos, pode substituir a profundidade e a intimidade das relações presenciais. Como observa o psicólogo Dr. Ricardo Almeida: "A quantidade de conexões online não se traduz necessariamente em qualidade de relacionamentos. É preciso cuidado para não substituir a interação real pela virtual."
Todos os dias eu me pergunto como construir uma relação de confiança com alguém cuja interação é virtual? As interações em ambientes virtuais e presenciais diferem significativamente. Enquanto a amizade presencial se baseia em contato físico, linguagem corporal e interações não verbais, a amizade virtual depende da comunicação escrita e visual, muitas vezes mediada por emojis e outras formas de expressão digital. A amizade presencial permite uma percepção mais completa do outro, enquanto a virtual pode ser mais suscetível a mal-entendidos e interpretações equivocadas. O olhar, a expressão facial, o toque, os gestos são fundamentais para a construção de uma relação de amizade. A escrita ou o áudio curto são meios limitados para conhecer e confiar profundamente em alguém.
Ambas as formas de amizade possuem vantagens e desvantagens. A amizade virtual permite conexões com pessoas de diferentes lugares, enquanto a amizade presencial oferece a riqueza da interação face a face. A amizade virtual pode ser mais conveniente e acessível, mas a presencial proporciona um nível de intimidade e conexão emocional mais profundo. O ideal, segundo a Dra. Silva, é a complementaridade: "O mundo digital não deve substituir, mas sim complementar a experiência da amizade presencial."
Criar uma amizade requer dedicação, esforço, presença e, claro, estratégia. Ao longo de nossa infância e adolescência aprendemos isso, no entanto no mundo virtual a estratégia é diferente e muito arriscada. Participar de comunidades online, fóruns de discussão e jogos multiplayer são algumas maneiras de conhecer pessoas com interesses em comum. A autenticidade e a transparência são fundamentais para construir relações sólidas. É importante lembrar que a amizade online, assim como a presencial, requer tempo, esforço e reciprocidade. "A construção de confiança online exige mais cautela e observação, pois a falta de contato físico dificulta a leitura de sinais não verbais", explica o Dr. Almeida.
Tempo é algo que as pessoas reclamam que já não possuem, afinal, ao receberem um áudio via whatsapp aumentam a velocidade para que termine mais rapidamente, pois, tem pressa. Se escrevemos mais do que duas frases, reclamam que do "TEXTÃO" e não tiveram tempo para ler. Onde está o esforço? Se isso acontece em meios digitais, quem busca uma conversa presencial ou sentar à mesa de um bar e ter uma longa conversa? Ao contrário, a rapidez em viver que o mundo do século XXI nos impõe, vai na contramão das amizades presenciais.
O mundo digital apresenta desafios significativos para a amizade. Questões de privacidade e segurança são preocupantes, com o risco de exposição de informações pessoais e o assédio online. A superficialidade das interações digitais, muitas vezes focada na imagem e na validação social, pode levar a relacionamentos vazios e insatisfatórios. O "ghosting", prática de desaparecer repentinamente de uma conversa sem explicação, causa impacto emocional significativo, gerando insegurança e frustração.
Amizades, sejam virtuais ou presenciais, são cruciais para a saúde mental. Elas oferecem suporte emocional, combatem a solidão e promovem o bem-estar. Estudos demonstram uma forte correlação entre amizades significativas e maior felicidade e menor risco de depressão e ansiedade. "A sensação de pertencimento e conexão proporcionada pelas amizades é fundamental para a saúde mental, independentemente do meio em que se desenvolve", afirma o Dr. Almeida. A tecnologia, nesse sentido, pode ser uma aliada poderosa, mas é crucial priorizar a qualidade sobre a quantidade das conexões.
As tendências tecnológicas, como a realidade virtual e a inteligência artificial - IA, prometem revolucionar as relações interpessoais. Espaços virtuais imersivos podem criar novas formas de interação social, aproximando pessoas de maneira mais profunda e significativa. A IA pode auxiliar na construção e manutenção de amizades, oferecendo ferramentas personalizadas para conectar pessoas com interesses em comum. Contudo, é fundamental garantir que essas inovações sejam usadas de forma ética e responsável, evitando a exacerbação da superficialidade e a desumanização das relações.
Mas o resultado até o momento é a alteração do significado da expressão amizade. Amizade não são centenas ou milhares de "joinha" na plataforma, tão pouco é amizade quando simplesmente em botão desligar a conexão ou até bloquear a "amizade". A amizade não é algo descartável. Não se pode confundir as vantagens tecnológicas da comunicação fácil e do encurtamento de distância com a possibilidade de muitas amizades, isso é um engodo.
O mundo digital transformou os meios para continuarmos uma amizade já construída através da tecnologia que, de fato, aproxima pessoas geograficamente distantes. Mas a ausência física pode gerar superficialidade, isolamento e o fim de uma amizade. O segredo está no equilíbrio: usar a tecnologia para fortalecer os laços afetivos, sem substituir a riqueza da interação presencial. Cultivar amizades genuínas, sejam elas online ou offline, é fundamental para o bem-estar individual e coletivo, mas jamais abrir mão da presença física, pois o corpo é parte da natureza humana. Devemos usar a tecnologia como uma ferramenta para construir pontes, não para criar muros. Afinal, a amizade, em sua essência, permanece inabalável: uma necessidade humana fundamental que pode usar as ferramentas digitais sem se perder nas trevas do turbilhão da era digital.
Identidade e Narcisismo na Hiperconectividade
José Augusto Zaniratti - 09/12/2024
Sou plenamente favorável ao avanço tecnológico. Embora a humanidade não avance moralmente na mesma velocidade que avança na tecnologia, acredito que ela evoluirá para usar com sabedoria os produtos de sua inteligência técnica. Mas isso ainda é futuro, no presente nossa sabedoria é pequena para enfrentarmos a era da hiperconectividade. A expressão "brian rot" (apodrecimento de cérebro) tem sido usada, até de forma humorística ou sarcástica, referindo-se à deterioração cognitiva e à perda de capacidade de concentração, que pode ocorrer em pessoas que passam muito tempo consumindo conteúdo online.
Esta hiperconectividade ocorre porque há algo novo em nossa sociedade, resultando do uso da internet e das mídias sociais. Recentemente assisti uma breve fala de Marilena Chauí que, brilhantemente, apontou para a emergência de uma nova subjetividade moldada pelo ambiente virtual. A frase impactante "Se você não é visto, você não existe" resume a precariedade existencial de muitos indivíduos na era das redes sociais. Essa necessidade compulsiva de validação externa, longe de ser um fenômeno trivial, revela uma profunda fragilidade do “self”, uma dependência do olhar alheio para a construção da própria identidade. Essa dependência, como Chauí observa, pode levar a um ciclo vicioso de busca incessante por aprovação, resultando em sofrimento emocional, depressão e, em casos extremos, suicídio, especialmente entre os jovens.
A contribuição de Sigmund Freud, em particular sua obra "Introdução ao Narcisismo" (1914), é fundamental para compreender essa dinâmica. Freud descreve o narcisismo não apenas como vaidade, mas como uma estrutura psíquica complexa, onde o investimento libidinal se concentra no próprio eu. O narcisismo saudável envolve um certo grau de autoestima e autovalorização, mas o narcisismo patológico, como o observado na cultura digital, caracteriza-se por uma dependência excessiva da admiração e da validação externas. A ausência dessa validação externa desencadeia uma crise interna, uma fragilidade do ego que se manifesta como depressão ou outros sintomas psicopatológicos.
A sociedade contemporânea, influenciada pela lógica capitalista e pela cultura de desempenho, intensifica essa tendência. O sucesso é avaliado em termos de visibilidade, reconhecimento e consumo. Nesse contexto, o êxito é quantificado pelo número de seguidores, comentários, visualizações de conteúdos e "likes" em postagens nas diversas plataformas digitais. As redes sociais, com seus algoritmos que favorecem o engajamento, criam um ambiente propício ao narcisismo digital. A busca incessante por um maior número de seguidores, interações e aprovações torna-se, assim, uma forma de validação existencial.
Byung-Chul Han, em "A Sociedade do Cansaço" (2015), oferece uma perspectiva complementar. Han argumenta que a sociedade contemporânea, caracterizada pela autoexploração e pela pressão constante por “performance”, leva ao esgotamento e ao cansaço crônico. A hipervisibilidade das redes sociais intensifica esse cansaço, exigindo uma apresentação constante do “EU”, a busca pelo sucesso contínuo que esgota as energias psíquicas e contribui para a fragmentação da identidade. A necessidade de se manter constantemente conectado e engajado gera uma sensação de esgotamento e de impossibilidade de desconectar, criando um estado de hiperatividade mental e emocional.
A cultura digital, portanto, não apenas alimenta o narcisismo, mas também contribui para a intensificação do cansaço e da pressão pela crescente “performance”, criando um ciclo vicioso de busca por validação externa e esgotamento emocional. A busca incessante por aprovação online se torna uma forma de fuga da realidade, mas, paradoxalmente, reforça a sensação de vazio e de inadequação.
A figura do influenciador digital desempenha um papel crucial na construção da identidade na era da hiperconectividade. Influenciadores digitais, muitas vezes, personificam o ideal narcisista, construindo sua identidade e seu sucesso através da validação externa. Sua existência depende da capacidade de atrair atenção, de ser visto e admirado por grandes públicos. A cultura de influência digital, portanto, reforça a ideia de que o valor pessoal é medido pela quantidade de seguidores e engajamento nas redes sociais.
A proliferação de "coaches" e "palestrantes motivacionais" online agrava essa tendência. Essas figuras oferecem uma espécie de orientação externa, oferecendo aos indivíduos as ferramentas e estratégias para navegar no mundo digital e alcançar o sucesso sob a forma de visibilidade e reconhecimento. Embora isso possa parecer capacitador à primeira vista, reforça a ideia de que o valor pessoal é algo que deve ser constantemente conquistado por meio de validação externa.
Essa cultura de auto-otimização e de busca constante por absurda e exagerada “performance” contribui para a fragmentação do “EU”. Os indivíduos se sentem pressionados a construir uma persona online perfeita, cuidadosamente curada, que muitas vezes se distancia do seu eu real. Essa desconexão entre a identidade online e a identidade offline gera uma crise de autenticidade, uma sensação de vazio e de inadequação. O corpo perfeito, por exemplo, passa a ser uma obsessão e, ao mesmo tempo, um instrumento para obter a validação externa, como mostram as inúmeras plataformas de venda de conteúdos eróticos.
Judith Butler, em "Gender Trouble" (1990), oferece uma perspectiva crítica sobre a construção da identidade e a performatividade do gênero. Butler argumenta que a identidade não é algo fixo e imutável, mas sim uma construção social, resultado de uma série de “performances” e repetições. Na era digital, essa performatividade se intensifica, exigindo uma apresentação constante do self online. A busca por uma identidade online perfeita, no entanto, pode levar à alienação do próprio EU, à perda da autenticidade e à fragmentação da identidade.
A necessidade de reconexão com o próprio eu, portanto, se torna crucial na era digital. É preciso desenvolver uma consciência crítica sobre o impacto das redes sociais na construção da identidade, buscando criar um equilíbrio entre a participação online e a preservação da própria individualidade. A busca por um senso de “EU” autêntico, independente da validação externa, é fundamental para a saúde mental e o bem-estar na era digital.
A análise da subjetividade contemporânea através da lente de Freud, Chauí e outros pensadores revela a complexidade da relação entre o indivíduo e o mundo digital. A cultura digital, com sua ênfase na visibilidade e na validação externa, contribui para o desenvolvimento de uma subjetividade narcisista, frágil e suscetível à depressão e à crise existencial. A hiperconectividade, o cansaço crônico e a pressão por “performance” geram uma sensação de esgotamento e de impossibilidade de desconectar. Tudo isso pode apontar para um possível crescimento de suicídios, diante da impossibilidade de atingir o sucesso exigido pelo mundo externo.
A busca por um “EU” autêntico, independente da validação externa, é fundamental para a construção de uma relação crítica com o mundo virtual. A autenticidade está na compreensão de nossa origem, de nossa história, nas escolhas feita no cotidiano. Todos nós, às vezes, precisamos pensar sobre nossos valores, interesses e paixões. Um bom caminho é olhar para o nosso mais profundo íntimo e perguntar o que realmente importa para nós, independente do que os outros pensam ou dizem sobre nós. É preciso desenvolver uma consciência crítica sobre o impacto das redes sociais na construção da identidade, buscando criar um equilíbrio entre a participação online e a preservação da própria individualidade. A reconexão com o próprio eu, com seus valores e seus desejos, é essencial para navegar nesse mundo complexo e desafiador.
A Revolução Necessária:
Do Anacronismo à Cidadania
José Augusto Zaniratti - 01/12/2024
Ainda que todos os problemas que a educação vive no país fossem totalmente resolvidos, restaria o principal: um modelo de educação anacrônico! O modelo educacional no Brasil, salvo exceções de escolas e profissionais, reforça e avalia a capacidade de mera reprodução de conteúdos já conhecidos, afastando a tecnologia da sala de aula, como o banimento dos celulares. O problema não é o celular, mas a incapacidade de usá-los para enriquecer o processo ensino-aprendizagem. Isto, sim, é um problema de parte dos profissionais da educação e, principalmente, do modelo educacional – ou dos vários modelos – a que os alunos são submetidos. São modelos que não ensinam e nem valorizam, como principal, a ressignificação do conhecimento e tampouco a criação de novos saberes. Há um processo absurdo de fazer a escola competir com a “internet”, com o Google, com a inteligência artificial. Ao contrário, conhecer as técnicas e aprender a usá-las para avançar sobre o que já é conhecido é a base para um modelo de educação adequado para criar novos conhecimentos e tecnologias. Nossa educação atingiu um bom grau de inclusão; agora, precisa de uma revolução no modelo educacional para fugir das trevas da Idade Moderna e avançar para o século XXI.
Este modelo antiquado de educação, baseado no conteúdo e em sua reprodução, gera tédio nos educandos e torna-se desinteressante. Se hoje eu fosse um estudante, eu perguntaria: para que devo ir à escola? Penso que estamos enfrentando situações graves na política, como o negacionismo em relação à ciência, às vacinas e até crenças absurdas de que o planeta é plano, graças ao processo de deseducação em que vivemos. Tudo isso se torna ainda mais grave se considerarmos o ambiente de desinformação gerado por cabeças medíocres que nada cresceram e pouco aprenderam.
Conhecer história, por exemplo, é basilar para qualquer área de desenvolvimento porque se trata de educar um ser humano que é – ou deveria ser – antes de ser um profissional, um cidadão. Como afirma o historiador Marc Bloch em sua obra "Apologia da História", o estudo do passado é essencial para compreender o presente e projetar. Entretanto, a realidade brasileira contrasta com esse ideal: as escolhas que os eleitores fazem, assim como as articulações e planos para assassinar líderes e servidores públicos ou ainda pedidos de intervenção militar, bombas no aeroporto de Brasília, a destruição do patrimônio histórico e da humanidade e, por fim, atentados como o do homem-bomba ao STJ e ao Parlamento.
Na prática, é notório que grande parte da população não conhece a história do país. Conhecer a história não é recitar datas ou discorrer sobre eventos específicos. É na escola que começamos a desaprender ou até odiar história em função da incapacidade pedagógica em explorar o currículo escolar. Avançamos e transformamos a partir de uma visão mais ampla e crítica da história do Brasil, abordando questões de diversidade, justiça social e narrativas silenciadas. Como defende Paulo Freire em sua "Pedagogia do Oprimido", o ensino deve ser libertador, conduzindo o aluno à reflexão crítica sobre sua realidade. A história, nesse sentido, é uma ferramenta poderosa para que os estudantes compreendam as estruturas sociais e políticas que moldam suas vidas.
Além disso, autores como E.P. Thompson destacam a importância de abordar a história "a partir de baixo", ou seja, dando voz às classes populares e aos grupos marginalizados. Essa abordagem poderia transformar o ensino da disciplina em um instrumento para formar cidadãos mais conscientes e críticos. Como ensinar história sem abordar as lutas dos trabalhadores, os movimentos sociais ou as resistências dos povos indígenas e afrodescendentes? É necessário romper com uma narrativa única e elitista para construir uma educação que valorize a pluralidade.
Autores contemporâneos como Yuval Noah Harari também reforçam a importância da história como ferramenta para entender os desafios globais atuais. Em sua obra "21 Lições para o Século XXI", Harari destaca que compreender as narrativas históricas nos ajuda a lidar com questões como desigualdade social, mudanças climáticas e avanços tecnológicos. A história deixa de ser apenas uma disciplina acadêmica e se torna um meio de empoderamento para enfrentar os dilemas contemporâneos.
Há dois aspectos no ensino de história, que vale para todas as disciplinas, é: a) vincular a história do país ou do planeta à linha do tempo de cada educando. É necessário mostrar que assim como nós, o país tem história, o planeta tem história e que, também assim como a nossa história como indivíduos, é preciso compreender os fatos, analisar e aprender as lições do passado podem nos ajudar a definir nosso futuro, assim como no país e no planeta. b) fazer o educando ler a história, não só pelos fatos do passado, mas sobre tudo ler o simbolismo dos fatos da atualidade. História não é memorizar antigos fatos estanques, mas sobretudo, compreender o significado de cada fato no passado e no presente. Ler a história é absolutamente diferente de memorizar história. Os fatos só possuem sentidos se forem lidos dentro do contexto de época e sob todos os pontos de vistas e não apenas pela visão dos vitoriosos.
Ensinar história é fazer o educando gostar de compreender a história, a sua própria e a de todos. Não basta ler as letras, palavras ou frases; é preciso ler-se em cada contexto, ler o contexto e todos os sujeitos em cada período. Em outras palavras, o fundamental é fazer o educando gostar da história como seu guia e ampliar sua capacidade de aprender sozinho, como autodidata.
Entre as técnicas mais contemporâneas de ensino de História, destaca-se o ensino invertido, onde os alunos estudam o conteúdo teórico em casa, por meio de vídeos, leituras ou podcasts. Esse modelo permite que o tempo em sala de aula seja dedicado a atividades práticas, debates e discussões. Nesse contexto, o professor atua como facilitador, esclarecendo dúvidas, aprofundando temas e promovendo a colaboração entre os alunos. Assim, as aulas se tornam mais produtivas, focadas na construção do conhecimento e na resolução de problemas.
A história oral desempenha um papel fundamental ao humanizar o passado, conectando os alunos com as experiências reais de pessoas que vivenciaram eventos históricos. Entrevistas com familiares, veteranos de guerra ou membros da comunidade que testemunharam momentos significativos como a resistência contra a ditadura militar, por exemplo, trazem uma dimensão emocional e pessoal ao aprendizado, mostrando como a história local ou nacional foi vivida por pessoas reais, torna tudo mais significativo e impactante. Isso torna a História mais concreta, facilitando a compreensão do contexto em que os eventos ocorreram.
A interdisciplinaridade também é crucial, pois conecta a História com outras áreas do conhecimento, como Geografia, Literatura, Artes e Sociologia. Essa abordagem ajuda na contextualização dos fatos. Por exemplo, analisar um quadro renascentista pode aprofundar a compreensão do contexto histórico da época, enquanto estudar a literatura de um período pode revelar as mentalidades e ideologias predominantes.
Por fim, não aproveitar a tecnologia disponível, a interação e a contextualização na formação de cidadãos críticos e conscientes é relegar a História a um conjunto de informações desatualizadas e sem significado. É essencial integrar essas abordagens para enriquecer o aprendizado e estimular uma compreensão profunda do passado.
Portanto, ensinar história para formar cidadãos exige mais do que transmitir informações; requer um compromisso pedagógico com a formação crítica e ética dos alunos. A escola deve ser um espaço onde se discute não apenas os fatos históricos, mas também suas implicações no presente e no futuro. Como defende Bell Hooks em "Ensinando a Transgredir", a educação deve ser um ato político transformador. Só assim será possível superar as trevas da ignorância e construir uma sociedade justa e democrática.
Desafio do Diálogo: Caminho para a Reconciliação
José Augusto Zaniratti - 25/11/2024
A crescente dificuldade de dialogar com pessoas de diferentes perspectivas é um sintoma alarmante da polarização que permeia nossas sociedades contemporâneas. Este fenômeno não se limita apenas a divergências de opiniões; é uma crise que afeta a própria essência da convivência humana, comprometendo a capacidade de construir um futuro comum. A polarização, intensificada pelas redes sociais e pelo consumo seletivo de informações, resulta em um ambiente onde a empatia e a compreensão mútua se tornam cada vez mais raras.
Uma parte significativa da população resiste à mudança de opinião, buscando abrigo em "bolhas" de confirmação social nas mídias sociais, onde preconceitos são reforçados e o pensamento crítico é sufocado. Eli Pariser, em sua obra "The Filter Bubble", ilustra com clareza como algoritmos intensificam essa polarização ao apresentar apenas informações que validam os vieses já existentes dos usuários. Essa dinâmica não apenas limita o acesso a uma diversidade de ideias, mas também cria um ambiente propício à desinformação e à manipulação, onde a verdade é frequentemente distorcida para se adequar a narrativas pessoais.
Essa situação se torna ainda mais complexa quando consideramos a dissonância cognitiva, um conceito introduzido pelo psicólogo social Leon Festinger. A dissonância cognitiva leva as pessoas a evitarem informações que desafiem suas crenças, resultando em alienação política e fragmentação das relações sociais. Esse fenômeno é visível até mesmo nas interações familiares, onde discussões se transformam em batalhas ideológicas, afastando entes queridos e criando divisões profundas que podem durar por anos.
A incapacidade de diálogo se manifesta como uma epidemia, ameaçando a coesão social e a busca por soluções coletivas para os desafios que enfrentamos, como a desigualdade, a injustiça social, as crises ambientais e a polarização política. Para construir um futuro melhor, é imperativo que cada um de nós enfrente o fanatismo e a reprodução acrítica de informações. A resistência em avaliar dados e argumentos contraditórios exige uma abordagem estratégica que considere fatores psicológicos, sociais e cognitivos. Criar um ambiente de confronto apenas agrava a polarização, perpetuando o ciclo de conflito e dificultando a construção de um entendimento mútuo.
A lógica que transforma ideias em crenças evidencia a ausência de um pensamento crítico robusto. Daniel Kahneman, em seu livro "Thinking, Fast and Slow", discute os dois sistemas de pensamento: o rápido, que opera com base em heurísticas, e o lento, que é mais analítico e reflexivo. A preguiça mental mencionada anteriormente pode ser vista como uma falha em ativar o sistema de pensamento lento, levando a julgamentos apressados e a uma aceitação acrítica de informações. Em discussões marcadas por argumentação agressiva, o pensamento rápido e acrítico pode ser uma tática para vencer debates sem substância, desprovidos de fatos concretos.
Em vez do enfrentamento duro e rígido, estratégias que incentivem a reflexão são mais eficazes. Apresentar evidências de forma clara e objetiva, contar histórias que demonstrem diferentes perspectivas e praticar a empatia, buscando compreender o ponto de vista do outro, são passos importantes.
Normalmente as pessoas reproduzem argumentos de outros, desconhecendo as fontes das informações a real implicação das ideias usadas. A melhor ferramente é fazer perguntas para encontrar as fontes, os interesses ligados à cada informação e, principalmente, mostrar as contradições entre as afirmações. A ideia de questionar as fontes e mostrar contradições é excelente. Podemos adicionar a perspectiva da verificação de fatos que se tornou essencial na era da desinformação. Desta forma podemos identificar e desmascarar notícias falsas e a manipulação de informações. Ainda que a pessoa não aceite imediatamente os novos argumentos, ela pensará na discussão e nas contradições expostas, se for em um clima fraterno. A única forma de enfrentar a polarização é desarmar os atores do cenário.
Considere que a comunicação não-violenta (CNV), proposta por Marshall Rosenberg, é a forma mais adequada para abordar aqueles que não dialogam, os chamados donos da verdade. Rosenberg destaca a importância de expressar necessidades e observações sem julgamentos, criando um espaço de diálogo mais construtivo, enfatiza a empatia e a comunicação assertiva para construir pontes e evitar o confronto.
Para construir uma sociedade mais tolerante e inclusiva, precisamos criar um ambiente que valorize a diversidade de ideias e promova o respeito mútuo. Isso implica em:
Realizar atividades sociais que promovam a interação entre diferentes segmentos da sociedade, permitindo que as pessoas conheçam realidades diversas, longe das bolhas criadas pelos algoritmos. Essas atividades podem incluir eventos comunitários, debates abertos e fóruns de discussão que incentivem a troca de experiências e a construção de laços sociais.
Buscar notícias e opiniões de fontes variadas, incluindo aquelas que desafiam nossas crenças, para ampliar nossa compreensão do mundo e das questões sociais. A diversidade de fontes é fundamental para evitar a armadilha da desinformação e para garantir que tenhamos uma visão mais equilibrada e abrangente dos assuntos que nos cercam.
Participar de debates e fóruns com regras claras que garantam um diálogo respeitoso e produtivo, onde todos possam expressar suas opiniões sem medo de represálias. Estabelecer normas de respeito mútuo e escuta ativa pode transformar discussões acaloradas em oportunidades de aprendizado e crescimento.
Desenvolver programas educativos** que fortaleçam o pensamento crítico e a capacidade de identificar informações falsas e tendenciosas, capacitando as pessoas a serem consumidoras mais conscientes de informação. A educação deve ser um pilar fundamental na formação de cidadãos críticos e engajados, capazes de questionar e analisar o que consomem.
Esforçar-se para compreender as perspectivas e as razões** por trás das crenças do outro, mesmo quando discordamos, praticando a empatia e a escuta ativa. Essa prática não apenas enriquece nosso entendimento, mas também humaniza o outro, permitindo que vejamos além das diferenças.
Construir pontes entre pessoas com diferentes pontos de vista, criando oportunidades para o diálogo e o entendimento mútuo, promovendo um ambiente onde a diversidade de ideias seja valorizada. Iniciativas que incentivem a convivência pacífica e o respeito à diversidade são essenciais para a construção de uma sociedade mais coesa.
Combater a polarização requer um esforço conjunto de indivíduos, instituições e governos. Investir em educação, promover um diálogo construtivo e criar um ambiente social que valorize a diversidade de opiniões são passos essenciais para construir um futuro mais coeso e harmonioso. Mudar de opinião não é sinal de fraqueza, mas de inteligência e abertura ao aprendizado contínuo.
Além disso, é fundamental que cada um de nós se torne um agente de mudança em sua própria comunidade. Isso pode ser feito através da promoção de iniciativas que incentivem a inclusão e a diversidade, como grupos de discussão, workshops sobre empatia e respeito, e campanhas de conscientização sobre a importância do diálogo. Cada pequeno passo conta e pode levar a uma transformação significativa.
Por fim, é importante lembrar que o diálogo não é um fim em si, mas um meio para alcançar a compreensão e a reconciliação. Em um mundo cada vez mais polarizado, a construção de um futuro pacífico depende da nossa disposição em ouvir, aprender e, acima de tudo, respeitar as diferenças que nos tornam humanos. Somente assim poderemos cultivar um ambiente onde a diversidade de pensamentos e experiências seja celebrada, e onde todos se sintam valorizados e ouvidos. O caminho para a reconciliação é longo, mas é um caminho que devemos percorrer juntos, com coragem e determinação. Este é o único caminho que nos afastará da barbárie e nos conduzirá a uma sociedade mais justa, pacífica e unida.
Ciência, Crença e Polarização
José Augusto Zaniratti - 18/11/2024
Atualmente, a polarização é uma preocupação crescente entre muitos. Tudo está polarizado, principalmente as pautas em política e costumes. Muitos falam que devemos sair da polarização, mas não apontam as causas e tão pouco os meios de saídas. Pretensão à parte, quero dar minha contribuição na discussão das causas e saídas da tal polarização.
Não sou daqueles que acredita que tudo é muito difícil. Normalmente há um ponto de partida, depois vem a conjuntura de cada período histórico que, junto da capacidade humana de incrementar ou dissuadir, complexifica a simplicidade. Por isso é que a polarização é um destes aspectos que precisam ser lidos a partir da história.
No Brasil, até 1808, a informação se propagava de maneira local e restrita, limitada aos círculos familiares e comunitários. As notícias, geralmente transmitidas oralmente, se restringiam ao âmbito local, sem alcançar um público amplo. A partir de 1808, com a chegada da família real portuguesa, o acesso à informação se torna mais amplo, mas ainda restrito à elite letrada, que tinha acesso a jornais e periódicos. A informação, nesse período, era única e centralizada, moldada por um número limitado de fontes. A chegada do rádio em 1922 marca um ponto de inflexão na história da comunicação brasileira. Pela primeira vez, a informação se amplia e começa a tornar-se nacional, alcançando um público massivo. O rádio, com seu alcance e poder de penetração, democratiza o acesso à informação, mas também consolida a ideia de uma única fonte de verdade cuja fonte era “POUCOS” para “MUITOS”. Essa centralização da informação, embora tenha contribuído para a formação de uma identidade nacional, também abriu caminho para a manipulação e o controle da informação, como evidenciado pela censura imposta durante o período da ditadura militar, por exemplo. A televisão, que surge na década de 1950, consolida a centralização da informação. A televisão, com sua capacidade de transmitir imagens e sons, encanta e se torna a principal fonte de informação para a maioria da população. Informação, muitas vezes absorvida de forma passiva, é aceita como verdade, sem espaço para questionamento ou contestação. Apesar da impressa escrita tem maior alcance nesta época, a informação continua sendo “POUCOS” para “MUITOS”, considerando que as fontes originais da informação eram restritas.
A chegada da internet em 1994 e sua popularização em 1996 marcam o fim da era da informação centralizada e o início da era da multiplicidade de fontes. A internet, com sua capacidade de conectar pessoas e democratizar a produção e o consumo de informação, quebra o monopólio das grandes mídias. Antes, a informação estava restrita a um número limitado de fontes, se torna acessível a todos, com a possibilidade de produção e compartilhamento de conteúdo por qualquer pessoa. A proliferação de plataformas online, como o Orkut e o Facebook, neste período, intensifica essa democratização da informação e de sua produção. A informação, que antes seguia o fluxo de “POUCOS” para “MUITOS”, agora é produzida e consumida de “TODOS” para “TODOS”. Essa mudança radical na forma como a informação é produzida e consumida tem impactos profundos na sociedade, impulsionando a democratização do debate e a pluralização de perspectivas.
A era da multiplicidade, embora tenha democratizado o acesso à informação e impulsionado a pluralização de perspectivas, também tem sido palco de um fenômeno crescente: a polarização. A internet, com sua capacidade de conectar pessoas e disseminar informações em tempo real, facilita a formação de bolhas de informação, onde indivíduos se cercam de conteúdos que confirmam suas crenças e valores, sem contato com perspectivas divergentes e, muitas vezes, sem nenhum interesse em buscar posições diferentes das suas. Agora todos podem emitir suas opiniões, que na maior das vezes, se transformam em crenças. É nesse momento que se criam as bases para a polarização, quando as pessoas transformam o universo da opinião para a crença.
Opinião é um julgamento ou avaliação pessoal sobre algo. É baseada em experiências, observações, informações, em fatos que comprovam e justificam a minha opinião. Sendo uma opinião, pode mudar com base em novas informações, experiências e, principalmente, a partir de novos fatos que questionam ou invalidam meu conhecimento anterior. A crença, por outro lado, é uma convicção profunda sobre algo. É algo que você considera verdadeiro, mesmo que não tenha evidências concretas para sustentar essa convicção. As crenças são geralmente formadas por meio de experiências pessoais, educação, valores, cultura ou fé. Elas não dependem de fatos, de comprovação, apenas são verdades porque eu acredito que são, por isso não passíveis de mudança.
A proliferação de notícias falsas, a desinformação, a manipulação da informação e a transformação das ideias em crenças, criam um ambiente propício para a polarização. Acreditar em “verdades” que reforçam valores, alimentados pela bolha virtual das mídias sociais, geram uma zona de conforto, fica cômodo eu acreditar e crenças que corrobora com a lógica dos meus interesses. Assim, nada pode demover alguém de uma posição que não é fundamentada em fatos. Esse fenômeno é tão poderoso que pode mobilizar pessoas a cometer atentados, como os ocorridos em Brasília em dezembro de 2022, em 8 de janeiro de 2023 e, recentemente, o homem-bomba em Brasília. A crença pode impedir o diálogo, reforçar o sectarismo e, consequentemente, levar à polarização. De um lado opiniões e ciência e de outro as crenças e a negação da ciência. Este fundamentalismo baseado em crenças alimenta a polarização. Por sua vez, a internet, com sua natureza descentralizada e a ausência de mecanismos de controle, facilita a propagação de informações falsas, que se espalham rapidamente, alimentando o ódio, a intolerância e, consequentemente, reforça a polarização.
Em outras palavras, a verdade se torna aquilo que nos serve, o que nos acomoda e retroalimenta nossos interesses. No pensamento acrítico, essa resistência à mudança se torna um obstáculo à verdade, uma barreira que impede a entrada de novas ideias e perspectivas. O que não se encaixa na estrutura mental pré-estabelecida é descartado como falso, criando uma seita mental que se recusa a evoluir. Ao contrário, "a mente humana é como um paraquedas: só funciona quando está aberta", frase atribuída, por alguns, a Albert Einstein, nos mostra outro caminho, nem sempre trilhado.
No entanto, isso não deve nos levar a desistir da busca por mecanismos que incentivem mentes 'abertas como paraquedas' a funcionarem. Para fazer uma pessoa mudar de opinião considerando fatores psicológicos, sociais e cognitivos, é importante abordar o processo de mudança com sensibilidade e estratégia. Primeiramente, é essencial reconhecer que a resistência à mudança de opinião é comum devido à dissonância cognitiva, ao viés de confirmação, à identidade social e à falta de pensamento crítico. O fanatismo é o caminho mais curto para as trevas.
Por que é Tão Difícil Mudar de Opinião?
José Augusto Zaniratti - 11/11/2024
Num primeiro olhar, observamos a sociedade polarizada sobre qualquer tema, seja assuntos de costumes ou políticos. Em qualquer ambiente é comum encontrar pessoas emitindo opiniões sem nenhum embasamento teórico ou fático, completamente convictos de suas verdades, que na maior parte do tempo, são meras reproduções de afirmações alheias tomadas como verdades. E nestes novos tempos, a internet e as mídias sociais proporcionam “professores de Deus”.
Num olhar mais atento observamos que nossas afirmações sobre temas sociais ou políticos importantes mostram simplesmente nossos preconceitos, ideias vagas ou ainda afirmações capturadas da internet que, por alguma razão, nos identificamos, mas que não conhecemos fatos que as confirmam. É como se a minha essência estivesse alicerçada em ideias simplistas e vazias.
Para aqueles que se aventuram em uma discussão com argumentos, não obtém resultado, isto é, seus argumentos, por mais verdadeiros e comprovados, são recebidos com falsos. Em outras palavras, a verdade está naquilo que me convém, naquilo que é cômodo eu acreditar e que corrobora com a lógica dos meus interesses. No pensamento acrítico, o que não mexe com a minha estrutura solidificada em meu cérebro, está correto, o restante é falso e por isso não mudo de ideia. Para fins deste texto, chamarei este comportamento de sectário.
Onde isso ocorre comumente? Durante as eleições, é comum observar debates acalorados nas redes sociais. Por exemplo, postagens sobre candidatos frequentemente geram comentários polarizados, onde apoiadores de um lado desqualificam informações do outro, sem considerar evidências contrárias. Isso exemplifica a resistência à mudança de opinião e a confirmação de crenças pré-existentes. Em grupos de discussão, como os de família ou amigos, é comum que certos temas, como vacinação ou mudanças climáticas, gerem divisões. Um membro que traz dados científicos pode ser ignorado ou atacado por outros que sustentam ideias não fundamentadas, mostrando a dificuldade em aceitar novas informações. Isso só piora quando o debate é sobre crenças. Plataformas como Instagram, Facebook, Twitter e outras, frequentemente criam bolhas informativas. Usuários que interagem apenas com conteúdos que confirmam suas crenças sobre um determinado assunto, como economia, política partidária, futebol ou meio ambiente, por exemplo, podem se tornar mais extremistas em suas opiniões, ignorando fontes que apresentam dados divergentes. A resistência à discussão sobre temas sociais, como o feminismo, diversidade sexual ou religiosa, ou o antirracismo, pode ser observada em reações negativas a campanhas que desafiam normas sociais. Pessoas que se opõem a iniciativas como a educação sobre diversidade em escolas podem se sentir ameaçadas em sua identidade, levando a uma defesa acirrada de suas crenças.
Há inúmeros temas históricos que demonstram a impossibilidade de dialogar sobre novas ideias. Por exemplo, a rejeição inicial da teoria da evolução por parte de grupos religiosos. A persistência de ideias criacionistas em algumas comunidades demonstra como a identidade social pode dificultar a aceitação de novas informações científicas. O fenômeno do “cancelamento” nas redes sociais, onde indivíduos são ostracizados por opiniões divergentes, também exemplifica a polarização. Isso pode levar à autocensura, onde pessoas hesitam em compartilhar opiniões que desafiam a norma do grupo, perpetuando a resistência ao diálogo e à mudança. No próprio ambientes escolares, a falta de debate aberto sobre temas controversos, como política ou religião, pode resultar em alunos que não desenvolvem habilidades de pensamento crítico. Observamos em alunos de diferentes formações acadêmicas opiniões firmemente opostas, mas não conseguem discutir as razões por trás de suas crenças. Estudos de caso, como o impacto de campanhas de desinformação durante a pandemia de COVID-19, pode ilustrar como informações falsas se espalham rapidamente e como isso alimenta a polarização, dificultando a aceitação de medidas de saúde pública.
É evidente a dificuldade intrínseca em mudar de opinião, um fenômeno que permeia a sociedade contemporânea. Essa resistência, muitas vezes, se manifesta como uma blindagem contra novas ideias e informações que desafiam nossas crenças preexistentes. Mas por que essa inflexibilidade se torna tão arraigada em nossos pensamentos?
A resposta, em parte, pode residir na natureza complexa do nosso processo cognitivo. O psicólogo social Leon Festinger, em sua teoria da dissonância cognitiva, argumenta que a mente humana busca consistência interna, buscando harmonizar suas crenças, atitudes e comportamentos. Em outras palavras, podemos dizer que buscamos manter nossa ideologia intacta, a crenças vividas na prática cotidiana desde nosso nascimento e ressignificada a partir do contato com novos grupos sociais, mas sempre dentro da mesma bolha social. Quando nos deparamos com informações que desafiam nossas crenças, surge uma dissonância, um desconforto psicológico que nos impulsiona a buscar maneiras de reduzir essa tensão.
Esta tensão, do ponto de vista da formação da consciência, chamo de conflito interno, que nos questiona intimamente. Este conflito pode gerar uma nova consciência, uma nova visão da realidade, o que nem sempre acontece. A consciência crítica, segundo Freire, não é algo que se adquire de forma passiva, mas sim, a partir de um processo de formação e prática social que exige uma profunda reflexão sobre a realidade. São as contradições entre nossas crenças e a realidade em que vivemos, que nos obriga a refletir e a reler a realidade sistematicamente e rever as nossas verdades criticamente. Ao rever nossas posições sobre o mundo nos exige transformar nossa prática, nossas ações como seres humanos, significa fazer diferente a partir das novas crenças. É como perder o chão que nos dá segurança ao caminhar. De certa forma, podemos dizer que isso “dói”. É por isso que resistimos em mudar de ideia, mesmo que saibamos que possivelmente estamos errados.
Uma das estratégias para lidar com essa dissonância é a rejeição da informação discordante. Em vez de questionar nossas próprias crenças, tendemos a desqualificar ou ignorar as informações que as desafiam. Essa tendência é reforçada pelo viés de confirmação, um fenômeno psicológico descrito por Charles Lord, Lee Ross e Mark Lepper em 1979. Esse viés nos leva a buscar e interpretar informações para confirmar nossas crenças pré-existentes, ignorando ou minimizando evidências contrárias.
Outro fator que contribui para a dificuldade em mudar de opinião é a identidade social. As crenças e opiniões que compartilhamos com nossos grupos sociais, como família, amigos e comunidades, se tornam parte de nossa identidade. Em outras palavras, tendemos a nos cercar de pessoas e informações que reforçam nossa visão de mundo, criando uma "bolha" de confirmação que dificulta a exposição a perspectivas divergentes. Esse processo, conhecido como “câmara de eco”, expressão popularizada pelo sociólogo Cass Sunstein, sintetiza o fenômeno online onde indivíduos vivem envoltos apenas em informações que confirmam suas crenças pré-existentes, tornando-os mais resistentes à mudança. Questionar essas crenças pode ser interpretado como uma ameaça à nossa identidade e pertencimento ao grupo, gerando um sentimento de desconforto e ansiedade.
A falta de conhecimento e habilidades de pensamento crítico também desempenham um papel crucial para não mudar de opinião. A capacidade de analisar informações de forma objetiva, identificar vieses e avaliar a qualidade das fontes é essencial para formar opiniões fundamentadas e flexíveis. No entanto, a falta de acesso à informação confiável, a proliferação de notícias falsas e a influência de algoritmos que reforçam nossos vieses contribuem para a dificuldade em desenvolver essas habilidades.
A resistência à mudança também pode ser influenciada pelo medo do desconhecido. Abraçar uma nova perspectiva exige sair da zona de conforto e lidar com a incerteza, o que pode ser assustador para muitas pessoas.
É importante ressaltar que mudar de opinião não é uma fraqueza, mas sim um sinal de inteligência e abertura ao aprendizado constante. Reconhecer a possibilidade de estarmos errados e estar dispostos a reavaliar nossas crenças é fundamental para o crescimento pessoal e para o desenvolvimento de uma sociedade mais tolerante e receptiva à diversidade de ideias.
A dificuldade em mudar de opinião é um fenômeno complexo que envolve fatores psicológicos, sociais e cognitivos. A dissonância cognitiva, o viés de confirmação, a identidade social e a falta de pensamento crítico contribuem para a resistência à mudança. É preciso desenvolver habilidades de pensamento crítico, buscar informações confiáveis e estar aberto ao diálogo para superar essa resistência e construir uma sociedade mais tolerante e receptiva à diversidade de ideias. Do contrário, estaremos cada vez mais perto do sectarismo e, consequentemente, subjugados pelo fanatismo, tão presente no século XXI, que vai desde a crença no terra planismo, no negacionismo à impossibilidade de aceitar torcedores de times de futebol diferente. Isso gera um clima da mais absurda barbárie e nos conduz às trevas.
Diálogo Intergeracional
José Augusto Zaniratti - 04/11/2024
Quase todos possuem acesso a conhecimento de todos os tipos. Conhecimentos sintetizados em textos curtos ou longos, vídeos longos ou curtos, diariamente disponíveis em qualquer língua, com ou sem legendas. Se quiseres compreender ou aprofundar algum assunto, as inteligências artificiais te ajudarão, darão explicações detalhadas, disponíveis em computadores ou no celular na palma da tua mão. Mas ainda assim é apenas conhecimento já criado. O que tu não vais encontrar é a Sabedoria. Aquele conhecimento antigo, transformado em sabedoria, é ignorado pelas novas gerações. Elas acreditam que é na internet que aprendem tudo que precisam. Grande ilusão. A internet possui conhecimento acumulado, mas não a sabedoria.
As novas gerações estão cada vez mais afastadas dos avós. A cultura ocidental, ao contrário da oriental, não valoriza o saber adquirido ao longo da vida dos mais velhos. Quem atingiu a terceira idade percebe nitidamente que, ao envelhecer, vai tornando-se invisível às novas gerações. Dependendo da educação que absorveram, muitos jovens consideram os velhos como um peso que precisam aguentar, um empecilho para seu crescimento. Em outras palavras, para eles, os velhos só atrapalham e são fonte de gastos sem nada produzirem. Os mais jovens esquecem que são os velhos que possuem a maior riqueza que a humanidade pode usufruir. Não acredita? Explico!
Podemos pensar em conhecimento como se fosse um mapa e sabedoria como a capacidade de navegar por ele. Ter um mapa é útil, mas não garante que você chegará ao seu destino. A sabedoria é a experiência, habilidade e a capacidade de interpretar o mapa, fazer escolhas estratégicas e navegar pelos desafios do caminho.
É verdade que o conhecimento, ou seja, a informação acumulada sobre o mundo é como ter um conjunto de peças de um quebra-cabeça. A sabedoria é a capacidade de aplicar o conhecimento de forma eficaz e prudente em situações da vida real, usando as peças do quebra-cabeça para construir algo significativo. A sabedoria é uma construção lenta, geralmente desenvolvida ao longo do tempo, através da experiência, da reflexão e da interação com o mundo. Ela não é algo que se aprende nos livros, nas aulas, na TV ou passando horas nas mídias sociais. Ao contrário, é um processo de aprendizado complexo que fornece a capacidade de discernimento, bom senso, julgamento e a habilidade de tomar decisões sábias, levando em consideração as consequências a longo prazo. Já disse o filósofo chinês Confúcio, "A sabedoria não é algo que se aprende simplesmente lendo livros ou assistindo a aulas, mas sim algo que se cultiva através da prática e da aplicação do conhecimento em diferentes situações."
A principal diferença entre conhecimento e sabedoria está na forma de agir e na tomada de decisões. E a prática é resultado da ação ou da reflexão que fazemos da prática do outro, daqueles que estiveram em muitas situações em que suas escolhas resultaram em acertos ou erros. Absorver essa experiência prática só é possível a partir do diálogo entre gerações. É por isso que em muitos países no oriente os avós possuem responsabilidades diretas na educação dos netos. Afinal, nosso aprendizado e a identidade de cada um de nós é moldada por uma série de fatores, incluindo família, educação e cultura. No entanto, um aspecto frequentemente negligenciado nessa construção é a interação entre diferentes gerações. O diálogo intergeracional pode ser um poderoso agente de transformação social e pessoal, contribuindo para a formação de uma sociedade mais coesa e empática.
Em muitas culturas, a sabedoria dos mais velhos é altamente valorizada. No Japão, por exemplo, o "Keiro no Hi" é um dia dedicado aos idosos, celebrando sua contribuição e sabedoria acumulada. Essa tradição demonstra a importância cultural de reconhecer e valorizar o conhecimento e a experiência das gerações mais velhas. Na China, a tradição oral desempenha um papel crucial na transmissão de sabedoria e conhecimento. Histórias, contos e provérbios são usados para ensinar lições de vida e transmitir valores culturais. Essa prática demonstra a importância de preservar e compartilhar a sabedoria acumulada ao longo das gerações. No Brasil, os povos e comunidades tradicionais, entre elas os de Matriz Africana, respeitam os mais velhos, sua ancestralidade e a tradição oral é uma ferramenta importante no processo de aprendizagem.
As diferenças entre gerações são palpáveis em muitos aspectos: valores, crenças, hábitos e até mesmo a forma como consumimos informação. A geração mais velha, muitas vezes, traz consigo uma bagagem de experiências e ensinamentos valiosos, enquanto as gerações mais jovens apresentam novas perspectivas e uma visão inovadora do futuro. Essa troca de saberes e vivências é vital para a construção de uma sociedade plural e rica em diversidade.
Um dos principais benefícios do diálogo intergeracional é a promoção da empatia. Ao ouvirrmos as histórias e preocupações de outras gerações, podemos compreender melhor suas motivações e desafios, criando um espaço para o respeito mútuo e a colaboração. Esse entendimento é essencial em tempos de polarização, onde a intolerância e o sectarismo ameaçam a convivência pacífica.
Além disso, a troca entre gerações pode enriquecer a formação ideológica de todos os envolvidos. Ao confrontar diferentes visões de mundo, somos desafiados a questionar nossas próprias crenças e a expandir nosso entendimento sobre temas complexos, como política, meio ambiente e direitos humanos. Essa reflexão crítica é fundamental para o fortalecimento da democracia e para a construção de um futuro mais justo.
Contudo, o diálogo intergeracional não deve ser visto apenas como uma obrigação social, mas como uma oportunidade enriquecedora. Promover espaços de interação, como rodas de conversa, projetos comunitários ou até mesmo encontros informais, pode ser uma maneira eficaz de fomentar essa troca. As brincadeiras com os netos e netas pode ser um momento rico para trocar experiência e absorver sabedoria. As escolas também têm um papel crucial, ao integrar discussões sobre a importância da diversidade geracional em seus currículos, preparando os jovens para serem cidadãos mais conscientes e envolvidos socialmente.
Em um contexto em que a sociedade se fragmenta cada vez mais, o diálogo intergeracional surge como uma solução viável para unir diferentes pontos de vista e construir uma identidade coletiva mais forte. Ao valorizar as histórias e experiências de cada geração, contribuímos para um ambiente onde todos se sintam ouvidos e respeitados.
O tempo é como um rio, flui incessantemente, carregando consigo as marcas das gerações que o percorreram. Nem tudo que é antigo é atrasado, assim como o novo não é, necessariamente, revolucionário ou bom. A sabedoria reside na capacidade de reconhecer o valor do passado e a promessa do futuro, sem sucumbir à nostalgia ou ao futurismo acrítico.
“O Brasil só será competitivo e muito mais desenvolvido, só será um país rico quando nós estivermos exportando sabedoria e inteligência", como afirmou Lula, na abertura do ENEM em 03/11/2024 no “X” . É nesse contexto que o diálogo intergeracional se torna essencial. Ele não é apenas uma troca de ideias, mas um processo dialético, onde a confrontação entre diferentes perspectivas e experiências gera uma síntese mais completa e enriquecedora. A experiência dos mais velhos, forjada pelo tempo, pode iluminar o caminho dos mais jovens, enquanto a energia e a visão inovadora da juventude podem revitalizar a tradição.
A falta de diálogo, por outro lado, é um atalho para as trevas. Sem a troca de ideias, sem a escuta atenta e o respeito mútuo, corremos o risco de nos perder em um labirinto de preconceitos, intolerância e estagnação. A escuridão da ignorância e do isolamento ameaça a nossa capacidade de construir um futuro próspero e harmonioso.
O diálogo intergeracional é um farol que ilumina o caminho, guiando-nos para um futuro mais sábio, mais justo e mais humano.
Qual a tua identidade?
José Augusto Zaniratti - 28/10/2024
Como já afirmei recentemente, não resistir à direita é o mesmo que ceder à regressão e reafirmar ainda mais as trevas. Esta frase demonstra a minha identidade que, evidentemente, pode ser muito diferente da tua. Se é verdade que somos o que comemos, não é menos verdade a seguinte frase:
Entre nossos olhos e a realidade, há um óculos que decodifica as verdades de acordo com nossa história como indivíduos.
Este “óculos” é o resultado de inúmeros fatores aos quais somos submetidos desde a nossa tenra idade até o fim de nossos dias. Refiro-me ao processo de construção ideológica. A ideologia é composta por um conjunto de valores, crenças, princípios e ideias que moldam sua visão de mundo e influenciam suas ações e decisões. É como um mapa mental que guia a interpretação da realidade, a tomada de posição em relação a diferentes temas e a forma como você se relaciona com o mundo. Tudo isso é absorvido através da família, um dos primeiros e mais importantes agentes de socialização, transmitindo valores, crenças e normas que moldam a visão de mundo da criança. Na escola, por meio de seus currículos, professores e colegas, também contribui para a formação da matriz ideológica, transmitindo conhecimentos e valores que influenciam a forma como a pessoa pensa e age. A cultura, em suas diversas manifestações como a arte, música, literatura, religião, etc., influencia a nossa formação e moldam a percepção da realidade. Nossas experiências pessoais, como relacionamentos, trabalho, viagens e eventos marcantes, também marcam os vetores através dos quais lemos o mundo. E hoje, mais importante ainda, os meios de comunicação, como televisão, rádio, internet e jornais, exercem grande influência, formam ou deformam nossa visão sobre os fatos, de acordo com as escolhas que fazemos de quem assistimos ou de onde bebemos informações.
É assim que construímos nossa matriz ideológica e ninguém pode fugir da ação destes formadores ideológicos. À medida que temos consciência de tudo isso, podemos optar em analisar diferentes informações para construir uma posição crítica e própria. Mas não é isso que ocorre com a maioria da população. De qualquer forma, é nossa matriz ideológica que estabelece os parâmetros com os quais nos identificamos mais com as propostas e os valores da direita ou da esquerda. É exatamente por isso que o recomendável é sempre o diálogo e jamais o sectarismo. O primeiro é a prática de ponderar as afirmações para buscar as verdades, o segundo é a cegueira de quem não discute, não analisa, não pondera, apenas reproduz verdades fundamentalistas que nem mesmo conhece a fonte.
Isso é fundamental neste momento em que se dá uma disputa pelo rumo que nosso país vai tomar. De um lado a direita com seus diferentes matizes, conforme abordei na coluna da semana anterior, do outro lado a esquerda que tem sido um tema de grande relevância e discussão nos últimos anos, devido ao seu impacto e influência na sociedade brasileira. A esquerda no Brasil tem suas raízes históricas no movimento operário e nas lutas sociais do país, consolidando-se como uma força política significativa a partir do fim do século XX. Diversos partidos de esquerda foram fundamentais na oposição à ditadura militar e na construção da redemocratização brasileira. As duas ditaduras acabaram forjando uma esquerda ímpar no mundo. Tem sua influência por eventos históricos como a Revolução de 1930, o golpe militar de 1964 e a redemocratização do país a partir de 1979, com a Anistia. Ao contrário da esquerda mundial, no Brasil ela nasce das diferenças do campo da esquerda e não do pensamento único e uniforme como os Partidos na Rússia, depois URSS, do Partido único na China e dos Partidos Comunistas e de esquerda Europeus ou ainda do partido de Cubana. A esquerda do Brasil se reinventa, adaptando suas ideias às novas realidades sociais, políticas e econômicas dos anos 80, absorvendo a democracia como aspecto inegociável, além das propostas de justiça social, igualdade de oportunidades e defesa dos direitos dos trabalhadores, moldando seu histórico e sua atuação política.
Ser de esquerda no século XXI no Brasil significa defender determinadas teses e princípios. Como base, a matriz ideológica de esquerda assume o Estado como instrumento de desenvolvimento social, para quem mais precisa. O Estado, portanto, não pode ser mínimo e tão pouco frágil na capacidade de investimento e defesa dos interesses das camadas vulneráveis. A busca por reduzir as desigualdades sociais e garantir direitos básicos para todos, como saúde, educação e moradia não são apenas bandeiras de lutas, mas ponto básico para desenvolver a sociedade como um todo, inclusive economicamente.
A defesa da redistribuição de renda e a criação de políticas públicas que promovam a justiça social é pauta permanente que, necessariamente, passa a movimentar a economia e, consequentemente, gerando novos postos de emprego e crescimento dos parâmetros da economia a partir do consumo interno. A esquerda acredita na participação popular, na tomada de decisões e na construção de um sistema político mais inclusivo e de proteção dos direitos humanos para todos, incluindo minorias como os povos originários e comunidades tradicionais, a diversidade de gênero e outros grupos vulneráveis.
Um dos maiores desafios da pauta de esquerda é controlar a economia nos quesitos juros e inflação e conter as despesas que sempre teimam em ficar acima da receita. Outro aspecto basilar para a esquerda é a sustentabilidade, principalmente para o Brasil, onde a manutenção da floresta amazônica é aspecto internacionalmente indiscutível. A preservação do meio ambiente e a construção de um modelo de desenvolvimento sustentável é uma exigência a diversificação de fontes alternativas de energia não fósseis é exigência unânime.
É evidente que, assim como a direita, a esquerda brasileira não é homogênea e abriga diversas tendências, com diferentes interpretações sobre como alcançar os objetivos comuns. Algumas das principais correntes de pensamento são:
Defesa da construção de uma sociedade mais justa e igualitária através de reformas sociais e políticas dentro do sistema democrático.
Prioriza a autonomia individual e a autogestão, buscando alternativas ao modelo capitalista.
Defende a abolição da propriedade privada e a criação de uma sociedade sem classes sociais.
Combina o socialismo com a defesa do meio ambiente e a busca por soluções para a crise ambiental.
Apesar da esquerda brasileira enfrentar diversos desafios na atualidade, como:
a instabilidade política e a crise econômica geram dificuldades para a implementação de políticas sociais e a consolidação de um projeto de esquerda;
a diversidade de tendências e a falta de unidade entre os partidos de esquerda dificultam a formação de uma frente política forte;
a globalização impacta a economia brasileira e exige novas estratégias para lidar com os desafios da competitividade internacional;
A visibilidade alcançada da direita no Brasil e no mundo coloca em risco os direitos sociais e as conquistas da esquerda, ela continua a desempenhar um papel impactante na sociedade, mantendo sua capacidade de disputa pela hegemonia.
O cenário internacional de instabilidade das guerras no Oriente Médio entre os grupos terroristas mulçumanos e Israel e da Rússia contra a Ucrânia, ampliam as dificuldades da esquerda mundial. No entanto, a esquerda é a maior força para enfrentar a pauta reacionária, na economia e de costumes, da direita e da extrema direita no Brasil.
Agora a parte que te cabe é tomar consciência de que não há ser humano neutro, todos estão envoltos por uma forma de pensar que acredita ser a melhor forma de construir nossa cidade, nosso estado, nosso país e o mundo. Analise, reflita, pondere e desvela a realidade a partir de fontes de informações com credibilidade e só então, defina. Se não for assim, estaremos assinando a fatura das trevas.
Impacto pela Direita
José Augusto Zaniratti - 21/10/2024
A polarização política entre a direita e a esquerda tem um impacto direto e profundo nas vidas de todos nós. A maneira como pensamos e agimos reverbera em todas as instâncias da sociedade, alterando a dinâmica das relações pessoais e institucionais. Quando analisamos a direita, especialmente a extrema direita, notamos que suas pautas políticas não apenas moldam a vida cotidiana, mas também transformam valores que antes eram considerados universais, como a igualdade e a liberdade. Afirma Norberto Bobbio,
“a direita, em sua forma tradicional, se opõe à esquerda, não por ser contrária à liberdade, mas por ser contrária à igualdade. A direita é, em última análise, uma força conservadora que defende a ordem social existente.”
Essa afirmação mostra o impacto da direita sobre todas as camadas sociais, mantendo a população em sua zona de conforto, preservando valores atrasados e a falta de criticidade à realidade cada vez mais complexa e diversa.
A extrema direita, por outro lado, é marcada por um extremismo ideológico que se manifesta em práticas como o nacionalismo exacerbado, o autoritarismo e a intolerância. Essa forma de política não apenas rejeita a diversidade, mas também busca desumanizar o "outro", criando uma narrativa de inimigos que serve para justificar ações autoritárias. Hannah Arendt, uma das filósofas mais influentes sobre o totalitarismo, argumenta que o discurso de ódio e a manipulação da opinião pública são utilizadas por regimes autoritários como ferramentas para desmantelar a democracia e controlar a sociedade. Segundo Arendt, “o totalitarismo não é apenas uma forma de governo, mas uma nova forma de pensar e agir.”
A ascensão da direita e da extrema direita representa uma ameaça direta à democracia, uma vez que seus líderes frequentemente buscam concentrar poder e restringir direitos. A desinformação, a polarização e o discurso de ódio corroem o tecido social, dificultando o diálogo e a resolução pacífica de conflitos. Neste cenário, práticas discriminatórias contra grupos vulneráveis se intensificam, violando direitos humanos fundamentais. A xenofobia, o racismo e a intolerância têm se tornado cada vez mais comuns em sociedades onde a direita se fortaleceu, resultando em instabilidade política e social.
Além disso, a ascensão de figuras populistas e autoritárias, que se apresentam como salvadores da nação, reflete um descontentamento generalizado com a política tradicional. Esses líderes prometem resolver problemas complexos, como corrupção e violência, muitas vezes utilizando um discurso que nega a própria essência da ideologia, sugerindo que a ideologia é um mal em si. O papel das redes sociais nesse contexto é crucial; elas servem como plataformas para a disseminação de fake news e polarização, facilitando a formação de bolhas informativas que isolam as pessoas em suas crenças.
Zygmunt Bauman, ao discutir a sociedade líquida, destaca que, embora as redes sociais conectem indivíduos globalmente, elas também fragmentam a sociedade, criando ambientes propícios à radicalização. As consequências disso incluem retrocessos nos direitos humanos, ataques à liberdade de expressão e uma crescente desproteção de grupos vulneráveis, como ativistas e comunidades tradicionais.
O clima de desconfiança nas instituições democráticas e os ataques sistemáticos a elas geram um ambiente de instabilidade que coloca em risco a democracia e o estado de direito. Roberto Mangabeira Unger enfatiza a urgência de revitalizar a democracia brasileira, afirmando que “a democracia brasileira está em crise, mas não está morta.” A democracia que conhecemos é insuficiente para enfrentar desafios desta natureza. É preciso criar espaços de discussão permanente e fortalecer os movimentos sociais não corporativos para que possamos desvendar as falsas verdade e aprofundar a capacidade crítica de todos os segmentos sociais. Em outras palavras, tornar a sociedade participativa e inclusiva.
Por fim, a crescente violência política e a radicalização evidenciam a complexidade do conceito de ser de direita no Brasil atual. A direita brasileira é plural, com diferentes grupos e ideologias que abordam questões econômicas, sociais e políticas de maneiras variadas. O fortalecimento desse espectro político, impulsionado por crises econômicas e descontentamento com a política tradicional, exige uma análise crítica de suas vertentes e impactos.
Como Martin Luther King Jr. proferiu sabiamente, “a injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares.” Por isto que, ainda que seja em uma micro espaço de convivência, resistir, opor-se aos valores egoístas e autoritários é fundamental para a construção da cidadania.
Foi assim que, desde sua origem, a esquerda se constituiu em oposição à ideologia de direita, e é na luta pela igualdade e pela justiça que encontramos a esperança de um futuro mais justo e igualitário.
Outro aspecto relevante em relação à direita, mais especificamente a extrema direita, é que uma parte considerável de seus apoiadores se comporta como simples amadores miméticos de pseudo verdades. Muitas vezes, eles são incapazes de articular argumentos racionais, dedicando-se à disseminação máxima de ideias alienígenas e notícias falsas, consequentemente contribuindo para a atual desinformação e ruptura, são câmaras de eco. Ambas as lentes empobrecem o debate público social, com consequências que também esvaziam as habilidades de pensamento crítico da sociedade: de fato, uma capacidade deficiente de pensamento crítico social induz à aceitação de narrativas pouco desafiadoras sobre o estado atual dos assuntos sociopolíticos. Considerar a visibilidade da direita e da extrema direita não é apenas uma tarefa acadêmica, mas também um chamado para despertar: a luta democrática, pelos direitos humanos e pelo respeito próprio são todas responsabilidades compartilhadas, e a resistência é uma necessidade para elevá-las a um futuro. Elevem-se da escuridão. Não resistir à direita é, por definição, ceder à regressão e reafirmar ainda mais as trevas.
A Direita cresceu ou apenas apareceu?
José Augusto Zaniratti - 14/10/2024
A chamada “direita” e “esquerda” sempre estiveram entre nós. Não me refiro apenas àquelas expressões na origem do termo em 1789. Sim, foi na França do século XVIII que se originou, na Revolução Francesa, onde os Girondinos, que defendiam uma monarquia constitucional, se posicionavam à direita do orador no parlamento, enquanto os Jacobinos, que buscavam uma república, se posicionavam à esquerda. O elemento básico para caracterizar direita e esquerda na política, na economia e em todos os aspectos sociais são basicamente dois: a direita está sempre envolvida com o conservadorismo e o reacionarismo, defendem os interesses das elites. A esquerda está sempre envolvida com a transformação, em caráter revolucionário e defende os interesses dos menos favorecidos. Ao longo do tempo mudaram as abordagens e as formas de efetivarem cada uma destes parâmetros, desde os mais moderados até os mais radicalizados.
Quando o Brasil passou para o domínio dos europeus - porque antes era dos povos originários - importamos a cultura europeia, e com ela, um modo de vida dividido em classes, uns com quase todas as riquezas e a maioria sem ou com quase nenhuma riqueza.
No princípio as expressões direita e esquerda estavam vinculadas, principalmente, à classe e secundariamente às ideias dos indivíduos.
Evoluímos? Um pouco, hoje no mundo inteiro ser de direita ou de esquerda pressupõe um conjunto de valores e ideias sobre economia, organização social, comportamento social e organização do Estado. Se atribuirmos a cor azul à direita e o vermelho à esquerda, hoje teríamos muitos tons diferentes de azul e de vermelho, desde os mais fortes até os mais claros.
Devemos compreender que ser de direita e esquerda é resultado da educação que tivemos, do convívio social, das relações sociais que construímos ao longo de nossas vidas. Disto podemos depreender que por séculos convivemos com pessoas de direita e de esquerda. Nossos valores e princípios nos aproximam das pessoas e dos ideários de direita ou de esquerda.
Portanto o que muitos chamam de dicotomia entre direita e esquerda, eu chamo de diversidade ideológica, intrínseca à humanidade e não pode ser combatida como se fosse o Bicho Papão ou coisa do Demônio.
A direita brasileira é heterogênea, com diferentes grupos e ideias, e suas posições variam em relação a temas como economia, sociedade, segurança e política externa. No Brasil contemporâneo, essa diversidade ideológica clássica se torna mais complexa, com diferentes grupos e ideias com nuances de tons e diferentes formas de agir. Há elementos que alguns chamam de princípios básicos da direita no Brasil que estão sempre presentes nos discursos, propostas e políticas públicas desenvolvidas quando no poder. Cito aqui algumas:
Prioriza a livre iniciativa, a desregulamentação do mercado e a redução da intervenção estatal na economia. Defende a propriedade privada, a livre concorrência e a redução de impostos e chega ao ponto de balizar as relações econômicas com a ideologia que defende, evitando comércio com quem não se alinha ideologicamente;
Se opõem a mudanças sociais e políticas que desafiam valores tradicionais, como a família nuclear padrão do século passado, a moral religiosa e o papel de gênero. Essa postura conservadora pode se manifestar em oposição ao casamento homossexual, à legalização do aborto, à igualdade de gênero e à diversidade cultural. Se opõe a mudanças sociais consideradas "radicais" ou "desviantes" da ordem social estabelecida. Trata a diversidade no campo sexual como desvio ou doença;
Enfatiza a autonomia individual e a responsabilidade pessoal, em contraposição à ideia de coletivismo e de responsabilidade social;
Prioriza a segurança pública e a lei e ordem, muitas vezes defendendo o endurecimento das penas e o aumento do poder policial, chegando até a popularização das armas e da defesa de pena de morte para o país;
Valoriza a defesa da identidade nacional, muitas vezes associada a uma visão de superioridade cultural, é um elemento central da direita e da extrema direita. O discurso nacionalista busca fortalecer a coesão social, podendo defenderem a destruição da independência dos poderes, intervenção militar e o desmantelamento das instituições, mas pode facilmente se transformar em xenofobia e intolerância, chegando, muitas vezes, a intensificar o discurso de ódio, discriminação e violência contra minorias, imigrantes, grupos LGBTQIAPN+ e outros grupos sociais vulneráveis. Esse discurso busca desumanizar o "outro" e justificar a violência, criando um clima de intolerância e medo na sociedade.;
A direita e a extrema direita frequentemente se apresentam como representantes do povo, em oposição a uma elite corrupta e elitista. Essa postura populista busca mobilizar as emoções e o ressentimento da população, prometendo soluções simples para problemas complexos, muitas vezes ignorando a complexidade da realidade e as consequências de suas ações.
Hoje a chamada Nova Direita, em processo de formação, combina elementos do liberalismo econômico com o conservadorismo social, com foco em temas como identidade nacional, patriotismo e combate ao "politicamente correto". Neste processo se observam vozes que defendem a liberdade individual em todas as esferas, incluindo a econômica, social e moral, com um Estado mínimo e um forte individualismo.
Todas estas características da direita e extrema direita no Brasil, de uma forma ou de outra, estavam presentes entre nós. A ascensão ou o aumento da visibilidade da direita e da extrema direita tem características próprias, influenciadas por fatores históricos, muitas vezes fortalecidas, pelos fatores socioeconômicos e políticos específicos.
O Brasil foi colonizado por Portugal, um país com uma longa tradição de autoritarismo e desigualdade social. Essa herança colonial contribuiu para a formação de uma cultura política marcada pela centralização do poder, pelo clientelismo e pela violência.
Os momentos de autoritarismo e ditadura civil como os que iniciaram na década de 30, reforçou a herança paternalista e clientelista nas relações sociais e políticas.
A cultura do "jeitinho brasileiro", que busca burlar regras e normas para obter vantagens, contribui para a tolerância com a corrupção e a impunidade, criando um ambiente propício à ascensão de líderes populistas que se aproveitam da desconfiança nas instituições. Este “jeito malandro de ser” é, ao mesmo tempo, resultado dos elementos anteriores e formador de uma cultura antipolítica e de oportunismo em todos os âmbitos sociais.
O golpe militar de 1964, que foi apoiado pela Marcha pela Tradição, Família e Propriedade no Rio de Janeiro, instaurou uma ditadura no Brasil que deixou uma profunda marca cultural, reforçando os pilares da ideologia de direita e extrema direita. A repressão política, a violação de direitos humanos e a censura à liberdade de expressão criaram um clima de medo e autoritarismo que ainda hoje influencia a política brasileira.
O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, com uma concentração de renda extrema e um abismo social entre ricos e pobres. Essa desigualdade gera frustração, ressentimento e a busca por soluções simples para problemas complexos, tornando a população mais suscetível a discursos populistas e à busca de soluções mágicas e fáceis como jogos e corrupção.
A crise econômica que o Brasil enfrentou desde 2014, com altas taxas de desemprego, inflação e recessão, tem aprofundado a desigualdade social e gerado insegurança e incerteza na população. Essa situação tem contribuído para a ascensão de líderes que prometem soluções rápidas e eficazes para os problemas econômicos, mesmo que essas soluções sejam irrealistas ou perigosas.
A violência urbana e a criminalidade organizada são problemas crônicos no Brasil, que geram medo e insegurança na população. A promessa de ordem e segurança, mesmo que à custa da liberdade individual, tem se tornado atrativa para muitos, abrindo espaço para líderes autoritários que se apresentam como salvadores da nação.
Na maioria dos momentos históricos a identificação desses conceitos era a partir dos discursos de líderes locais e nacionais. De certa forma podemos dizer que, até o fim do século XX, a população não tinha meios para manifestarem publicamente a sua identificação com as teses de direita hegemônicas até então. A presença popular era notada, principalmente, pelo voto, cujo processo de apuração era longo e com limites em relação à lisura do processo e, pior, só a partir de 1932 foi incorporado o direito ao voto das mulheres. Só em 1996, com as urnas eletrônicas, começamos a identificar, nitidamente, as tendências do eleitorado de forma mais precisa. Neste século, com a internet e as mídias sociais a população não está mais invisível do ponto de vista de suas manifestações individuais. Isso nos dá uma sensação de crescimento da direita e extrema direita porque agora ela foi descoberta do manto da invisibilidade que a tecnologia possibilitou. Sim, temos uma população conservadora, em suas maioria, que significa espaço aberto para a hegemonia de direita.
A direita não cresceu, apenas ficou mais visível e, por isso, passou a ocupar espaços de visibilidade coletiva - Partidos - e individuais - Mídias Sociais - e com isso passou a disputar a hegemonia da população com maior força. Que impactos a visibilidade da direita gerou? Isso é assunto para a próxima coluna.
Após as Urnas: A Caminhada da Cidadania
José Augusto Zaniratti - 07/10/2024
Domingo tudo aconteceu. Alegria, tristeza, ódio e indiferença, tudo isso muitos sentiram, às vezes até misturados e ao mesmo tempo. Viver cada um destes sentimentos não é um erro. O problema é exatamente o que nós podemos fazer a partir destes sentimentos. O ódio e a indiferença nada constroem, ao contrário, estimulam a destruição, a violência. Da tristeza podemos tirar forças para fazer melhor no futuro, olhar para frente e começar imediatamente, a construir novas práticas individuais e coletivas
A democracia pressupõe compreensão dos mais diversos sentimentos e aceitação daquilo que não pudemos mudar, dos acertos e erros que cometemos, seja na campanha eleitoral ou no que sentimos por ela.
O domingo de eleição passou, agora ficou a expectativa de um novo ciclo político para o Brasil. Seja qual for o resultado das urnas, a jornada que se inicia após o pleito exige reflexão e ação por parte de candidatos, partidos e, principalmente, da população. A parte mais importante da democracia não é o voto. O que inicia agora é parte da essência da democracia: as responsabilidades e desafios que se apresentam no pós-eleitoral. Depois de votar, não podemos cruzar os braços ou lavar as mãos como se não tenhamos mais nada a ver com isso. Ao contrário, é agora que começa o trabalho de cada um de nós.
Para os candidatos vitoriosos nas eleições, para além da celebração, representa um compromisso inegociável com o povo. O candidato eleito assume a responsabilidade de liderar, governar e atender às expectativas da população que depositou nele sua confiança. A missão exige humildade, diálogo e a capacidade de unir forças para construir um futuro melhor. Faça uma reflexão profunda sobre as razões que te levaram à vitória, sobre seus compromissos e seu público. É isso que deve manter a tua chama da sabedoria acesa para não te desviar do teu propósito.
É fundamental que o candidato eleito honre as promessas feitas durante a campanha, traduzindo-as em ações concretas e transparentes. A população espera resultados tangíveis, especialmente em áreas como saúde, educação, segurança e desenvolvimento econômico. A construção de um futuro próspero exige diálogo e união. Quem foi eleito é responsável por todos cidadãos, não apenas por aqueles que o elegeram. Por isso é fundamental buscar convergências com os demais partidos, buscando construir consensos e soluções para os desafios em cada cidade. Olhar o que os une e não suas diferenças.
O esperado é que a gestão pública seja pautada pela ética, transparência e eficiência, ainda que muitos candidatos e eleitores não tenham agido desta forma durante o processo eleitoral. Por isso que qualquer que seja a gestão, da prefeitura ou do mandato, deve haver mecanismos de controle e acompanhamento das ações, de forma coletiva e responsável e sobretudo, com participação ampla, pois, sabemos que o poder exercido coletivamente tem mais chance de permanecer ético. É a partir do diálogo e da sensibilidade que as decisões do candidato eleito devem ser executadas e alinhadas com o interesse do público mais vulnerável, daquele que precisa da força do aparelho de estado para se proteger e obter a garantia da justiça social e a inclusão.
Para os derrotados, da mesma forma, é preciso reconhecer seus erros e acertos e não transferir ao eleitor o ônus de sua derrota. Saber perder é para os sábios, que aprendem com seus próprios erros. Sabemos que é um momento difícil, amargo. Mas é exatamente isso que nos fortalece para o próximo embate. Não estamos mortos, apenas feridos, pois não há derrota absoluta.
A derrota eleitoral é também uma oportunidade de reflexão e aprendizado. É importante analisar os motivos da derrota, buscando identificar os pontos fracos da campanha e repensar as estratégias para o futuro. Sim, sempre há um futuro, que poderá ser mais fácil ou mais difícil, porque nada é definitivo.
E o mais importante, a liderança e o apoio conquistado exige um outro tipo de trabalho, agora não mais eleitoral, mas de ações concretas com aqueles que tu te comprometes a liderar. Tu continuas exercendo influência na sociedade por meio de ações sociais, participação em debates e mobilização da comunidade e principalmente, atuando com aqueles que conquistou ao longo do processo eleitoral. É assim que podemos fortalecer a democracia, por meio de ações objetivas que promovam o debate político permanente, a participação cidadã e a defesa dos direitos humanos.
Para a população a eleição é apenas o primeiro passo. A democracia se consolida com a participação ativa da população na vida política do país, desde o local de trabalho e da cidade. No pós-eleitoral, a sociedade tem um papel fundamental a desempenhar, cobrando dos eleitos o cumprimento de suas promessas e atuando como fiscal da gestão pública. É a prática que educa e não as palavras. Acompanhar de perto as ações do governo eleito, fiscalizando o uso dos recursos públicos e cobrando resultados nas áreas de interesse social é a melhor forma de educar seus filhos.
A participação política é muito mais amplo do que votar. O voto é somente um instrumento muito antigo quando não há concenso. O diálogo, o engajamento em movimentos sociais, organizações da sociedade civil e ações solidárias e de âmbito legal são formas de influenciar as decisões políticas e defender os seus interesses.
Na democracia não há lugar para a mesmice, para o preconceito ou intolerância. Não basta expressar sua opinião nas redes sociais, o que muda o mundo são as práticas de cada cidadão. Afinal, nós sabemos que ninguém está absolutamente errado ou certo. Ouvir o outro é coisa de gente sábia. Só o medíocre se acha dono da verdade. O pós-eleitoral exige diálogo e respeito entre os diferentes grupos sociais. São as pontes que construímos que promovem o entendimento entre as diferentes visões políticas. Isso é educação política onde a opinião própria com argumentos sólidos podem mudar a visão do outro.
O Brasil enfrenta desafios complexos, como desigualdade social, crise econômica, violência e corrupção. O pós-eleitoral exige união de esforços para superar esses obstáculos e construir um futuro mais justo e próspero para todos.
A corrupção é um dos principais entraves ao desenvolvimento do país. A população deve cobrar dos governantes ações eficazes para combater a corrupção, fortalecer as instituições e garantir a justiça social. E ao mesmo tempo, a prática de cada cidadão precisa ser tão ética e justa quanto àquela que espera de seus líderes. Devemos fazer aos outros aquilo que desejamos a nós mesmos. Da mesma forma contra a desigualdade social é uma necessidade, só assim, com políticas públicas que promovam a inclusão social, garantimos acesso à educação, saúde, trabalho e moradia digna para todos. Também é fundamental o nosso compromisso com a proteção do meio ambiente e fiscalizar as ações efetivas dos nossos líderes em cada cidade. Esta também uma tarefa de todos.
O pós-eleitoral é um momento crucial para o Brasil. A responsabilidade de construir um futuro melhor recai sobre os candidatos eleitos, os partidos políticos e, principalmente, sobre a população. A participação cidadã, o diálogo, a união de esforços e a busca por soluções para os desafios do país são elementos essenciais para a consolidação da democracia e o desenvolvimento do Brasil.
A Revolução Social em Curso: Reflexões sobre Diversidade e Inclusão
José Augusto Zaniratti - 30/09/2024
Talvez não tenhamos percebido toda a dimensão da revolução social que estamos vivendo. Estamos no olho do furacão e, por isso, não compreendemos a profundidade da transformação que estamos inseridos, seja do ponto de vista da diversidade afetiva ou da luta pela inclusão em todos os seus aspectos. Refletir sobre isso nos ajuda a entender em que tempos vivemos e a nossa tarefa neste contexto. Este é um assunto que envolve o processo de construção de uma nova ideologia emergente.
E tudo isso fica ainda mais importante no momento que estamos escolhendo Prefeitos e Vereadores, responsáveis por criar e implementar políticas públicas. Estas possíveis politicas podem ajudar na transformação que estamos vivendo ou impedir os avanços necessários.
A revolução social que estamos testemunhando é multifacetada e se manifesta em diversas esferas da vida cotidiana. Desde a luta pelos direitos LGBTQIAP+ até as reivindicações por igualdade racial, de gênero e da necessidade de inclusão social e na escola, das pessoas com deficiência. A sociedade está passando por uma transformação que desafia normas e valores estabelecidos. Como observa o filósofo e sociólogo Zygmunt Bauman, "a modernidade líquida nos deixa em constante estado de busca e incerteza, onde as identidades se tornam fluidas e dinâmicas" (Bauman, 2000). Essa fluidez é característica de um mundo em que as categorias identitárias tradicionais estão sendo reavaliadas e ressignificadas.
A ideia de que estamos no "olho do furacão" sugere uma situação de grande turbulência e mudança. A filósofa Hannah Arendt fala sobre como "o novo é sempre ameaçador, pois nos força a reconsiderar nossas premissas mais básicas" (Arendt, 1958). Essa reavaliação é essencial para entendermos a nova ideologia que está emergindo, que desafia as hierarquias sociais e busca uma maior inclusão.
A diversidade afetiva é um aspecto central dessa revolução. O conceito de amor e afeto está se expandindo para incluir uma gama mais ampla de experiências e relacionamentos. Judith Butler, em seu trabalho sobre gênero e sexualidade, argumenta que "a norma do que é considerado 'normal' em termos de sexualidade e relacionamentos é, na verdade, uma construção social que pode e deve ser questionada" (Butler, 1990). Essa perspectiva nos convida a repensar não apenas as categorias de identidade, mas também as dinâmicas de poder que moldam nossas interações sociais.
Até mesmo o conceito de família já mudou. Para muitas políticas públicas estão direcionadas para as chamadas “Mães Solo”, casais de homens e de mulheres constituem famílias com filhos adotivos ou não. Mais um elemento que confirma que os relacionamentos e a sexualidade são, de fato, uma construção social.
A luta pela inclusão é outra faceta vital dessa transformação. A filósofa bell hooks destaca que "a verdadeira inclusão não é apenas uma questão de diversidade, mas envolve a criação de espaços onde todos possam ser ouvidos e respeitados" (hooks, 1994). Essa inclusão vai além da mera representação; trata-se de garantir que todas as vozes, especialmente aquelas que historicamente foram marginalizadas, tenham um lugar na conversa, nas escolas, na universidade, na produção.
É assim que se dá a construção de uma nova ideologia, composta por novos valores que, confirmam ou não, antigos princípios. A construção de uma nova ideologia emergente é uma tarefa coletiva que requer reflexão e ação. O pensador Michel Foucault nos lembra que "as relações de poder estão presentes em todos os aspectos da vida social e que a resistência a essas relações é uma parte fundamental da luta por justiça" (Foucault, 1978). Essa resistência é essencial para a formação de uma nova ideologia que não apenas reconhece a diversidade e a inclusão, mas também as valorizam.
A intersecção entre diferentes lutas sociais, como o feminismo, o antirracismo, a inclusão das pessoas com necessidades especiais e os direitos LGBTQIA+, é um exemplo de como estamos começando a ver um entendimento mais holístico das questões de inclusão. A socióloga Kimberlé Crenshaw introduziu o conceito de interseccionalidade, argumentando que "as experiências de opressão não podem ser entendidas isoladamente, pois se sobrepõem e interagem de maneiras complexas" (Crenshaw, 1989). Esse reconhecimento da complexidade da experiência humana é fundamental para a construção de uma nova ideologia que seja verdadeiramente inclusiva.
Refletir sobre a revolução social e suas implicações é uma tarefa que todos devemos abraçar. O filósofo Karl Popper enfatiza a importância da crítica na busca pela verdade, afirmando que "um verdadeiro conhecimento só pode ser alcançado através da crítica e da discussão" (Popper, 1959). Essa abordagem crítica é essencial para que possamos entender melhor o contexto em que vivemos e as transformações que estão ocorrendo.
Além disso, a reflexão crítica nos permite questionar nossas próprias crenças e preconceitos. O ativista e filósofo Paulo Freire nos ensina que "a educação é um ato de amor, e amar implica em um compromisso com a liberdade" (Freire, 1996). Esse compromisso com a liberdade deve se estender a todos os aspectos da vida social, incluindo a luta pela inclusão e a valorização da diversidade.
Em tempos eleitorais, a responsabilidade coletiva se torna ainda mais evidente. Como cidadãos, temos a tarefa de não apenas compreender as mudanças, mas também de participar ativamente delas. A escritora Arundhati Roy afirma que "não podemos nos dar ao luxo de ser indiferentes; a indiferença é uma forma de complicidade" (Roy, 2004). Essa ideia nos convoca a agir, a nos envolver e a lutar por um mundo mais justo e inclusivo.
Lutar por um mundo mais justo, implica em buscar coerência. Não é possível ter um discurso inclusivo e de respeito à diversidade e eleger prefeitos e vereadores com práticas de intolerância e preconceituosas, só porque os candidatos te deram emprego, ou são amigos ou parentes. Isso é uma imensa contradição. O filósofo Emmanuel Levinas argumenta que "o outro é o meu infinito; é através do outro que eu me descubro" (Levinas, 1969). Essa relação com o outro é fundamental para a construção de uma sociedade mais empática e solidária, mais ainda, é nas ações, como nas opções políticas eleitorais, que demonstramos nossa coerência e compromisso com aquilo que realmente acreditamos e falamos.
Estamos, de fato, no olho do furacão de uma revolução social que desafia nossas percepções e nos convoca à ação, de mostrar coerência também na política. Como indivíduos e membros da sociedade, temos a tarefa de não apenas compreender essas transformações, mas também de nos envolver ativamente na construção de um futuro mais justo, do contrário, estaremos apostando nas trevas, que virão nos assombrar.
Derrota ou Vitória: Lados da Mesma Moeda
José Augusto Zaniratti - 23/09/2024
Viver é uma experiência rica e multifacetada, marcada por uma constante interação com o mundo ao nosso redor. A cada segundo, somos bombardeados por novas informações, desafios e oportunidades. Nesse cenário, aprender se torna uma ação essencial, um processo contínuo que nos molda e define. O aprendizado não se limita às vitórias; ele é igualmente encontrado nas derrotas, nas lições que cada experiência nos proporciona. Refletir sobre nossas experiências, tanto as boas quanto as ruins, é fundamental para nosso crescimento pessoal e profissional.
Já pensou em quantos momentos sentiu a dor da derrota ou a euforia da vitória? A vida é, por natureza, uma dança entre erros e acertos, que se materializa em derrotas e vitórias. Ser derrotado ou vencer são lados da mesma moeda, a diferença está nos erros e acertos que cometemos. Cada passo que damos pode nos levar a um novo entendimento ou a uma nova experiência. Quando falhamos, muitas vezes somos tentados a nos deixar levar pela tristeza, a pensar que a derrota é o fim da jornada. No entanto, essa visão limitada ignora um aspecto crucial: a derrota é uma oportunidade de aprendizado. É, de fato, um dos melhores professores que podemos ter.
Como disse o filósofo francês Albert Camus: "A verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo ao presente." Essa citação nos lembra que cada momento, incluindo nossas falhas, deve ser valorizado como uma oportunidade de aprender e crescer.
Saiba que não há derrota absoluta e nem vitória definitiva. A euforia que sentimos em um momento de vitória pode ser tão intensa que nos esquecemos de analisar o que realmente levou ao sucesso. É comum que, após uma conquista, deixemos de lado a reflexão crítica e nos contentamos com a celebração. Contudo, entender os elementos que contribuíram para nossa vitória é essencial para que possamos replicar esse sucesso no futuro.
Neste momento eleitoral, há milhares de candidatos espalhados pelas 5.570 cidades buscando vitória e a ansiedade pode cegá-los para os equívocos de campanha eleitoral, seja pelo tipo de ação desenvolvida, pelo discurso mal colocado, pelo material errado ou insuficiente ou até pela decisão de filiação partidária. Oportunidades para errar e acertar nunca faltam.
A reflexão é a chave que abre a porta do aprendizado. Sem ela, corremos o risco de repetir os mesmos erros ou de não conseguirmos aproveitar ao máximo as oportunidades que se apresentam. A capacidade de refletir sobre nossas experiências nos permite identificar padrões, entender o que funcionou e o que não funcionou, e ajustar nossa abordagem conforme necessário.
Refletir sobre uma derrota não significa se prender à dor ou ao arrependimento. Trata-se de olhar para a situação de maneira objetiva, analisando os fatores que levaram ao resultado. Perguntas como "O que eu poderia ter feito de diferente?" ou "Quais foram as circunstâncias que influenciaram esse resultado?" são essenciais para esse processo. A reflexão nos ajuda a transformar a tristeza em aprendizado e a dor em crescimento.
O sociólogo Zygmunt Bauman enfatiza a importância da reflexão em suas obras, afirmando que "a vida é um caminho de escolhas, e cada escolha traz consigo a responsabilidade por suas consequências." Essa responsabilidade é intensificada quando nos dedicamos a refletir sobre nossos erros e acertos. Assim é em um processo eleitoral.
As emoções desempenham um papel fundamental em nossa experiência de aprendizado. Tanto a tristeza quanto a euforia são respostas naturais às nossas vitórias e derrotas. No entanto, é crucial não deixar que essas emoções ofusquem nossa capacidade de aprender.
Após uma derrota, a tristeza pode ser avassaladora. É importante reconhecer e validar esses sentimentos, mas também é essencial não permitir que eles nos paralisem. A dor da derrota pode ser um impulso poderoso para a mudança, se conseguirmos canalizá-la de maneira produtiva. Aprender a lidar com a tristeza e a transformá-la em motivação é uma habilidade valiosa.
Da mesma forma, a euforia da vitória pode nos levar a uma sensação de complacência. É tentador descansar sobre os louros do sucesso e acreditar que já temos todas as respostas. No entanto, essa atitude pode nos impedir de evoluir. A humildade para continuar aprendendo, mesmo após conquistas, é uma característica de pessoas verdadeiramente bem-sucedidas. Como disse o filósofo grego Sócrates: "Uma vida sem exame não vale a pena ser vivida." Essa máxima nos lembra da importância de questionar nossas emoções e experiências.
Viver é um processo de aprendizado contínuo. Cada experiência, seja ela positiva ou negativa, traz consigo lições valiosas. No entanto, é preciso estar aberto a essas lições, disposto a absorver o conhecimento que elas oferecem. A curiosidade é uma aliada poderosa nesse processo. Aqueles que abordam a vida com uma mentalidade curiosa estão mais propensos a buscar o entendimento das situações que enfrentam.
Além disso, o aprendizado não deve ser visto apenas como um processo individual. É fundamental reconhecer que aprendemos com os outros. Nossas interações sociais, sejam elas familiares, profissionais ou de amizade, nos proporcionam uma infinidade de perspectivas e ensinamentos. Compartilhar experiências e ouvir as histórias dos outros enriquece nosso próprio entendimento e nos ajuda a ver as situações sob diferentes ângulos.
O sociólogo Pierre Bourdieu nos lembra que "o conhecimento é um dos principais elementos que estruturam as relações sociais." Essa afirmação nos mostra que aprender com os outros não é apenas enriquecedor, mas também fundamental para nossa integração social e desenvolvimento pessoal e mais, é uma oportunidade de contribuir com o aprendizado de muitos e legado para a humanidade. Tudo depende do que fazemos e do que aprendemos.
Aprender a lidar com erros e acertos também está intrinsecamente ligado à construção da resiliência. A resiliência é a capacidade de se recuperar de dificuldades e adversidades, e ela é fundamental para o crescimento pessoal. Quando somos capazes de enfrentar nossos fracassos e aprender com eles, tornamo-nos mais fortes e mais preparados para os desafios futuros.
A resiliência não é uma qualidade inata; ela pode ser desenvolvida ao longo do tempo. Cada vez que enfrentamos uma dificuldade e a superamos, estamos construindo a nossa capacidade de resistir e de nos adaptar. Essa habilidade nos permite não apenas lidar com as derrotas, mas também abraçar as vitórias com gratidão e humildade.
O filósofo Friedrich Nietzsche nos oferece uma perspectiva poderosa sobre a resiliência, afirmando: "O que não me mata, me fortalece." Essa citação encapsula a essência do aprendizado através da adversidade, ressaltando que cada desafio superado contribui para nosso fortalecimento pessoal.
O autoconhecimento é outro componente crucial na jornada de aprendizado. Conhecer a si mesmo, suas emoções, pontos fortes e fracos é fundamental para refletir de maneira eficaz sobre as experiências vividas. O autoconhecimento nos permite ser mais objetivos em nossa análise, evitando que nos deixemos levar por sentimentos momentâneos.
Praticar a autoanálise, seja através da escrita, da meditação ou de conversas com pessoas de confiança, nos ajuda a entender melhor nossas reações e a identificar áreas onde podemos melhorar. Esse processo de autoconhecimento é, em última análise, um investimento em nossa capacidade de aprender com a vida.
O psicólogo Carl Jung enfatiza a importância do autoconhecimento ao afirmar que "quem olha para fora sonha, quem olha para dentro acorda." Essa ideia nos convida a explorar nosso interior para encontrar as respostas e lições que precisamos para crescer e evoluir.
Viver é, sem dúvida, uma aventura de aprendizado constante. Cada erro e cada acerto trazem consigo a oportunidade de reflexão e crescimento, mesmo em um processo eleitoral, há lições fundamentais a serem compreendidas e apreendidas.
A tristeza diante da derrota e a euforia da vitória são emoções válidas, mas não devem ser o nosso único foco. Compreender as razões que nos levaram a esses resultados é essencial para a construção de um futuro mais consciente e bem-sucedido. É isso que nos faz evoluir como indivíduos, como cidadão, como sociedade. É isso que pode produzir um futuro melhor, do contrário serão as trevas o nosso destino.
A Cidade Que Eu Quero
José Augusto Zaniratti - 16/09/2024
O ano de 2024 se aproxima do seu ápice, e com ele, a efervescência das eleições. Faltam menos de vinte dias para decidires que cidade tu desejas. Em cada canto do país, de Erechim-RS aos demais 5.569 municípios, o debate político se intensifica, carregando consigo a frustração e a descrença de muitos. A sensação de desencanto com os políticos e a política é palpável, variando entre a desilusão e um sentimento de profundo ódio. Mas será que essa sensação de desamparo é realmente justificada? Ou será que, em meio ao turbilhão de emoções, perdemos de vista o nosso próprio papel nesse jogo complexo que é a democracia?
É preciso ter em mente que a política, por si só, não é um ente autônomo. Ela não pensa, não tem vontades próprias, não é um ser que possui livre arbítrio. A política é, na verdade, um reflexo daquilo que nós, como sociedade, somos. "A política é a expressão daquilo que fazemos, e não o contrário." (Hannah Arendt, filósofa política). Ela é a arena onde se debatem e se confrontam os interesses, sejam eles individuais ou coletivos. E quem são os atores nesse palco? Nós, os cidadãos, com nossas decisões, ações e omissões.
A política, portanto, é um espelho da nossa própria prática cotidiana. Se ela se torna um campo de batalha, repleto de desconfianças e decepções, é porque nós, como sociedade, permitimos que isso aconteça. "A política não é um jogo de soma zero, onde o ganho de um é a perda do outro. A política é um processo de construção coletiva, onde o bem comum deve ser o objetivo final." (Aristóteles, filósofo grego).
Criminalizar a política, atribuindo a ela a culpa por todos os males da sociedade, é uma prática desinteligente e, acima de tudo, irresponsável. "A política não é um problema, mas uma solução. É através da política que podemos construir uma sociedade mais justa e igualitária." (John Rawls, filósofo político).
É preciso lembrar que nenhum governante, seja ele presidente, senador, deputado, prefeito ou vereador, chega ao poder sem o voto popular. Se eles erram, se cometem ilegalidades, a responsabilidade é compartilhada. "O povo é soberano, e a democracia é o regime que garante a soberania popular." (Jean-Jacques Rousseau, filósofo iluminista).
É fácil, e até mesmo tentador, generalizar e dizer que "todos os políticos são corruptos". No entanto, essa generalização é tão absurda quanto acreditar em Papai Noel ou na história do ovo de Páscoa. "A generalização é um atalho para o preconceito, e o preconceito é um inimigo da justiça e da democracia." (Martin Luther King Jr., ativista pelos direitos civis).
A verdade é que, em qualquer atividade humana, erros, decepções, corrupção e oportunismo podem acontecer. "A falibilidade humana é uma constante, mas não podemos nos deixar paralisar por ela. Precisamos buscar a perfeição, mesmo sabendo que ela é inatingível." (Immanuel Kant, filósofo alemão).
A pergunta crucial, então, não é se os políticos são bons ou ruins, mas sim se nós, como cidadãos, escolhemos bem nossos representantes. Se a resposta for "sim, escolhi corretamente, mas fui traído por quem escolhi", é preciso analisar com cuidado o que aconteceu. "A responsabilidade pela escolha dos nossos líderes é nossa, e não podemos nos esquivar dela." (Mahatma Gandhi, líder pacifista).
Talvez a escolha tenha sido feita sem critérios adequados, influenciada por opiniões alheias, de gente sem caráter ou, principalmente, por falta de conhecimento sobre o candidato e suas propostas. "A ignorância é a maior inimiga da democracia. É preciso se informar, participar do debate político e votar com consciência." (Nelson Mandela, líder antiapartheid).
Aprender com os erros é fundamental para que possamos construir uma sociedade mais justa e democrática. "O passado serve como um guia para o futuro. É preciso aprender com os erros para que não os repitamos." (George Santayana, filósofo americano).
Se a resposta à pergunta sobre a escolha dos políticos for "por isso não votarei mais", é preciso refletir sobre as consequências dessa decisão. Abdicar do voto é abrir mão do direito de participar da construção da cidade em que se vive. "O voto é a arma mais poderosa que o cidadão possui. É através do voto que podemos moldar o futuro da nossa sociedade." (Abraham Lincoln, presidente dos Estados Unidos).
Ao não votar, estamos delegando a outros o poder de decidir como será a vida na nossa cidade. "A democracia não é um presente, mas uma conquista. É preciso lutar por ela, defender seus princípios e participar ativamente da vida política." (Simone de Beauvoir, filósofa e escritora).
A cidade é o espaço onde a vida acontece, onde a cidadania se manifesta. É nas ruas, nas escolas, nos hospitais, nos espaços públicos que a nossa história se constrói. "A cidade é um organismo vivo, em constante transformação. Cabe a nós, cidadãos, garantir que essa transformação seja justa e sustentável." (Le Corbusier, arquiteto).
Ao não votar, ao não se engajar na política, estamos abdicando do nosso papel de cidadãos e, consequentemente, da possibilidade de construir uma cidade que reflita os nossos valores e anseios. "A democracia é um sistema frágil, que precisa ser cuidado e nutrido por todos. É preciso participar, se engajar e lutar por uma sociedade mais justa e igualitária." (Martin Luther King Jr., ativista pelos direitos civis).
A cidade que queremos é a cidade que nós, como cidadãos, construímos. É preciso ter consciência do nosso papel, participar do debate político, votar com responsabilidade e lutar por uma sociedade mais justa e democrática. "A esperança é a última que morre, e a fé na democracia é a única que pode nos levar a um futuro melhor." (Nelson Mandela, líder antiapartheid).
É na cidade que tudo acontece, tua vida diariamente acontece dentro de tua casa, no trajeto para o trabalho, nas escolas de teus filhos, nas opções de lazer, nas condições de vida que a estrutura social e dos equipamentos públicos de educação, saúde, de circulação, de tecnologia e desenvolvimento de serviços, ofertas de empregos. A cidadania acontece na cidade e ao não votar ou não dar importância à escolha de nossos dirigentes, tu abdica de ser um cidadão e assume, incontestavelmente, viver nas trevas.
Pense nisto!
A Disputa Pela Hegemonia - Futuro Incerto
José Augusto Zaniratti - 09/09/2024
A disputa política no Brasil, frequentemente simplificada como uma polarização entre PT e PL, ou mesmo entre Lula e Bolsonaro, transcende essa superficialidade. A luta pela hegemonia, que se materializa nas eleições para o controle do Estado em seus diferentes níveis, é apenas a ponta do iceberg. Essa disputa se estende para a sociedade civil, moldando valores, costumes e, consequentemente, o futuro do país.
Entre 1989 e 2013 grande parte da população assumiu e defendeu valores como a democracia, a diversidade, o resgate da dívida histórica com a população negra e o combate contra todo tipo de violência e preconceito. É o período de hegemonia do Projeto Democrático e Popular, forjado desde o período da luta contra a ditadura militar.
A partir de 2013 ressurge o ideário conservador autoritário, saudoso da tortura e da repressão. Isso ocorreu porque diferentes segmentos da elite foram desalojados das benesses que, por séculos, os mantinham no comando, enriquecendo, independentemente dos governos que se alternavam. Então, por dentro do parlamento, criam-se as condições para aglutinar diferentes partidos e discursos que seduziram e mobilizaram parte da população que passou a acreditar e reproduzir desinformação. Cresceram as bancadas à direita apostando em todo o tipo de mecanismo antidemocrático e, através das mídias sociais, ressurge a militância da direita autoritária que se sentiam excluídas das políticas públicas apoiadas por segmentos econômicos que perderam recursos orçamentários do estado. O parlamento, constituído cada vez mais com perfil bastante conservador, articulou-se através de medidas pouco republicanas, pulou de 4% para 20 % dos recursos orçamentários do país ampliando o protagonismo do parlamento com distribuição de maior volume de emendas para cidades, suas bases eleitorais. Para dar um caráter ideológico, a extrema direita no Brasil absorveu e internacionalizou o debate mundial de direita x esquerda, como se não fosse extremista e nem visasse o enriquecimento através de crimes.
Conhecemos o resultado deste processo com a eleição de Bolsonaro e com a manifestação em São Paulo, no 7 de setembro de 2024, uma pequena amostra da disputa em andamento.
Segundo Gramsci, “todo o complexo de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não só justifica e mantém o seu domínio, mas consegue obter o consenso ativo dos governados". Então, no seio da sociedade é que se disputa a hegemonia que se transforma em consenso ou maioria e, a partir daí, se busca o controle dos aparelhos de estado pelo processo eleitoral ou por fora dele.
O que vemos nestas disputas são os conceitos de estado, de políticas públicas e pautas de costumes. Entre 2019 a 2022, no Planalto, no Executivo e no Parlamento, sobressai, por exemplo, a visão social machista, a misoginia, homofobia, a defesa hipócrita da família de homem e de mulher como conceito bíblico; apologia das armas como roupagem de defesa individual, mas que é veiculada como objeto fálico de destruição; frases que envolviam pênis e ânus. Comportamento que nunca foi derrotado no Brasil, se modernizou em uma roupagem religiosa e tradicional, absorveu pautas e aliados internacionais e se vinculou à elite mais tradicional, herdeira das elites agrárias da época do império.
A disputa pela hegemonia a que hoje assistimos é financiada por determinados segmentos econômicos desalojados dos benefícios estatais e que buscam captar os recursos públicos para financiar a acumulação do capital. A privatização de estatais, em grande parte, é o discurso de que só o universo privado é competente para gerir empresas. Em última análise, estes setores tradicionais buscam a privatização do lucro e para o Estado ficam os compromissos sociais e ausência de estrutura para fiscalização ambiental, por exemplo, e assim socializando as despesas, mas sem aumento de impostos. O parlamento nacional, através das emendas dirigidas aos municípios, sem controle, não só garantem os mandatos como, muito provavelmente, beneficiam as empresas locais “amigas” dos “reis” locais. Desta forma retroalimentam as bancas BBBs - Boi+Bala+Bíblia.
Se aplicarmos esta situação para as disputas que estão acontecendo no processo eleitoral nas mais de 5.000 cidades brasileiras, vamos observar que o que está em jogo, não são apenas mandatos, mas a busca de força política para a disputa do aparelho de Estado em 2026.
A luta pela hegemonia é uma batalha constante. Cabe à sociedade civil estar vigilante, analisar criticamente os projetos políticos em disputa e defender os valores da democracia, da justiça social e da liberdade, do contrário, indubitavelmente, nos aproximarmos do estado da barbárie e viveremos nas trevas.
O Projeto Político: Uma Construção Social
José Augusto Zaniratti - 02/09/2024
Em todas as esferas da sociedade, uma disputa constante pelo poder ocorre entre indivíduos, organizações, instituições e até mesmo dentro de famílias.
Essa luta pelo poder pode ser consolidada pela hegemonia ou supremacia. Pela hegemonia, segundo Antonio Gramsci, através da capacidade de um determinado segmento social de comandar outros grupos pelos aspectos culturais e persuasão. A hegemonia é um consenso alcançado através da difusão de ideias, valores e crenças que beneficiam os grupos dominantes, e que são apresentados como universais e naturais. Isso se dá de diferentes formas, geralmente através da mídia e da comunicação de massa, que podem difundir ideias e valores que beneficiam os grupos dominantes; da educação; da religião, que pode ser usada para justificar a ordem social existente e, através da política, que pode ser usada para impor a vontade dos grupos dominantes com maior número de representantes nas instâncias de poder.
Entretanto a disputa pode se dar através da supremacia, isto é, através da força e na coerção, em vez da persuasão e do consenso. A supremacia é exercida através da repressão, da censura e da violência, e é caracterizada pela falta de liberdade e pela opressão dos grupos subordinados. Ela pode ser exercida de várias maneiras, incluindo a força militar e policial, que pode ser usada para reprimir os movimentos de oposição e impor a ordem social existente; da censura e da repressão da liberdade de expressão, que pode ser usada para silenciar as vozes de oposição e impor a ideologia dominante; da manipulação econômica, que pode ser usada para controlar os meios de produção e impor a vontade dos grupos dominantes e também da criação de uma ideologia que justifique a supremacia, que pode ser usada para legitimar a opressão e a repressão.
O poder é um meio para alcançar objetivos e realizar mudanças, profundas e estruturais ou não, dependendo do projeto político hegemônico. De qualquer forma, é importante não encarar o poder como algo inerentemente bom ou ruim. Na verdade, todos buscam o poder para implementar suas ideias e visões de mundo, que são moldadas por suas experiências, crenças e valores e sua natureza depende de como é utilizado e para que fins.
Essa disputa dinâmica pelo poder vai constituindo os diferentes tipos de projetos políticos globais que se chocam e destes conflitos surgem alterações na sociedade, de acordo com os interesses contidos no projeto hegemônico em um momento histórico determinado. Mais ainda, é através destes conflitos que os projetos em questão se atualizam, se questionam, se aperfeiçoam e, portanto, se renovam para não serem superados.
É evidente que um projeto político global não está escrito num documento, não foi produzido por um ou vários autores determinados. É algo que pode ser desvendado a partir de uma análise sobre os movimentos de grupos e organizações no decorrer da história, pelos programas de organizações partidárias, sindicais, organismos populares, das práticas e ações das igrejas; através de discursos; de campanhas políticas e etc.
Enfim, ele é o ar que respiramos, ele está inscrito na prática social dos diversos sujeitos individuais e coletivos com identidade comum ou próxima. E exatamente por isto que é difícil caracterizá-lo com exatidão.
É importante lembrar que os projetos não aparecem puros, eles se misturam, fazem alianças internas e externas, diferentes blocos políticos com outros projetos graças às contradições e divisões internas.
Entendo que o Brasil teve sete Projetos Políticos perceptíveis:
De 1500 até 1822, estivemos absolutamente submetidos à Portugal, que implantou um modelo extrativista voltado para a exploração mineral e agrária. A economia colonial estava centrada na extração de recursos naturais, como o ouro e o açúcar, que eram enviados para Portugal. Esse modelo era sustentado por uma estrutura de poder que beneficiava a metrópole portuguesa e os poucos colonizadores privilegiados. As consequências desse projeto foram profundas, com a formação de uma sociedade altamente hierarquizada e desigual. A dependência econômica e política de Portugal moldou as bases da sociedade brasileira, estabelecendo um padrão que perduraria por muitos anos.
De 1822 até 1889, estivemos sob a dominação do projeto agrário-escravista que caracterizou-se pela manutenção de uma estrutura social rigidamente dividida entre a elite agrária e os escravizados. A economia continuou a ser baseada na agricultura, especialmente na produção de café e açúcar, que geravam grandes lucros para os proprietários de terras. A influência inglesa, que garantiu a independência do Brasil, também teve um papel significativo na formação desse projeto. O país ficou atrelado a interesses britânicos, que buscavam garantir acesso ao mercado brasileiro para seus produtos e investimentos.
De 1889 até 1929, A transição para a Primeira República trouxe uma nova configuração política, marcada pela alternância no poder entre as elites agrárias de São Paulo e Minas Gerais. O período, conhecido como a "Política do Café com Leite", foi caracterizado pela hegemonia de duas grandes oligarquias: os cafeicultores paulistas e os produtores de leite mineiros. A República Velha enfrentou diversos problemas, como a exclusão dos trabalhadores e a falta de reformas sociais. A elite continuou a dominar a política nacional, enquanto as camadas populares permaneciam marginalizadas e sem representação efetiva e com a abolição da escravidão tornou os escravos em miseráveis subalternos e sem empregos;
De 1929 até 1954, vem a segunda república com as elites excluídos do projeto político do Café com Leite, forjando uma ideologia populista e autoritária, de “colaboração de classe” entre patrões e trabalhadores na perspectiva de modernizar o país, diminuindo as fraudes eleitorais comuns no projeto anterior, ampliando a industrialização e a urbanização do país flertando com o nazifascismo no período da segunda grande guerra;
De 1954 até 1964, um projeto rápido se instalou no poder da segunda república desenvolvimentista, atrelando ainda mais o país às multinacionais, principalmente, automobilísticas. Mas paralelo a esse processo, um projeto populista mais à esquerda, foi hegemonizado a sociedade urbana e a partir dos anos 60 assume a presidência assustando a classe média com seus movimentos de distanciamento dos EUA e aproximação com a URSS na busca de capital para seu crescimento;
De 1964 até 1985, a classe média e a elite conservadora, agrária e industrial se aliam com medo do fantasma do comunismo e apostam num projeto político militar, já em alta na américa latina com apoio dos EUA. O projeto do medo se instaura na sociedade e lideranças são presas, torturadas, mortas ou exiladas;
De 1975 em diante inicia um processo de construção de um novo projeto político a partir das camadas urbanas excluídas, sindicalistas, de igreja fundamentadas na teologia da libertação (Concílio de Medellín e Puebla) e ex-combatentes da guerrilha urbana e rural. Nasce aí um projeto com grande capacidade de hegemonização das camadas médias, populares e intelectualidade a partir de conceitos mais à esquerda e de democracia radical. Ainda que derrotada em seu primeiro grande enfrentamento em 1989 já havia conquistado milhões de mentes e corações e triunfa em 2002 com a eleição para presidente de Lula.
Hoje vivemos sob a hegemonia deste projeto político, com valores e princípios absolutamente arraigados no seio da sociedade brasileira. No entanto, a camada desalojada do poder, ideologicamente comprometida com valores retrógrados mantém em disputa pela hegemonia. Hoje vivemos um momento de embate polarizado entre ambos projetos, por um lado o projeto político ainda hegemônico pelos princípios e valores tendo a democracia como base e por outro lado o projeto do retrocesso, com visão autoritária de poder e de costumes conservadores, flertando com as trevas. Mas isso é assunto para a próxima coluna.
O Projeto Político: Uma Construção Social
José Augusto Zaniratti - 26/08/2024
O que mais tenho ouvido é a expressão surrada: "Projeto Político". Todos querem que participemos de um projeto político e para isso, a campanha eleitoral, é o momento adequado para discutir isto. Nada mais legítimo e necessário. O termo "Projeto Político" é frequentemente utilizado publicamente, mas muitas vezes de forma superficial, como um jargão vazio. É crucial compreender seu significado para evitar interpretações equivocadas. Um projeto político representa uma proposta abrangente e estratégica para a organização e transformação da sociedade, com base em um conjunto de ideias, valores, princípios e objetivos que orientam a ação política. Ele define como a sociedade deve funcionar, quais os valores que devem prevalecer e quais os objetivos a serem perseguidos.
Projeto Político é um termo amplo que se refere a uma proposta abrangente e estratégica para organizar e transformar a sociedade. É um conjunto de ideias, valores, princípios e objetivos que orientam a ação política de indivíduos e grupos, visando a construção de um futuro diferente, desejado. Em outras palavras, um projeto político é um plano para a sociedade, um roteiro para o futuro. Ele define como a sociedade deve funcionar, quais os valores que devem prevalecer, quais as prioridades, os objetivos a serem perseguidos e a ideologia que embasa o projeto em questão.
Aqui não estou me referindo a um projeto político pessoal que envolve definições unicamente individuais, que envolvem decisões políticas pessoais. Em tela agora são os Projetos Políticos que são construídos a partir de ações coletivas ao longo do tempo que culminam em um projeto global para uma sociedade.
Normalmente partimos de um momento específico, como o fato que dá início à Segunda Grande Guerra ou a vitória da revolução Comunista da China, por exemplo. Podemos dar vários exemplos no Brasil, como suicídio de Getúlio Vargas em 24 de agosto de 1954 ou a vitória de Luis Inácio Lula da Silva em 2002. Mas estes fatos não revelam o Projeto Político e tão pouco são o seu início. Esse é um erro comum. A pergunta que devemos fazer é que fatos foram constitutivos de um conjunto de ideias e fatos moldaram o tecido social e econômico que resultou nas condições para que tais fatos ocorressem. Por exemplo, Hitler não surgiu de um passe de mágica. As condições sociais e econômicas forjaram Hitler, assim como toda a população da Alemanha para aceitarem conceitos, valores, princípios e uma nova ideologia que sustentou, como corretas, as ações criminosas de Hitler naquele período. E Hitler? Ele era a face visível do Projeto Político Nazi-Fascista vitorioso, que hegemonizou a Alemanha e parte do planeta. Um Projeto que encontra adeptos até hoje, inclusive no Brasil.
É importante ressaltar que não existe um projeto político "certo" ou "errado", pois é uma construção que, gradativamente, hegemoniza parte da população. É fundamental lembrar que a escolha de um projeto político é uma decisão individual e coletiva, influenciada por diversos fatores, incluindo a ideologia socialmente construída. Essa ideologia, moldada por influências históricas, sociais e culturais, absorve os interesses e as aspirações de cada pessoa e grupo social, impactando diretamente a percepção e a escolha de um projeto político.
Então, observemos alguns elementos que são comuns para qualquer projeto e que os qualificam como projetos históricos, que podem ou não ter sucesso ao hegemonizar a sociedade.
É importante destacar que um projeto político não se restringe a um único tema ou problema. Ele busca transformar a sociedade como um todo, abrangendo aspectos da economia, política, cultura, educação, saúde, justiça social e ambiental. Para tanto, ele se fundamenta em princípios e valores que embasam um discurso e justificam práticas e ações, visando a construção de uma sociedade ideal, guiada por uma visão de futuro. São ações que apontam para uma visão de futuro, para a construção de uma sociedade, um estado ideal a ser alcançado. A hegemonia de um projeto político se consolida gradualmente, a partir de valores e princípios socialmente elaborados por um ou mais segmentos da sociedade excluídos ou subjugados pelo projeto dominante. Portanto, não se trata apenas de um conjunto de ideias abstratas, mas uma proposta de ação política articulada e fundamentada, capaz de convencer, pelo menos, parte da população. Com base nos princípios e novos valores socialmente aceitos por segmentos sociais excluídos ou revoltados, são elaboradas estratégias e movimentos táticos para que pessoas identificadas com o projeto político em curso, assumam posições de poder e busquem atingir objetivos coerentes com o seu projeto. Entre estas pessoas algumas personificam, para o conjunto da sociedade, esta construção política-ideológica e assim passam a liderar. Por exemplo, na história do Brasil do século XX, Getúlio Vargas entre o fim da década de 20 até meados da década de 50; JK até meados da década 60; os militares até 1975 eLula, que a partir do fim dos anos 70, passa a disputar a hegemonia de um novo projeto contra diferentes personagens identificados com a ideologia de centro-direita como: Tancredo Neves; Sarney; Collor de Mello; Fernando Henrique Cardoso. A construção de um projeto é lenta e surge a partir e até, por dentro do projeto político hegemônico de um determinado período. Aos poucos, diferentes segmentos sociais passam a dar legitimidade e, eventualmente, garantem o sucesso de um projeto político.
Portanto, um projeto político é fruto do processo de elaboração de sujeitos individuais e coletivos, ao longo de um período histórico determinado. Possui elementos objetivos e subjetivos singulares. Por mais novo que seja, um projeto político contém uma "herança", as marcas culturais de um povo, suas limitações e virtudes, suas vitórias e sabedoria acumulada ao longo do tempo. Consciente ou inconscientemente estamos inseridos em um determinado "projeto político global" em elaboração socialmente. Somos parte desse projeto enquanto indivíduos, ou como membros de um coletivo que pode ser qualquer tipo organização da sociedade civil. De alguma forma nossa prática diária contribui para a construção de um determinado projeto, consequentemente, contra outro projeto. Quando distribuimos “fake news” ou criticamos aqueles que se inserem no grupo LGBTQIAP+; os negros, batuqueiros, por exemplo, ou quando combatemos estas práticas, mostramos nossa identidade com diferentes projetos em disputa no Brasil hoje.
Portanto, de uma forma ou de outra, somos responsáveis pela existência de projetos que nem sempre refletem integralmente nossos interesses e aspirações.
O próprio Livro Gênesis, da Bíblia, por exemplo, é uma tentativa de demonstrar que nada é imposição de algum ser extraplanetário, ou divino. Nossa sociedade é simplesmente a imagem e semelhança dos homens que a construíram.
O maior desafio é identificar o projeto em que estamos inseridos. Para evitar a hegemonia de projetos que não refletem nossos interesses e aspirações, é essencial que nos envolvamos de forma crítica e consciente na construção de um projeto político, discutindo e defendendo as ideias, valores e objetivos que consideramos importantes para a sociedade em que vivemos. Só assim podemos contribuir para a construção de um futuro mais justo e igualitário para todos e assim, nos afastarmos das trevas.
A Escola Necessária: Desafiando a Lógica Neoliberal
José Augusto Zaniratti - 19/08/2024
A educação, como campo de atuação e objeto de estudo, tem sido palco de intensos debates sobre seus objetivos, métodos e finalidades. Embora não seja especialista nesse tema, como professor e pela formação não acadêmica que obtive como ativista social, tenho opinião sobre o debate em curso sobre a política-pedagógica neoliberal.
É evidente que há exceções, por iniciativa de educadores fora da “caixa” tradicional, no entanto, são absolutamente minoritários e dependentes de boas práticas individuais. O fato é que ao longo dos tempos construímos uma escola conteudista, repressora, não criativa, do tipo bancário, segundo Paulo Freire, não inclusiva e com formação socialmente alienada. Isso resultou na reprodução de um modelo pedagógico absolutamente autoritário, repetidor de conhecimentos a serviço da ideologia dominante.
Este modelo, ao longo da história, foi se ajustando às necessidades do mercado internacional e ganhou nomes diferentes, mas sempre mantendo sua essência elitista, individualista, acrítica e mantendo o padrão necessário para o domínio da elite em cada país. Hoje a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), importante instituição internacional, tem desempenhado um papel central na difusão dessa perspectiva, defendendo o que denomina de "projeto personalista" como modelo ideal para a educação e assim, moldando as práticas educacionais em diversos países. Modelo de escola/pedagógico que desconsidera as necessidades individuais do educar e limita seu potencial de aprendizagem. A ênfase na avaliação quantitativa e no desempenho acadêmico, gera um ambiente, individualista, autoritário, de pressão e exclusão, prejudicando o desenvolvimento integral dos estudantes. Além disso, e mais importante ainda, desconsidera a desigualdade social e econômica a que eles estão submetidos, não tendo as mesmas condições de acesso e desenvolvimento educacional. Essa visão individualista da educação, como argumentam diversos autores (Bourdieu & Passeron, 1970; Freire, 2005), ignora as desigualdades sociais e as estruturas de poder que permeiam a sociedade. Ao priorizar a competitividade e a meritocracia, o “projeto personalista” tende a perpetuar as disparidades existentes, beneficiando os indivíduos que já detêm privilégios e marginalizando aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade. indefinido
Eis, então, o desafio a ser vencido, construir um modelo que não possa enfatizar a competição, a padronização e a quantificação dos resultados. Os educandos não são coisas, não são meros receptores de informações e desprovidos de necessidades e individualidade. Se considerarmos que a educação é libertadora, significa que há uma condição indefinida precisa reverter esse modelo, atendendo às necessidades e características de forma individualizada, potencializando as habilidades e conhecimentos do educando. No entanto, isso não quer dizer que esse modelo seja individualista.
Desenvolver o educar passa por valorizar a consciência crítica, a autonomia e a participação ativa dos alunos no processo de aprendizagem. O modelo pedagógico precisa apontar para a transformação dos indivíduos e da sociedade.
Neste debate é fundamental retomar a obra de Paulo Freire que desde a década de 80 do século passado, ilumina o caminho da educação necessária, afirmando que a "educação é um processo de libertação" [FREIRE 1997] e logicamente, o ato de libertar-se, pode ser de um indivíduo, de uma sociedade ou sistema, buscando algo melhor que, certamente, a humanidade não busca para si, algo desigual ou injusto. Essa visão se contrapõe à perspectiva neoliberal que tende a individualizar a educação, ignorando as questões sociais e as desigualdades existentes. Afirmando que "a educação é um ato político" [Cadernos de Ciência, Brasília, n. 24, p.21-22, jul./ago./set. 1991], Freire reconhece a natureza política da educação e, portanto, não é neutra e que está intimamente vinculada à estrutura de poder, podendo estar a serviço da dominação ou à prática de transformação social. Desde então fica nítida sua contraposição a qualquer modelo do passado e de futuro às perspectivas neoliberais que buscam despolitizar a educação, apresentando-a como um instrumento para o desenvolvimento individual e para a competitividade no mercado. Agora, todos nós sabemos e observamos recentemente no Brasil, uma tentativa de reafirmar a falsa ideia de que pode haver alguém sem ideologia, como se fosse neutro. Por isso é inimaginável conceber uma educação neutra, ela é composta por pessoas e que deve ter posição e agir criticamente sobre o que deve ser transformado. Isso é ter ideologia, necessariamente.
Freire reconhece o papel crucial da educação na transformação social, mas não a idealiza como solução mágica. Para Freire, a educação não é a solução universal para os problemas da humanidade, mas é um espaço de construção de pessoas socialmente críticas e estas sim, podem transformarem a sociedade. Por isso a educação é bem mais que uma ferramenta para o desenvolvimento econômico. Quem transforma é a humanidade. "Os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo." [ Pedagogia do oprimido. RJ, 1987.] Essa frase de Freire, extraída de sua obra "Pedagogia do Oprimido", mostra o processo dialógico e transformador, em que o conhecimento é construído coletivamente e não imposto de forma vertical. Ela se contrapõe à visão individualista e fragmentada da educação neoliberal, que coloca o aluno em competição com seus pares e o limita a um papel passivo de receptor de informações. É exatamente isso que é necessário para a lógica neoliberal que visa a formação de mão de obra comprometida para o mercado, sem levar em conta a formação de cidadãos críticos e conscientes. Quanto maior a passividade e a alienação do educar, melhor para a manutenção do indefinido , é a base de uma educação emancipadora, como dizia Freire.
A "escola necessária", representa uma alternativa transformadora à lógica neoliberal. Essa perspectiva, defendida por diversos educadores e movimentos sociais, coloca a justiça social e a emancipação humana como pilares centrais da educação, buscando:
- Superar as desigualdades sociais, priorizando o acesso à educação de qualidade para todos, independentemente de sua origem social, etnia, gênero ou condição física.
- Promover a participação democrática, incentivando a participação ativa dos alunos na construção do conhecimento, na tomada de decisões e na gestão da escola.
- Desenvolver a consciência crítica, estimulando o pensamento crítico, a autonomia intelectual e a capacidade de questionar as estruturas de poder que regem a sociedade.
- Construir uma educação para a cidadania, formando indivíduos capazes de exercer seus direitos e deveres de forma consciente e responsável, atuando como agentes de transformação social.
A educação e a escola são espaços fundamentais para transformar os indivíduos e a sociedade, mas não são os únicos instrumentos necessários para a construção de um futuro mais justo e igualitário.
A "escola necessária" representa um caminho promissor, mas exige uma ação conjunta de educadores, movimentos sociais e governos para superar as desigualdades e garantir o direito à educação de qualidade para todos. É preciso romper com a lógica neoliberal e construir uma educação que promova a justiça social, a participação democrática e o desenvolvimento da consciência crítica, para que a educação se torne, de fato, um instrumento de transformação social. Do contrário estaremos no rumo inverso de sairmos das trevas.
A ESCOLA NECESSÁRIA
José Augusto Zaniratti - 12/08/2024
A história da humanidade está repleta de exemplos, do quê e como, ser e fazer. Nosso orgulho e vaidade, que beiram o egoísmo absoluto, são tão fortes que não aprendemos com a nossa própria história, apenas porque não fomos nós, pessoalmente, que vivemos determinados fatos. Hoje, o formato das escolas e seu modelo pedagógico estão obsoletos há séculos, mas não aceitamos que outros já nos mostraram, com suas próprias histórias pessoais, a escola necessária. Estamos acomodados com a forma prisional das escolas, ou seja, um retângulo ou um quadrado, com pátio interno, uma porta de entrada e saída e segurança por todos os lados para vigiar os detentos, digo, o corpo discente. Pior, como afirmou Karl Marx em meados do século XIX, e atual em nossos dias, a escola é um instrumento de reprodução das desigualdades sociais e da ideologia dominante.
Acabamos construindo uma escola conteudista, repressora, não criativa, com um formato do tipo bancário, isto é, o professor vê o aluno como um banco, no qual deposita o conhecimento. Isso significa que o aluno é como um cofre vazio em que o professor acrescenta fórmulas, letras e conhecimento científico até "enriquecer" o aluno. Após "enriquecê-lo", ele será um reprodutor daquele conhecimento absorvido, como se uma esponja fosse. Tudo isso já foi escrito por Paulo Freire em seus inúmeros livros, mas parece que seus ensinamentos são invisíveis. E nós multiplicamos um modelo pedagógico absolutamente autoritário, capaz, no máximo, de ensinar a reproduzir conhecimentos que os computadores fazem muito melhor.
Estou errado? Será? Vejamos alguns exemplos. Havia uma criança que, por volta de 1854 que entrou na escola na cidade de Port Huron nos EUA. O nome dele era Thomas Edison. Após apenas três meses, ele foi expulso da escola por ser considerado "mentalmente deficiente". Entretanto, a mãe de Edison, Nancy, compreendeu a necessidade de uma educação personalizada e estimulante. Ela se transformou em uma educadora, fora de seu tempo, encorajou seu filho a explorar seus interesses, a ler vorazmente e a realizar experimentos, criando um ambiente propício à sua curiosidade e à sua criatividade. Uma educação informal, é verdade, mas focada no desenvolvimento individual e na liberdade de aprender, fez brotar uma cabeça brilhante, um dos maiores inventores da história. Sua trajetória, marcada por uma breve e conturbada experiência na educação formal e por uma educação informal rica e estimulante, nos coloca diante de um questionamento fundamental: qual a escola necessária para o século XXI?
A história da ciência, da arte, da música e da invenção é repleta de mentes brilhantes que desafiaram as normas da educação formal. Albert Einstein, na escola, era considerado um aluno lento e rebelde e com sua teoria da relatividade, mostrou que a escola quase nada ajudou, assim como outros grandes nomes também trilharam caminhos alternativos para alcançar o sucesso, como:
Michael Faraday é um exemplo clássico. Ele nasceu em uma família humilde e teve apenas uma educação formal básica em função das dificuldades financeiras da família. Por volta de 1815, aos 14 anos, trabalhando como encadernador, Faraday se interessou por ciência e realizou experimentos em seu tempo livre. Sua paixão e dedicação o levaram a se tornar um dos maiores cientistas do século XIX, com contribuições significativas para o estudo do eletromagnetismo.
Os irmãos Wright, Orville (1871) e Wilbur (1867), também desafiaram as normas da educação formal, que fora interrompida para ajudar no sustento da família. Eles não concluíram o ensino médio, mas sua paixão pela aviação os impulsionou a construir o primeiro avião bem-sucedido. Sua persistência e dedicação à experimentação os levaram a revolucionar o transporte e a mudar a história da humanidade.
Lewis Howard Latimer, um inventor afro-americano, enfrentou barreiras sociais e raciais, além da falta de acesso à educação formal. Ele aprendeu desenho mecânico enquanto servia na Marinha e se tornou um inventor e desenhista de patentes renomado. Latimer foi fundamental para o desenvolvimento da lâmpada incandescente de Thomas Edison, e sua contribuição para a eletrificação do mundo é inegável.
Embora não tenha frequentado escolas tradicionais, Alberto Santos Dumont era um estudioso autodidata e sua curiosidade e engenho o levaram a se tornar um dos maiores nomes da aviação. Ele não teve uma educação formal tradicional em escolas. Ele era um autodidata e sua paixão pela aviação o levou a se dedicar a experimentos e estudos por conta própria. Acabou sendo conhecido como o "Pai da Aviação", um inventor e pioneiro na aviação, e suas conquistas, entre elas o 14-Bis em 1906, com o primeiro voo público homologado de um aparelho mais pesado que o ar, revolucionaram a história da aviação mundial.
William Shakespeare, apesar de ser um dos maiores escritores de todos os tempos, não teve uma educação formal. Ele aprendeu a ler e escrever em casa e depois se dedicou ao teatro.
Srinivasa Ramanujan, matemático indiano autodidata, fez contribuições significativas para a teoria dos números, apesar de ter tido pouca educação formal. Ele aprendeu matemática sozinho e publicou seus trabalhos em revistas acadêmicas.
Mark Twain, famoso escritor americano, era um aluno problemático e foi expulso da escola aos 12 anos. Ele aprendeu a escrever sozinho e se tornou um dos maiores escritores da língua inglesa.
Walt Disney, um dos maiores nomes da indústria do entretenimento, deixou a escola aos 16 anos para trabalhar como artista. Ele desenvolveu sozinho as habilidades que o levaram ao sucesso e contribuiu com a humanidade.
David Bowie, lendário músico, nunca teve uma educação formal em música. Ele aprendeu a tocar música sozinho e se tornou um dos artistas mais influentes do século XX.
Jimi Hendrix, um dos maiores guitarristas de todos os tempos, não teve uma educação formal em música. Ele aprendeu a tocar sozinho e se tornou um ícone do rock and roll.
Kurt Cobain, líder do Nirvana, uma das bandas mais influentes do grunge, era considerado um aluno problemático e deixou a escola aos 17 anos. Ele aprendeu a tocar música sozinho e se tornou um ícone da música alternativa.
John Lennon, um dos fundadores dos Beatles, uma das bandas mais populares de todos os tempos, era considerado um aluno problemático e deixou a escola aos 15 anos. Ele aprendeu a tocar música sozinho e se tornou um dos compositores mais influentes do século XX.
Bob Dylan, um dos maiores artistas da música folk e rock, deixou a escola aos 16 anos para se dedicar à música. Ele também aprendeu a tocar música sozinho.
Frank Zappa, deixou a escola aos 15 anos para se dedicar à música e também aprendeu a tocar música sozinho. Tornou-se músico experimental e compositor americano, conhecido por sua música inovadora e controversa.
A escola precisa ser completamente diferente, na arquitetura, nas relações interpessoais, no modelo pedagógico e absolutamente inclusiva, seja física ou mentalmente. Ela é, ainda, um espaço engessado, com currículos padronizados, métodos de ensino repetitivos e pouco espaço para a individualidade e a autonomia dos educadores e alunos. Urge uma escola diferente que seja flexível, integrada, que valorize a criatividade, a autonomia e a aprendizagem individualizada. Ela precisa incentivar a curiosidade e a paixão pelo conhecimento, uma experiência prazerosa e estimulante. Cada um precisa ser protagonista de sua própria aprendizagem, com liberdade para explorar seus interesses e desenvolver suas habilidades. A criatividade e a inovação deveriam ser diretrizes básicas para que possamos aprimorar soluções para as transformações que estão ocorrendo na natureza e na produção com tecnologias digitais, mas com pensamento crítico e capacidade de resolução de problemas. A escola não pode mais impor, mas oferecer uma educação personalizada e individualizada, respeitando as necessidades e os ritmos de aprendizagem de cada aluno.
Leonardo da Vinci (1452), por exemplo, não frequentou escolas formais no sentido tradicional que conhecemos hoje. Havia apenas educação formal restrita a poucos e geralmente focada em religião e latim. Leonardo, aos 14 anos, começou sua educação artística como aprendiz de Andrea del Verrocchio, um renomado artista florentino. Durante 5 anos, desenvolveu pintura, escultura, metalurgia e outras artes e se transformou em um gênio como artista e inventor. O que dizer de Sócrates, Aristóteles, Platão e tantos outros? A história nos mostra que a educação formal pode ser um obstáculo e não um facilitador.
Ao longo dos séculos, quantas cabeças brilhantes perdemos? Perdemos porque as escolas não são espaços de criação, locais de aprendizagem de como aprender, espaços de desenvolvimento de habilidades natas e inteligência emocional. Todos os dias, quando aquele sinal vibra para início das aulas, os bons educadores perceberão que falta mais um aluno em sala de aula, talvez porque as aulas sejam desinteressantes e não considerem o conhecimento que eles já possuem. Hoje, nossas escolas, no geral, não são inclusivas porque não respeitam as diferenças, as capacidades individuais e tampouco estão preparadas para ser apoio aos alunos. É lamentável, mas para quem acredita na educação como a nossa salvação, saiba que, do ponto de vista da capacidade educativa, ainda estamos bem perto das Trevas.
A VERDADE E O CAMINHO
José Augusto Zaniratti - 05/08/2024
Este texto é dedicado à Iasmin Ricaldes.
A intolerância, a violência contra os diferentes e à diversidade tem sua origem na ignorância ou na incapacidade de reconhecer nossas limitações morais. Aquele que se considera possuidor da verdade é, na realidade, um ser pouco evoluído e sectário.
Encontramos na mitologia africana, mais especificamente na cultura “yorubá” uma rica formulação que trata sobre a verdade.
“Conta-se que no princípio havia uma única verdade no mundo. Entre o Orun[1] e o Aiyê[2] havia um espelho. Daí é que tudo que se mostrava no Orun materializava-se no Aiyê. Ou seja, tudo que estava no mundo espiritual refletia exatamente no mundo material. Ninguém tinha a menor dúvida sobre os acontecimentos como verdades absolutas. Todo cuidado era pouco para não quebrar o espelho da verdade. O espelho ficava bem perto do Orun e bem perto do Aiyê. Naquele tempo, vivia no Aiyê uma jovem muito trabalhadora que se chamava Mahura. A jovem trabalhava dia e noite ajudando sua mãe a pilar inhames. Um dia, inadvertidamente, perdendo o controle do movimento ritmado da mão do pilão, tocou forte no espelho que se espatifou pelo mundo. Assustada, Mahura saiu desesperada para se desculpar com Olorum[3]. Qual não foi a sua surpresa quando O encontrou tranquilamente deitado a sombra do Iroko[4]. Depois de ouvir suas desculpas com toda a atenção, declarou que dado aquele acontecimento, daquele dia em diante não existiria mais uma única verdade e concluiu: “De hoje em diante, quem encontrar um pedacinho de espelho em qualquer parte do mundo, estará encontrando apenas uma parte da verdade porque o espelho reproduz apenas a imagem do lugar onde ele se encontra.” História mítica adaptada por Vanda Machado para formação de educadoras e educadores da Rede Municipal de Educação em Salvador. 1:Mundo espiritual; 2:Mundo natural; 3:Deus supremo e criador de tudo, divindade suprema na mitologia “yorubá”, fonte de todo o poder e existência no universo. 4:Árvore considerada sagrada para os YORUBÁNOS. No Brasil foi substituída por gameleira branca.
Acreditamos que tudo aquilo que chega em nossos sentidos é a verdade. Ledo engano. A percepção sensorial, embora seja o ponto de partida para a construção do conhecimento, é apenas um fragmento da realidade. Como afirmava Immanuel Kant, a mente humana possui categorias a priori que moldam a nossa percepção do mundo, influenciando a forma como interpretamos as informações sensoriais.
A interpretação da realidade é um processo complexo, permeado por diversos fatores, como valores, princípios, aprendizado, meio social e cultura. Segundo Berger e Luckmann (1966 The social construction of reality: A treatise in the sociology of knowledge. Garden City, NY: Doubleday), a realidade é construída socialmente através de um processo de "codificação" e "internalização" de significados compartilhados, o que significa que a nossa percepção do mundo é moldada pelas interações sociais e pelos valores culturais.
A afirmação de que a verdade é uma construção individual, moldada por nossa interpretação da realidade, levanta questões complexas sobre a natureza do conhecimento e a possibilidade de uma verdade objetiva. Embora a ideia de uma "tábula rasa" defendida por John Locke, que sugere que a mente humana nasce sem conhecimento prévio e é moldada pelas experiências sensoriais, tenha influenciado o pensamento ocidental, ela não explica completamente a diversidade de percepções e interpretações da realidade.
A forma como interpretamos as experiências, como argumentado no texto, é influenciada pelo nosso contexto social e cultural, incluindo valores, crenças, normas e expectativas. Essa influência pode ser observada na maneira como diferentes grupos sociais percebem e interpretam eventos, fenômenos e até mesmo a própria linguagem. Por exemplo, a compreensão de um conceito como "justiça" pode variar significativamente entre diferentes culturas, impactando a forma como indivíduos julgam e interpretam ações e situações.
Além do contexto social e cultural, a subjetividade da verdade também é influenciada por fatores individuais, como experiências pessoais, predisposições e até mesmo estados emocionais. A mesma situação pode ser interpretada de maneiras completamente diferentes por pessoas com diferentes histórias de vida, valores e perspectivas. A observação do comportamento de uma criança com TEA (transtorno do espectro autista), ilustra essa ideia. A interpretação do comportamento da criança pode variar significativamente dependendo da experiência prévia do observador com autismo, suas crenças sobre a condição e sua própria sensibilidade para com as diferenças.
É evidente que a influência do contexto social e cultural, bem como de fatores individuais, não implica que a verdade seja completamente relativa. Existem verdades objetivas, como as leis da física, que são independentes da interpretação individual. No entanto, a forma como compreendemos e aplicamos essas verdades é influenciada por nossa própria perspectiva. As diferentes formas de manifestação da mediunidade é uma realidade que os parâmetros da ciência materialista não consegue explicar, embora reconheça sua existência.
A verdade não é algo estático e absoluto, mas sim um processo permanente de aproximação, de reconhecimento progressivo e gradual. Essa ideia se aproxima da "verdade como correspondência" defendida por Aristóteles, que argumentava que a verdade reside na correspondência entre o pensamento e a realidade. No entanto, a verdade não é algo que se alcança de forma definitiva, mas sim algo que se constrói gradualmente, através da acumulação de experiências e da constante revisão de nossas crenças.
A analogia com o mito africano do espelho fragmentado, que representa a verdade como algo fragmentado e incompleto, reforça a ideia de que a verdade é sempre parcial e relativa. Essa perspectiva se aproxima do relativismo, que questiona a existência de uma verdade absoluta e defende a ideia de que a verdade é sempre relativa a um determinado contexto.
A crença em verdades absolutas é um sinal de dogmatismo, revela uma visão limitada da realidade e uma postura individual sectária. Como argumentava Thomas Kuhn (1962 - The structure of scientific revolutions. Chicago: University of Chicago Press), a ciência é permeada por paradigmas que influenciam a forma como os cientistas interpretam os dados e constroem teorias. A busca pela verdade exige uma postura crítica e aberta à possibilidade de revisão de nossas crenças, reconhecendo que a verdade é um processo contínuo de construção e aperfeiçoamento. Assim como na mitologia "yorubá", a verdade está nos fragmentos do espelho que encontramos no caminho e não na chegada, porque o fim é uma ilusão.
A RESPONSABILIDADE É SEMPRE DO OUTRO
José Augusto Zaniratti - 29/07/2024
A expressão "a culpa é sempre do outro" reflete uma tendência humana profundamente arraigada: a externalização da responsabilidade. Essa postura, caracterizada pela busca por justificativas e pela recusa em reconhecer a própria falibilidade, permeia a história da humanidade, perpetuando um ciclo vicioso de culpabilização e escusa.
Desde os primórdios, a humanidade se protegeu da culpa por meio de mecanismos de defesa, como a atribuição da responsabilidade a forças externas, a figuras de autoridade ou a eventos aleatórios. "Foi ele que me induziu ao erro", "O destino me pregou uma peça", "A culpa é do sistema" – frases que, embora aparentemente inofensivas, refletem uma profunda resistência em assumir o controle sobre nossas ações e seus impactos.
Essa resistência se manifesta em diversos âmbitos da vida. Em situações como o alagamento de ruas, a responsabilidade individual é frequentemente ignorada. A culpa recai sobre o prefeito, enquanto o descarte inadequado de lixo, a obstrução de bueiros e a falta de cuidado com o meio ambiente, ações que contribuem para o problema, são esquecidas.
A mesma dinâmica se repete em outros contextos. A corrupção, por exemplo, é frequentemente atribuída aos políticos, enquanto a própria sociedade, em suas diversas esferas, se omite ou participa ativamente de práticas corruptas. Somos peritos na crítica à corrupção de todos, independente de termos provas sobre os atos alheios. Mas somos os primeiros a lutar por ter vantagens burlando regras e determinações legais. A busca por vantagens pessoais, a desonestidade e a falta de ética permeiam a vida social, mas a culpa é transferida para um "sistema corrupto", sem que se reflita sobre a própria parcela de responsabilidade.
No âmbito político, a tendência é responsabilizar unicamente os governantes pelos problemas da sociedade, esquecendo-se do poder individual de cada cidadão. A participação política, o voto consciente, a cobrança por transparência e a denúncia de irregularidades são ferramentas que podem transformar o cenário político, mas muitas vezes são negligenciadas em favor da crítica fácil e da busca por culpados externos.
Há uma outra forma de projetar nossos próprio erros ou omissões: a generalização. Quando cometemos erros, é tentador recorrer à generalização como forma de nos absolver. Afinal, dizer "Todos cometem erros" ou "É normal errar" parece diminuir a seriedade do nosso equívoco. Mais ainda, “todo político é corrupto” ou “todos advogado é salafrario”, são frases que buscam diluir a responsabilidade individual que temos por nossas ações.
A generalização, um mecanismo de defesa psicológico comum, permite que nos esquivemos de encarar diretamente nossas falhas e seus impactos. Essa estratégia, embora contribua para a manutenção de uma autoimagem positiva, impede a responsabilização necessária para o crescimento pessoal.
O problema é que, ao recorrer à generalização, perdemos a oportunidade de aprender com nossos erros. Quando nos eximimos da culpa, deixamos de analisar o que deu errado, quais foram as causas, e o que podemos fazer diferente da próxima vez. Essa reflexão crítica é essencial para o nosso crescimento pessoal e profissional.
A cultura da culpabilização impede o desenvolvimento pessoal e coletivo. Ao invés de buscar soluções, ela perpetua um ciclo de reclamações e justificativas, impedindo a responsabilização individual e a busca por mudanças. A autocrítica, a capacidade de reconhecer nossos erros e aprender com eles, é fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e responsável.
É preciso romper com a ilusão da culpa. A responsabilidade individual é um passo fundamental para a transformação social. Assumir o controle sobre nossas ações, reconhecer nossos erros e buscar soluções para os problemas que enfrentamos é o caminho para a mudança. A culpa pode ser um peso, mas a responsabilidade é uma força libertadora.
Ao diluir a responsabilidade, diminuímos a importância de nos desculparmos, de assumirmos as consequências e de repararmos os danos causados. Isso acaba por prejudicar nossos relacionamentos e a confiança que os outros depositam em nós. Além disto tudo, cometemos injustiça ao caracterizar o todo pela parte.
É preciso que cada cidadão se conscientize da sua responsabilidade e do impacto das suas ações no mundo ao seu redor. Somente por meio da autocrítica e da reflexão constante poderemos promover uma cultura de responsabilidade individual e coletiva, contribuindo para um futuro mais justo, equilibrado e harmonioso para todos.
Aceitar que erramos e assumir a nossa responsabilidade por erros e omissões não nos torna menos capazes ou menos competentes. Pelo contrário, demonstra maturidade, integridade e uma disposição de crescer. Ao assumir a responsabilidade por nossos atos, estamos dando um passo importante na direção de nos tornarmos pessoas melhores.
Queremos uma sociedade justa, igualitária e fraterna, mas se agirmos no sentido inverso, não sairemos das trevas.
O Essencial e o Supérfluo: Uma Reflexão Profunda
José Augusto Zaniratti - 22/07/2024
‘Vivemos em um contexto onde o capital e o mercado dão as cartas tomando como essencial a superprodução de mercadorias que entram na livre concorrência em curto espaço de tempo e com prazo de validade cada vez mais limitado. São mercadorias descartáveis, destinadas ao lixo. O consumo entra numa roda vida e, não só o meio ambiente, mas todos sofrem com a degradação dos valores, principalmente aqueles ligados à preservação e a lealdade.” O essencial e o supérfluo na perspectiva de Lucas 7,38-50, de José Neivaldo de Souza, publicado na Revista de Teologia PUCRS, 2017
Você já se perguntou sobre o que é essencial para você? É muito simples resolver esse dilema quando não se tem as condições mínimas para sobreviver. Grande parte da população mundial vive sem o essencial. Neste caso não há dilema, a luta é por sobreviver. Diferente é quando temos condições financeiras para mais do que o essencial.
No mundo moderno, somos constantemente confrontados com escolhas que refletem o dilema moral entre o que é essencial e o que é supérfluo. Essa dicotomia nos desafia a avaliar nossos valores, prioridades e a maneira como conduzimos nossas vidas.
Há neste tema uma complexidade, implicações éticas que se manifesta em diferentes aspectos da sociedade contemporânea.
Em uma conceituação simplificada, podemos dizer que “essencial” refere-se àquilo que é fundamental, indispensável para a nossa sobrevivência, bem-estar e realização pessoal. Por outro lado, o “supérfluo” engloba aquilo que é excessivo, dispensável, muitas vezes associado ao luxo e ao desperdício.
No momento que precisamos fazer escolhas que envolvem a alocação de recursos limitados ou não, sejam eles financeiros, temporais ou emocionais, nos perguntamos: eu preciso?
Em um mundo onde a abundância coexiste com a escassez, é essencial refletirmos sobre como priorizamos nossas necessidades e desejos.
Somos massacrados todos os dias pela ideia de buscarmos incessantemente por bens materiais, muitas vezes supérfluos e que, fatalmente nos distanciam dos valores essenciais, como a solidariedade, a empatia e a sustentabilidade. Pior, sabemos que o consumo excessivo de recursos naturais e a produção em massa de produtos supérfluos contribuem para a degradação ambiental e a desigualdade social. É importante ressaltar que a noção de supérfluo não se limita apenas a bens materiais, mas também se estende a aspectos emocionais e mentais. O excesso, seja ele de objetos, preocupações ou compromissos, pode obscurecer nossa visão do que realmente importa.
Não é a quantidade de bens materiais que enriquecem a vida, mas sim a utilidade que esses objetos proporcionam a ti e àqueles que te rodeiam. A verdadeira riqueza não está na acumulação de posses, mas na capacidade de compartilhar e fazer a diferença na vida dos outros. A essência da humanidade reside na sua natureza social e inteligente, e viver em plenitude significa estar em harmonia com todos os seres, respeitando e valorizando a diversidade que nos cerca.
“Sim, mas o homem é insaciável. A natureza traçou o limite de suas necessidades em sua organização, mas os vícios alteram sua constituição e ele criou para si necessidades que não são reais.” (O Livro dos Espíritos – Livro III – capítulo V – resposta da pergunta 716, publicado em 18/04/1857).
Este é um dilema individual, depende de nosso desenvolvimento moral, do ambiente que fomos educados, dos princípios e valores adquiridos.
Por estas razões é crucial considerar a individualidade de cada pessoa. Cada indivíduo possui uma realidade única, com necessidades e valores distintos. O que é essencial para um pode não ser para outro, e isso ressalta a subjetividade inerente a essa questão. A busca pelo essencial, portanto, é uma jornada pessoal e constante, que requer autoconhecimento e discernimento.
Desapegar do supérfluo não é apenas abrir espaço físico, mas também promover clareza mental e emocional.
Nesse contexto, a simplicidade se revela como uma aliada poderosa. Ao simplificar nossas vidas e nos desapegar do que nos sobrecarrega, abrimos espaço para o essencial florescer. A simplicidade não é apenas uma questão de estilo de vida, mas sim uma filosofia que nos conecta com o cerne de nossa existência.
Em última análise, a busca pelo essencial é um convite à reflexão sobre nossas prioridades e valores. Ao nos afastarmos do excesso e nos aproximarmos da essência, podemos encontrar um sentido mais profundo em nossas vidas. Desprender-se do supérfluo não é apenas uma ação prática, mas também um ato de libertação, autenticidade e para a construção de uma sociedade mais justa e harmoniosa.
A busca pelo essencial é uma caminhada permanente que nos levará para o fim das trevas.
Ideologia: Eu quero uma pra viver
José Augusto Zaniratti - 15/07/2024
‘Meu partido, é um coração partido. E as ilusões estão todas perdidas. Os meus sonhos foram todos vendidos, tão barato que eu nem acredito, eu nem acredito, que aquele garoto que ia mudar o mundo, frequenta agora as festas do "Grand Monde". Meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder, Ideologia, eu quero uma pra viver.” Cazuza, 1988
Cazuza estava certo. Quando ele lançou esta música, estávamos saindo de uma Ditadura Militar, gerações perdidas, sem parâmetros e sem identidade. Para muitos, buscar uma ideologia significava reconstruir a capacidade de pensar política, definir candidatos, respirar uma ar de liberdade que desde 1960. O Brasil em 1988 vivia um momento crucial de transição política. O país se preparava para a promulgação da nova Constituição, que marcaria o início de um novo ciclo democrático. Crescemos sem pensar, vivemos repetindo ritos sem avaliar, trabalhamos para construir um país que não comandávamos. Sim, Cazuza, precisávamos de uma ideologia para viver.
Mas o que Cazuza não imaginava é que ainda que acreditássemos não ter uma ideologia, ela existia intrinsecamente. A alienação que vivemos entre 1964 à 1985 foi tão intensa que muitos de nós encontramos no futebol a razão para existir. Ainda bem que alguns encontraram na política suas razões para viverem.
A ideologia não uma coisa, uma teoria que se adquire no comércio ou se aprende na escola, embora os militares daquela época acreditassem que as aulas de Moral e Cívica ou de OSPB - Organização Social e Política do Brasil, bastariam para implantar uma visão de mundo restrita ao pensamento atrasado e retrógado de um ideário que já não mais existia.
Escrevo sobre isso porque , ainda que pareça surdo, as trevas voltaram para afirmar que a Terra é plana, que a ciência é inútil e que o certo é não ter ideologia. As trevas escurecem toda a luz para que não encontremos os caminho da libertação, ou que encontremos as trevas como o caminho da verdade.
No entanto, a verdade é que ser humano é, OBRIGATORIAMENTE, ter uma ideologia, construída pelo simples fato de existirmos.
A palavra "ideologia" deriva do grego "idea" (ideia) e "logos" (estudo, discurso). Em sua definição mais abrangente, a ideologia representa um conjunto de ideias, valores, crenças e princípios que orientam a visão de mundo de um indivíduo ou grupo, influenciando suas ações, interpretações e decisões. Portanto, a ideologia não são apenas sistemas abstratos de pensamento ou estudos acadêmicos ou intelectualizados, mas sim forças dinâmicas, vivenciadas todos os dias. Desde o momento em que nascemos, somos submetidos a influências ideológicas. A família, a escola, a cultura, a mídia, as instituições sociais e políticas – todos contribuem para a formação de um sistema de crenças, valores e princípios que nos acompanham ao longo da vida. A própria percepção da realidade é moldada por um conjunto de lentes ideológicas que filtram, interpretam e constroem nossa compreensão do mundo. As mídias sociais e através dos meios de comunicação que vão construindo nossa forma de ver, sentir e agir no mundo. A ideologia é uma construção que molda a maneira como compreendemos o mundo, interagimos com ele e nos posicionamos em relação aos outros. Ela não é estática, mas se transforma ao longo do tempo, adaptando-se às novas informações e desafios que encontramos.
É durante nossa existência que formamos nossa ideologia, sempre de acordo com a nossa possibilidade de participar do cotidiano, desde a família até o debate político de como governar a cidade, o estado e o país. Se alguma desta esferas nos são retiradas ou passa a ser restrita, nossa ideologia perde riqueza, perde a capacidade de ver e analisar de maneira crítica a realidade onde vivemos.
É exatamente por isso que as trevas precisam fazer um discurso de banimento da ideológico, como se ter ideologia fosse algo ruim ou errados. Essa é a ideologia daqueles que combatem a ideologia daqueles que querem dominar e para isso querem fazer de suas ideias as únicas possíveis. De certa forma, Cazuza quis dizer isso quando escreveu “os meus sonhos foram todos vendidos, tão barato que eu nem acredito” como se sonhar fosso subverter a ordem estabelecida pela ideia de força, quando a ideologia subversiva desejava a força das ideias.
É preciso vencer as trevas e a única forma de fazer isso é através da capacidade de agir a partir da ideologia, desde que seja sua, construída pela sua história e não por “fake news”. Tu conhece tua ideologia ou ainda está nas trevas?
ESCOLHA DOS REPRESENTANTES POLÍTICOS NO BRASIL
José Augusto Zaniratti - 08/07/2024
O atual momento do processo eleitoral brasileiro nos desafia a refletir sobre a ascensão de ideologias retrógradas e a responsabilidade dos eleitores na escolha de seus representantes. A ética e a integridade dos candidatos deveriam ser critérios fundamentais, superando a superficialidade das aparências e promessas vazias.
Estamos em uma nova fase do processo eleitoral no Brasil. Este é o momento em que todos os candidatos que concorrerão a partir de 16 de agosto estão fora de seus respectivos cargos.
Normalmente, discutimos a responsabilidade que os eleitores têm ao escolherem seus candidatos. De fato, muitas escolhas recaem sobre candidatos que representam pautas conservadoras, vinculadas a preceitos religiosos, fundamentados em interpretações literais ou fantasiosas de situações narradas há séculos, completamente anacrônicas e extemporâneas. Por isso, dizemos que há um retrocesso do ponto de vista moral e democrático. Em outras palavras, a barbárie tem voz e age sorrateiramente em nosso país.
Não podemos dizer que esses representantes de ideários retrógrados chegaram ao parlamento - seja municipal, estadual ou federal - pela força. Embora tenham, de certa forma, um desejo ardente de retornar às ditaduras do passado, militares ou civis, eles foram eleitos pela população. E aí reside uma realidade dura: o eleitorado brasileiro.
Nos sistemas democráticos, os candidatos ao poder legislativo (parlamento) e ao poder executivo (prefeitos, governadores e presidentes) desempenham papéis essenciais na administração e representação dos interesses da comunidade local e nacional. Antes, durante e após as eleições municipais, suas responsabilidades variam, refletindo um compromisso contínuo com a legislação, fiscalização, representação e gestão dos recursos públicos.
Nossa legislação é muito completa e aponta para os melhores procedimentos. Normalmente, observamos que na chamada pré-campanha, os candidatos apresentam suas ideias, destacando suas visões para o município e compromissos específicos com populações locais, segmentos sociais e lideranças comunitárias. Muitos podem formar parcerias e alianças com determinados políticos ou partidos, tudo para conseguirem maior alcance de base eleitoral. Para isso, participam de debates, eventos comunitários e pequenas reuniões em casas de lideranças de bairros. No Brasil, isso começa após o carnaval e vai até três meses antes do dia da eleição. Outra questão fundamental é a elaboração de políticas públicas que abordem as necessidades e aspirações da população local, articulando soluções para problemas urbanos, econômicos, sociais e ambientais que afetam o município. Suas atividades públicas são exatamente para compreender quais são os anseios da população, que é a matéria-prima para o que precisa ser feito após o pleito, caso sejam eleitos.
Depois da convenção dos respectivos partidos, que escolhem seus candidatos, e, principalmente, nos 45 dias de campanha eleitoral oficial, há intensificação de esforços para conquistar votos e demonstrar a capacidade de liderança, organizando equipes de voluntários ou contratados para atividades de campanha, incluindo panfletagem, carreatas e comícios, utilizando estratégias de marketing político para aumentar a visibilidade e o reconhecimento junto aos eleitores.
Mas não é isso que conta depois da eleição. Observamos que as alianças não levam em conta o que há de comum entre o pensamento e as propostas dos candidatos, mas sim a força que cada um tem para se eleger. Vemos pessoas, grupos e partidos com pensamentos e práticas antagônicas juntos, apenas para poderem se eleger.
Portanto, o fundamental para definir um candidato é a ética, a moral, a integridade e a ideologia de cada um, e não o vídeo mais bonito, o quão raivoso o candidato parece ou o quanto ele pode dar ao eleitor. A aparência é o caminho para a incerteza e o caos. A essência e a prática de cada candidato é a fonte para não eleger a falsidade ou alguém com o qual o eleitor não se identifica. Esse é o principal problema de grande parte do eleitorado: a incapacidade de identificar a essência, levando a maioria a eleger os conservadores e reacionários que buscam no "toma lá, dá cá" para melhorarem de vida via mandato, no saudosismo, nas soluções discriminatórias e no autoritarismo, soluções que só a prática democrática e a consciência crítica são capazes de produzir.
É essencial reconhecer que a prática democrática e a consciência crítica são os pilares para evitar retrocessos e promover uma sociedade mais justa e inclusiva.
PARTICIPAÇÃO É UMA CONSTRUÇÃO
José Augusto Zaniratti - 01/07/2024
Certa ocasião, na década de 90 do século passado, meu pai, Geraldo Zaniratti, comentou como foi sua participação, enquanto cidadão, em diferentes eventos.
Ele dizia que entre os anos 40 e 60, até 1964, era muito comum as pessoas participarem de grandes eventos, como o 1º de maio, comícios políticos, por exemplo.
-“Todos queriam assistir os belos discursos de figuras públicas com Getúlio Vargas, Brizola, Paulo Brossard, Pedro Simon, entre outros, e as praças ficavam lotadas.”
Pelos relatos de pessoas próximas e pela história, fica nítido que a forma de participação individual da população, sobretudo na política, mudou muito nos últimos 80 anos. É verdade que a forma de participação aqui no Brasil sempre foi diferente.
Nós, brasileiros, fomos historicamente forjados de uma maneira diferente dos modelos europeus estabelecidos. Somos um povo irreverente que criou sua própria forma de se manifestar politicamente. Ao contrário da expectativa de que seguiríamos padrões conhecidos de ação política, observamos que o povo brasileiro tende a se manifestar de forma mais carnavalizada, usando o humor, a sátira, o deboche e a crítica bem-humorada como ferramentas de expressão política e social. O povo brasileiro participa ativamente da política, nunca esteve alienado, mas de uma maneira muito particular e própria, desafiou os modelos pré-estabelecidos. Essa carnavalização da participação política é uma característica marcante da identidade do brasileiro.
Esta forma de agir foi se intensificando ao longo do tempo. Durante o período da ditadura militar, iníciando em 1964 e se estendeu até 1985, a participação dos indivíduos na política brasileira foi fortemente restringida e reprimida pelo regime autoritário. A ditadura militar foi marcada por um contexto de censura, repressão, tortura, perseguição política, violações dos direitos humanos, assassinatos, a suspensão de eleições diretas, a cassação de mandatos de políticos eleitos, a proibição de partidos políticos e a imposição de um regime de partido único controlado pelos militares. Tudo isso impactou significativamente a forma como os cidadãos podiam se envolver na vida política do país. Isso limitou a capacidade dos cidadãos de se expressarem livremente e de participarem de debates políticos e, principalmente, gerou um clima de medo e intimidação que inibiu a participação ativa da população. De certa forma, este período reforçou as práticas de carnavalização da crítica, atingindo, inclusive, as letras das músicas cada vez mais subversivas.
Durante todo este período, apesar da repressão, houve resistência por parte de diversos setores da sociedade, incluindo estudantes, sindicatos, artistas, intelectuais e grupos de oposição. Esses movimentos de resistência desempenharam um papel importante na luta contra a ditadura e na defesa dos direitos humanos.
A partir do fim da ditadura, os eventos precisavam de uma atração especial para garantir um público maior. Os discursos não eram atrativos, as novas gerações, crescidas na ditadura já não acreditavam nas palavras e seus interesses eram outros. Da década de 80 até o fim do século XX, a presença das pessoas nas grandes manifestações, depediam da capacidade do tema da greve, ou do tema dos protestos e dos shows (showmícios) para atrair a população.
Deixamos de assistir ou ouvir, apenas, para protestar em ações coletivas de luta por direitos e redemocratização da sociedade brasileira. Hoje percebemos que há uma forma intensa de participação política do povo brasileiro. Ele não está alienado e nunca esteve. Ao contrário, de um jeito muito especial e próprio, se manifesta com raiva e ódio, como assistimos no dia 8 de janeiro de 2023, com a vandalização de prédios e a destruição de obras nos espaços dos três poderes em Brasília. Uma outra parte, a esmagadora maioria, carnavaliza através da sátira, do deboche, da “charge” ou “cartoons”, para manifestar de forma marcante a crítica social ou política.
Atualmente as mídias sociais, viabilizadas pela internet e pela popularização dos computadores e celulares, a população quer ser ouvida e assistida. A tomada de decisões mais democráticas e transparentes, leva em consideração as crescentes manifestações individuais. É evidente que a carnavalização, marca nacional genuína, está sempre presente nas opiniões, agora mais do que antes. As grandes manifestações populares foram reduzidas em número, afinal, agora a pressão é mais individualizada, onde cada cidadão, de uma forma ou de outra, expressa sua posição, fanatizados ou não. Entretanto, junto do avanço desta forma de participação, veio a propagação de mentiras e notícias falsas, comportamento que revela a irresponsabilidade e o despreparo de parte dos indivíduos ao reproduzir informações sem verificar a veracidade e fonte das mensagens que recebem. A pretensa justificativa do direito de manifestação de opinião para divulgação das chamadas “fake news” é resultante do estágio da construção da participação popular que vivemos hoje. Como toda novidade, arrasta elementos consigo, como o grau de consciência crítica que estamos. Para alguns, uma consciência ingênua e fanatizada, ainda do período das trevas.
INOPERÂNCIA INVIABILIZOU O CONSELHO DO POVO DE TERREIRO
José Augusto Zaniratti - 24/06/2024
Quando escrevi minha terceira coluna para o AVS Jornal de Erechim em 14 de setembro de 2023, intitulada "A Conferência do Povo de Terreiro", eu ainda acreditava na palavra empenhada do Secretário de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul sobre a realização da II Conferência do Povo de Terreiro no estado. Assim como outros, eu acreditava que nossos esforços e articulações desde 2022 seriam premiados com a tão esperada conferência.
Às vezes, acreditar nas pessoas significa abrir mão daquelas intuições que nos guiam diariamente. No caso da prometida II Conferência do Povo de Terreiro no Rio Grande do Sul, que deveria ter sido realizada em 2018, fomos motivados pelas diversas promessas de sua realização. Inicialmente prevista para abril de 2023, adiada para outubro e, por fim, dezembro do mesmo ano. Repassamos essa confiança a todos, acreditando na palavra dada, apenas para ver a conferência ser levada aos "confins do nunca" pelo vento gerado pela inépcia de alguns.
Quando essa confiança é traída, é momento de nos autocriticarmos e reconhecermos que não devemos abrir mão daquilo que nossa intuição nos indica. Eu, pessoalmente, não acreditei nela desde o início - um erro crasso de julgamento da minha parte.
Ao longo do ano de 2023, foram realizadas dezenas de Conferências, envolvendo direta e indiretamente milhares de pessoas que escolheram centenas de delegados e delegadas para definir prioridades e ações, amparadas pelo Decreto Federal nº 6040 de 2007 e pelo Decreto do RS nº 51.587 de 2014. Esse processo visava atender as necessidades do Povo de Terreiro e, principalmente, continuar enfrentando, ainda com mais vigor, a violência, o preconceito e a discriminação que os praticantes de religiões de Matriz Africana sofrem ao professar sua fé e cultura.
Professar a fé do povo de Matriz Africana é, ainda, um ato de coragem no Brasil. Significa correr riscos, enfrentar a polícia e as portas fechadas de muitas administrações públicas. Enquanto aqueles que professam a fé a partir de preceitos de religiões ideologicamente tidas como "brancas", como as evangélicas ou católica, recebem sempre o "SIM" das mesmas portas lacradas à cultura de Matriz Africana.
No início de 2024, novas promessas e palavras empenhadas afirmaram que a tão aguardada II Conferência do Povo de Terreiro seria realizada finalmente em maio. Desta vez, respeitei minha intuição. Quando ouvimos as mesmas palavras, ainda que as bocas não sejam as mesmas, é preciso avaliar o histórico das realizações de cada um. E, novamente, nada vi concretizado.
Naquele momento em que mais palavras flutuavam ao vento, lembrei-me da antiga frase bíblica, "a fé sem obras é morta" (Tiago 1–2), que me dizia para calar, não acreditar, pois não havia obras realizadas, fatos concretos dos autores das palavras vazias proferidas. Mais uma vez, a Conferência não saiu do papel.
A não realização desta II Conferência implica em um prejuízo enorme, não só para os adeptos da tradição africana, mas para toda a população do Estado. Perde-se a credibilidade de todos que se envolveram diretamente na realização das Conferências Municipais e Regionais, daqueles que validaram o processo de discussão e escolha dos representantes eleitos. Perde-se a oportunidade de ver os direitos deste povo tradicional respeitados e sua cultura milenar se expandirem, diminuindo nossa ignorância em relação às suas práticas no trato da saúde com ervas, da alimentação saudável, da música e uso de instrumentos acústicos, do rico saber popular dos arquétipos e tantos outros elementos culturais. Além disso, a inexistência do Conselho do Povo de Terreiro, que seria reconstituído a partir da Conferência, de forma funcional impede o controle social sobre o Estado e a elaboração de políticas públicas para este setor, obrigação legal do poder público.
Entendo que o maior prejuízo é a ausência de ações fortes de combate ao desrespeito dos direitos humanos quanto à prática da fé de matriz africana e a falta de políticas públicas efetivas na educação para o respeito à diversidade. Será que o Ministério Público não percebeu que um decreto estadual está sendo sistematicamente desrespeitado? Até quando o povo de terreiro terá que lutar para ver seus direitos básicos garantidos? Em muitos aspectos estamos muito distantes do fim das trevas.
Como os Relógios Mostram o Tempo
José Augusto Zaniratti - 17/06/2024
O tempo é como as águas de um rio. Nunca vimos as mesmas águas de um rio. As águas deste momento que nos molham, no segundo seguinte estão em um outro ponto e não voltarão. Assim é com cada instante que se passa, o tempo é invisível, altera o presente, que passa para o passado e não permite que vejamos o futuro. Se o tempo fosse um réptil, seria uma serpente invisível, possuidora de um veneno que nos envelhece a cada segundo. Se o tempo fosse uma droga, seria insípida e inodora, capaz de retirar toda a nossa capacidade de viver o presente, fazendo-nos chorar pelo tempo perdido e pensar no futuro que é algo que não vemos, não sabemos e apenas supomos. E o relógio? Este pode nos alienar…
Existimos em um espaço onde o tempo é inexorável e só pode ser quantificado porque criamos uma convenção para contá-lo, mas o tempo não nos dá a mínima atenção para nossa contagem e até nos engana sistematicamente, nos fazendo acreditar que passou mais rápido ou mais lento, através da mais pura ilusão.
Na pré-história o tempo era visível. O sol anunciava o que deveríamos fazer e a noite anunciava o que não fazer. Simples, racional e orientador, tudo baseado nos ciclos naturais.
Na antiguidade o tempo era visível porque a sombra que o sol proporcionava nos dava a noção de tempo. Mais tarde, através da areia da ampulheta, era possível saber o que foi possível mensurar o tempo decorrido, ainda que impreciso.
Na Idade Média, segundo David Landes na obra "The Mechanical Clock in Late Medieval Culture", o tempo precisava ser medido com mais precisão para que as atividades litúrgicas fossem sincronizadas, como se para louvar a Deus fosse preciso um momento determinado. Para sincronização das atividades religiosas, como os serviços nas igrejas e mosteiros, surgem os primeiros relógios mecânicos. Como tudo girava em torno da religião no mundo ocidental, o tempo também foi atrelado às questões religiosas. Mais tarde estes relógios passaram a sincronizar atividades de abertura e fechamento das cidades, o início e o fim dos períodos de trabalho, a realização de mercados e feiras, em outras palavras, as rotinas sociais estavam subordinadas a uma padronização temporal. Como todo saber restrito gera poder, as autoridades religiosas e civis, agregaram o poder que a rotina social estruturada pelo tempo medido proporcionou.
Pode-se dizer que as necessidades técnicas e de precisão em relação à mensuração do tempo, de certa forma, exigiu o desenvolvimento de habilidades e conhecimentos na matemática, na mecânica e na engenharia, impactando, logicamente, a organização social, cultural e a tecnologia da época.
A partir deste momento o relógio mecânico analógico não parou de evoluir, cada vez mais acompanhar o tempo passou a ser necessidade para todos os ramos da vida humana.
É no século XIX que os relógios deixaram de ser produzidos de forma artesanal e artigos de luxo, para serem produzidos industrialmente. A Revolução Industrial, que iniciou em 1769, criou as condições para o barateamento e a consequente popularização do relógio analógico. Ainda no século XIX, uma parte significativa da população não tinha condições de adquirir o seu próprio relógio, justamente aquela população que formava o grande exército industrial para as fábricas que surgiam. Um exemplo clássico do uso do relógio no mundo do trabalho foi a construção do grande relógio que foi instalado em 1859 no alto da Torre do Palácio de Westminster, Londres, que é conhecida como a Torre do Relógio ou a Torre Elizabeth, hoje apelidado de Big Ben, apelido forjado ao longo do tempo. Este nome, inicialmente, era o nome do sino de 13,5 toneladas que está localizado nesta mesma torre.
O papel do relógio e sino, era muito nítido: informar o horário de início do trabalho dos operários das recentes indústrias inglesas a partir das badaladas do sino. A partir deste momento o capitalismo aumentou sua velocidade de produção, de tecnologia e voracidade por mais e mais produção e consumo. Acompanhar o tempo gasto na produção passou a ser essencial.
No início do século XX tivemos um marco importante na capacidade de acompanhar o tempo. Era a época das corridas aéreas, isto é, corridas de aviões, meio de incentivar o avanço tecnológico da aviação incipiente. Depois de uma destas corridas em torno da Torre Eiffel, Paris, o brasileiro Santos Dumont encontrou-se com seu amigo Louis Cartier para conversar. Dumont comentou sua preocupação sobre a dificuldade que ele havia encontrado para consultar o tempo que possuía para finalizar a corrida. Isso se devia às duas alavancas de controle da aeronave 14 Bis. É claro que esta era uma dificuldade que todos os pilotos da época possuíam. Como o relógio era de bolso, ele precisava, a todo instante, largar uma das alavancas para retirar o relógio do bolso para consultar o tempo restante durante os voos. Naquela época, os relógios de bolso eram a única opção, mas eram pouco práticos para uso durante o voo.
Cartier, renomado joalheiro e relojoeiro francês, com base nessa conversa, se desafiou a criar um meio de facilitar a vida de seu amigo, ou seja, uma forma que permitisse a Santos Dumont acompanhar as horas sem precisar tirar as mãos dos controles do avião. Assim nasceu o primeiro relógio de pulso moderno, conhecido como "Santos". Ele era menor e mais leve do que os relógios de bolso tradicionais, com uma pulseira de couro que permitia que fosse preso ao pulso do usuário. Além disso, o relógio era fácil de ler, mesmo durante o voo. Não é por acaso que hoje Cartier é marca de relógio famoso e tudo começou com o relógio Santos de Cartier, gerando um impacto significativo na indústria relojoeira.
Na segunda metade do século uma revolução sutil se fez sentir na percepção do tempo com a criação do relógio digital em 1970. Com a adoção generalizada de relógios digitais, ou seja, a mudança na forma de mostrar o tempo medido, afetou a percepção e a experiência do tempo na sociedade moderna. Segundo Barbara Adam, na obra "Time and Society: The Social Meaning of the Digital Clock", a maior precisão e a apresentação digital do tempo, por exemplo, contribuíram para um senso de urgência e a necessidade de otimizar o uso do tempo, intensificando o ritmo de vida e atividades, acelerando o ritmo de vida. Enquanto os relógios analógicos possuíam uma conexão mais intuitiva com a passagem do tempo através do movimento dos ponteiros, os relógios digitais rompem essa associação, desvinculando a experiência temporal da percepção corporal. O relógio analógico, que nos permitia observar as três dimensões básicas do espaço-tempo: passado - as horas que os ponteiros nos mostram do tempo que já passou; o presente - que é o que o ponteiro mostra como o momento presente; e por fim o futuro - o tempo que os ponteiros mostrarão nos próximos momentos. O relógio analógico proporciona à nossa percepção, as condições para darmos importância para as coisas que passamos, que estamos vivendo e que pretendemos viver. Mas o capitalismo mudou a nossa percepção com a criação do relógio digital. Neste tipo de relógio, vivemos robotizados ou animalizados, alienados do passado e do futuro. Para o mundo do relógio digital só percebemos o presente, passado e futuro estão absolutamente descartados. Em outras palavras, o relógio digital aliena. O universo digital nos leva de volta para às trevas?
Separando o Joio do Trigo
Dedico este texto a todos que, por amor, estão atuando na recuperação da vida do Rio Grande do Sul.
José Augusto Zaniratti - 03/06/2024
Há tanto por fazer e tanto a escrever! Meu caminho me leva a refletir sobre as consequências dos atos daqueles que são inconsequentes. Refiro-me àqueles que se preocupam apenas com seus próprios interesses, sem se importar com o impacto de suas ações sobre os outros.
Essa observação me lembrou uma crítica muito comum atualmente sobre a forma como muitos fazem política. Mas devemos ter cuidado para não generalizar demais. A verdade é que todos nós fazemos política o tempo todo. Defender nossos interesses é um ato político, e isso é absolutamente legítimo. Seja quando doamos alimentos, roupas ou nos engajamos como voluntários em uma causa, ou mesmo quando organizamos uma partida de futebol para arrecadar fundos - tudo isso envolve alguma forma de fazer política.
Então onde está o equívoco dos críticos às ações daqueles que estão ajudando as vítimas da enchente no Rio Grande do Sul? Afinal, tudo que fazemos é política, embora não necessariamente, política partidária.
O que não está certo, em muitas situações, é a intenção oculta de autopromoção. Ao fazer algo por vaidade, mirando a câmera do celular, buscando seguidores em rede social, procurando obter vantagem pessoal, aí o fazer política muda de caráter, mas não deixa de ser política.
É evidente que não sabemos ao certo a verdadeira intenção das pessoas. Só a nossa observação persistente sobre a forma de fazer política pode iluminar o subtexto das ações de cada um. A intenção de uma pessoa é influenciada por uma série de fatores, como experiências passadas, valores pessoais, crenças e contexto social. Portanto, a interpretação da intenção de alguém pode variar de acordo com a perspectiva de cada indivíduo. As ações são as partes visíveis das motivações individuais e estas motivações são invisíveis ao olhar mais ingênuo.
Não somos capazes de identificar com precisão absoluta e objetividade as reais intenções do outro. Neste cenário, o que predomina é nossa intuição e a capacidade de ler nas ações das pessoas as entrelinhas, ler o olhar, a linguagem corporal e expressões faciais de cada indivíduo.
Quando percebemos a intenção no ato de ajudar, podemos reagir de forma mais eficaz, fazendo a crítica apropriada. Para isso, há um ensinamento secular que nos guia: a parábola do Joio e do Trigo (Evangelho de Mateus, capítulo 13, versículos 24 a 30).
Nos conta esta parábola de que o inimigo veio e semeou joio no meio do trigo. Quando os servos perceberam a presença do joio, perguntaram ao dono do campo se deveriam arrancá-lo. No entanto, o dono disse para deixar o joio crescer junto com o trigo até a colheita, para que não arrancassem o trigo junto com o joio. Ele explicou que, no tempo da colheita, os ceifadores separariam o joio para queimar e o trigo para ser armazenado no celeiro.
Em outras palavras, devemos agir com paciência e sabedoria. Reconhecer as ações motivadas pelo amor é primordial. Tratar os outros como gostaríamos de ser tratados é um ato de caridade que precisa ser admirado e reconhecido. A diferença entre a prática de cada um é absolutamente subjetiva. Cabe a nós avaliar e reconhecer, na hora da colheita, aqueles que semearam o joio ou o trigo. É nesse momento da separação entre os justos e os ímpios que cada um receberá a sua recompensa de acordo com suas ações. Mas o critério dessa separação depende de nossa capacidade de ler os gestos e o caráter daqueles que agiram durante a crise.
Os indiferentes criticam apenas a superfície, generalizando o conceito de política e colocando, na mesma cesta, o joio e o trigo. Os sábios, por outro lado, separam corretamente e se identificam com os que semearam o trigo, reconhecendo-os e valorizando seus gestos. A política está presente em todas as nossas ações, mas é no íntimo de cada um que reside a motivação egoísta ou não.
A capacidade de identificar a real intenção do outro é um processo longo e lento de aprendizado individual, que não se aprende na escola ou na universidade. É nossa própria vivência que nos ensina a separar o joio do trigo, e esse aprendizado e nossas escolhas são a chave para retirar a humanidade das trevas.
Agora é a tua vez!
José Augusto Zaniratti - 27/05/2024
Vivemos momentos de angústia e desespero diante do desastre climático que assolou o nosso Estado em maio deste ano. O impacto inicial nos deixou paralisados, mas logo vimos as ruas inundadas de voluntários dispostos a ajudar. Chegaram de várias cidades água, comida, barcos e outros equipamentos essenciais. O Brasil e outros países se mobilizaram em uma grande onda de solidariedade. No entanto, as consequências da tragédia climática foram devastadoras: quase 600 mil desalojados; 455 municípios foram afetados e a maior parte ficaram arrasadas, foram mais de 2,3 milhões de pessoas afetadas de alguma maneira, quase duas centenas de mortos e mais de 30 dias depois ainda há 42 desaparecidos ainda estão sendo procurados, centenas de empresas fecharam, o desemprego vai atingir níveis alarmantes e plantações inteiras desapareceram.
Nesta situação crítica, o resgate e salvamento de vidas humanas e animais foi a primeira prioridade. Infelizmente, ainda não sabemos se o número de vidas perdidas é final. Agora, estamos enfrentando uma nova fase de emergência, a de saúde. Os desabrigados, desalojados e voluntários, além das forças policiais, de saúde e defesa civil, estão expostos aos riscos de contaminação devido ao contato com a água extremamente poluída, que ainda está acumulada. A proliferação de insetos e outros vetores de contaminação está ocorrendo de forma abundante.
Simultaneamente a essa nova fase, sabemos que é crucial reconstruir a infraestrutura danificada, como hospitais, estradas, a rodoviária de Porto Alegre, o transporte terrestre e o aeroporto Salgado Filho. Além disso, a recuperação da economia é uma etapa fundamental que exigirá um investimento maciço por parte dos governos nacionais e internacionais, bem como das grandes empresas, tanto nacionais quanto multinacionais.
É importante compreender a magnitude desse desafio e a necessidade de uma resposta coordenada e abrangente. A reconstrução e recuperação levarão tempo, esforço e recursos consideráveis. No entanto, com a união de esforços de todos os setores da sociedade, podemos superar essa crise e reconstruir um futuro mais resiliente e sustentável.
Todo este esforço passa, obrigatoriamente, pela capacidade de nossa solidariedade e por voluntariado. Nossa solidariedade passa por pequenos gestos diários que normalmente desprezamos, como economizar água potável e energia elétrica, naqueles longos banhos desnecessários. Colocar o lixo no lugar adequado parece algo óbvio, mas a esmagadora maioria da população não dá importância para o descartar em locais destinados a este fim e tão pouco para reciclar os resíduos. Quando ocorre cheias e as bocas de lobo ou mesmo o sistema de drenagem falham, resultando em ruas e casas alagadas, muitos criticam as autoridades responsáveis pela limpeza pública, no entanto, são, geralmente, os mesmos que jogam o resíduo na rua sem o menor cuidado.
Mas podemos mais que isso. Se temos uma hora por dia, este tempo pode ser responsável por oferecer descanso para alguém que está há horas trabalhando sem parar.
Ser voluntário diante de uma calamidade ambiental desta monta, significa muito oferecer seu tempo, esforço e habilidades para ajudar as comunidades afetadas. Ser voluntário nessas situações envolve dedicar-se a atividades como triagem e distribuição de suprimentos e roupas, auxílio na reconstrução, prestação de cuidados médicos, apoio emocional, ajudar na organização dos milhares de abrigados, entreter as crianças e outras formas de assistência necessárias para lidar com os impactos do desastre. O trabalho voluntário desempenha um papel fundamental na recuperação e na construção de resiliência das comunidades afetadas e, principalmente, mudança de atitude, pois fazer ao outro o que gostaria que fosse feito a ti mesmo, é isto que nos diferencia dos animais. Exercer a compaixão é uma forma concreta de demonstrar solidariedade e oferecer apoio às pessoas que estão enfrentando adversidades de todo tipo.
Não basta pensar, sentir o drama de milhares de famílias, é preciso agir, fazer a diferença. Agora que o número de voluntários diminuiu drasticamente, chegou a nossa vez de contribuir, decisivamente, para retirar o Rio Grande do Sul das trevas.
Sentir, Pensar e Agir
José Augusto Zaniratti - 19/05/2024
Todos já viram as imagens devastadoras - casas destruídas, estradas submersas, famílias desabrigadas. A recente enchente que atingiu nosso Rio Grande do Sul é uma tragédia sem precedentes na história do estado, deixando um rastro de destruição que exigirá enormes esforços de reconstrução. Até dia 19 de maio perdemos 155 vidas e 89 ainda desaparecidos, essa catástrofe natural deixou marcas profundas na vida de centenas de milhares de gaúchos, dilacerou o tecido social e as vidas pessoais de centenas de milhares de gaúchos. Muitos sobreviventes carregam consigo não apenas a perda de suas casas e pertences, mas também o trauma emocional e psicológico.
Mais de 445 cidades foram afetadas, com infraestrutura danificada, serviços públicos interrompidos e comunidades inteiras desabrigadas.
Agora, o estado enfrenta o enorme desafio de reerguer o que foi perdido, será necessário . Tudo precisa ser reconstruído.
Será uma jornada longa e árdua. Reconstruir a infraestrutura será a meta dos órgãos públicos. Essa tragédia natural acentuou as disparidades de acesso a recursos, serviços públicos e infraestrutura básica.
Fico aqui me perguntando se a reconstrução material vai repetir os mesmos erros do passado. Reconstruir moradias às margens de rios e arroios? Refazer estradas sem estruturas que considerem os períodos de cheias? Consertar as famosas casas de bombas que deveriam expulsar as águas da área urbana não funcionam quando há uma enchente? Bombas que deveriam captar água para torná-la potável e que ficam submersas e não ligam? Ausência de Defesa Civil equipadas e capacitadas para salvar vidas e organizar a população desesperada? Em outras palavras: repetirão os mesmos erros conhecidos há muitas décadas?
Muitos esquecem de que as pessoas não moram em áreas de risco por opção. São estas áreas que restam para quem não possui capital, ou seja, a desigualdade econômica brutal obrigou milhões de pessoas a viverem em risco todos os dias. Ao mesmo tempo, a busca pelo lucro sem sustentabilidade ambiental, criou as condições para que o clima fosse alterado e assim, tragédias como a que vivemos seja lugar comum daqui em diante. E mais, quando o capital pensa em inovação, normalmente, o lucro é o critério superior ao da sustentabilidade e da preservação da vida.
Pensar em reconstrução precisa aliar diminuição das desigualdades sociais, na sustentabilidade e em inovação com garantia do bem estar social dos desfavorecidos e os que habitam áreas de risco.
E o que nos cabe como cidadãos? Reerguer a autoestima e a esperança dessas famílias será fundamental. Não podemos nos omitir, deixar que os outros se preocupem com a reconstrução como sempre fizeram. Reconstruir a estrutura e as vidas é nossa missão também, e talvez, principalmente. Não basta ser um povo resiliente, ser determinado e unido. É preciso sentir, pensar e agir.
A reconstrução passa por mudar o jeito que encaramos a vida. Compreender e sentir as emoções e perspectivas de outra pessoa, é sentir o que a outra pessoa está passando e criar conexões emocionais. Aprender e ensinar a lidar com a angústia e a incerteza do futuro. Tudo isso só pode vir da mais genuína mudança interior. Mais do que isso, é preciso ter a vontade de ajudar e aliviar o sofrimento do outro. Este desejo ativo de agir para ajudar e oferecer apoio às pessoas que estão passando por dificuldades é a força que nos faz agir, fazer e não apenas sentir.
Sentir, no fundo de nosso coração não é ficar amargurado. Essa tragédia é uma oportunidade de nos reconstruir internamente e agir buscando uma sociedade empática e solidária, uma jornada de reconstrução seja guiada por uma abordagem holística e verdadeiramente inclusiva.
A única maneira de sair das trevas é agir com compaixão e altruísmo. Trate os outros como gostaria de ser tratado, ao mesmo tempo em que trabalha para sua própria transformação interior.
Somos inocentes?
José Augusto Zaniratti - 12/05/2024
Representamos a mais perfeita expressão de nossas escolhas. Sempre tivemos e sempre teremos a possibilidade de escolher. Ao longo de nossa história humana, optamos, inicialmente, por viver de acordo com os recursos abundantes oferecidos pela exuberante natureza. Vivíamos como coletores, admirando os grandes animais e os fenômenos naturais, por vezes atribuindo-lhes conotações divinas.
Mesmo nessa condição, tínhamos escolhas, e assim nos tornamos caçadores. Decidimos elaborar estratégias para capturar os grandes animais, assumindo riscos, mas nosso instinto de sobrevivência prevaleceu e nos impulsionou a interagir com os elementos naturais. Formamos grupos e, coletivamente, triunfamos sobre os maiores animais, suprindo muitas de nossas necessidades básicas diante das adversidades impostas pelo clima da época.
Por acaso ou não, aprendemos a controlar o fogo, fruto da ira do deus trovão. Escolhemos utilizar o fogo para enfrentar o frio, iluminar as noites nas cavernas e nos proteger de predadores. Aumentamos nossa inteligência e desenvolvemos habilidades de observação. Mais uma escolha se apresentou diante de nós. No caminho percorrido pelos grupos humanos, havia um rastro de vegetação que crescia onde ocorriam depósitos de lixo deixados por outros nômades que por ali haviam passado. Foi assim que surgiu a agricultura, uma descoberta revolucionária: os restos vegetais tinham o poder de germinar se fossem colocados no solo. Dessa forma, a agricultura nasceu, e com ela veio outra escolha: tornamo-nos sedentários, aguardando o crescimento das plantas e diminuindo a necessidade de longas caminhadas para coletar alimentos. A transição da caça e coleta para a agricultura marcou um importante marco na história da humanidade, resultando no surgimento de assentamentos permanentes, aumento da produção de alimentos e o desenvolvimento de sociedades mais complexas. A revolução agrícola permitiu a domesticação de plantas e animais, promovendo uma mudança significativa no modo de vida das comunidades pré-históricas.
Após uma longa jornada de aprendizado, deixamos de ser nômades para nos tornarmos sedentários. Essa escolha acarretou mudanças profundas na estrutura e no funcionamento dos grupos humanos. As funções se multiplicaram, a estratificação social se tornou mais complexa e a riqueza passou a se concentrar de maneira desigual, com alguns tendo mais do que outros.
Muitos séculos se passaram. Enfrentamos centenas de guerras, períodos de fome, doenças e epidemias, mas não desistimos de encarar a adversidade. Passamos por revoluções sangrentas, grandes navegações, revolução comercial e revolução industrial. Em cada momento, fizemos escolhas, inclusive aquelas que nos permitiram chegar até o momento presente: escolhemos alterar a natureza. Durante séculos, modificamos a natureza, alteramos o curso dos rios, construímos túneis em montanhas, aterraram partes dos oceanos, criamos ilhas e aquecemos o planeta. O degelo chegou e o clima se transformou.
No Brasil, não foi diferente. Fizemos escolhas que nos levaram a 2024. As águas anseiam por ocupar os espaços que lhes pertenciam, como a área da Arena do Grêmio, do Gigante da Beira Rio, o espaço do Mercado Público e a rua da praia. As águas desejam recuperar seus antigos territórios, como as margens de arroios e rios.
Todos os dias me questiono se sou inocente. Hoje percebo que a humanidade não é inocente.
Fizemos nossas escolhas quando alteramos irresponsavelmente a natureza ou quando nos omitimos diante dos erros cometidos pela humanidade. Não basta apenas saber ou dizer, a natureza nos desafia a ter a capacidade de fazer, de agir. É preciso viver em harmonia com a natureza sem abrir mão de evoluir em todos os sentidos. A natureza nos desafia a conviver com a diversidade humana, com respeito e aprendendo com toda a humanidade.
Há séculos estamos pagando com as vidas de nossos semelhantes, de muitos entes queridos e não aprendemos… Será que conseguiremos sair das trevas?
As Palavras tem Poder!
José Augusto Zaniratti - 29/04/2024
A língua de um povo é muito mais do que um sistema de comunicação. Ela carrega consigo os traços distintivos de uma cultura viva, sua construção histórica. A língua de um povo é um reflexo profundo da sua identidade e da sua forma de ver e interagir com o mundo ao seu redor. Quando nos expressamos, revelamos as palavras mais usadas, gírias, expressões idiomáticas, palavras resultantes do calque linguístico, estamos revelando muito mais do que simples mensagens. Estamos compartilhando nossa visão de mundo, nosso jeito de pensar e nos relacionar com os outros. Ao entrarmos nas peculiaridades de uma língua, descobrimos também as marcas deixadas ao longo do tempo. Influências de outros idiomas, resultantes de colonizações, migrações ou contatos culturais, são evidências de uma história compartilhada. Cada palavra e expressão possui uma história própria, enraizada nas tradições, práticas religiosas, culinária, geografia e tantos outros aspectos culturais que dão forma à identidade de um povo.
Em outras palavras, cada verbete, cada expressão idiomática, cada frase e a forma de se expressar revela nossa ideologia. Um exemplo nítido desta situação são as reportagens da imprensa ou mesmo os comentários e discursos sobre a data 1º de Maio, quando escutamos Dia do Trabalho como sinônimo do Dia do Trabalhador.
Todos nós sabemos que o 1º de Maio é uma data comemorativa internacional que celebra as conquistas dos trabalhadores e as lutas históricas por melhores condições de trabalho, incluindo a redução da jornada de trabalho para oito horas.
Pode ser que alguns desconheçam a origem desta data. Ela está fundamentada em um fato que remonta ao século XIX, mais especificamente ao movimento operário e às lutas sindicais por jornadas de trabalho mais justas, diretamente ligada ao movimento conhecido como Revolta de Haymarket. A Revolta de Haymarket ou Massacre de Haymarket, foi um conflito, durante uma greve geral, que ocorreu em 4 de maio de 1886, em Chicago, nos Estados Unidos. Houve confrontos entre manifestantes e a polícia, resultando em prisões, mortes e feridos durante manifestação em defesa da jornada de trabalho de oito horas, na Haymarket Square. A manifestação, que começou pacificamente, acabou em tragédia quando uma bomba explodiu perto de policiais, resultando na morte de um policial e ferindo outros sete. Após os eventos em Haymarket Square, várias pessoas foram mortas e outras foram feridas. Após as investigações e os julgamentos que se seguiram, vários trabalhadores foram presos e alguns foram condenados à morte. Quatro homens foram executados em relação aos acontecimentos da Revolta de Haymarket, em um julgamento altamente controverso que teve impacto significativo no movimento dos trabalhadores em vários países, tiveram repercussões duradouras e se tornaram um símbolo da luta internacional pelos direitos dos trabalhadores.
É assim que nasceu o Dia do Trabalhador, data comemorativa internacional que celebra as conquistas dos trabalhadores e as lutas por melhores condições de trabalho. Em memória dos acontecimentos de Haymarket e em homenagem aos trabalhadores que lutaram por melhores condições de trabalho, a Segunda Internacional Socialista, em 1889, estabeleceu o 1º de Maio como o Dia Internacional dos Trabalhadores.
Aqui cabe um parêntese histórico. O Brasil sancionou a lei abolindo a escravidão em 13 de maio de 1888, a chamada Lei Áurea. O Mundo vivia a luta pela melhoria das condições de trabalho assalariado e no Brasil e elite agraria da época, ainda mantinha a escravidão. As trevas no Brasil ainda eram mais densas e geraram inúmeros reflexos históricos.
Portanto, ao abordar a data 1º de maio como Dia do Trabalho, é uma demarcação ideológica que ignora a luta dos trabalhadores. Mais ainda, retira uma marca histórica que precisa ser relembrada como exemplo daquilo que jamais deve acontecer. A expressão Dia do Trabalho tenta remover o caráter de classe que a expressão Dia do Trabalhador carrega consigo e, evidentemente, observamos aí mais uma disputa ideológica quase imperceptível ou ignorada por muitos. Mas atenção, não esqueçam que as palavras tem poder e que elas constroem a cultura de um povo, logo não podemos permitir que nossa cultura apague os fatos históricos e assim, apaguem o protagonismo dos trabalhadores por um mundo justo e fraterno.
Século XXI - Banalização ou Profundidade?
José Augusto Zaniratti - 22/04/2024
Com a continuidade da conversa entre Bianca e o jovem casal, percebi que novos tipos de relações estavam se construindo neste início de século. Eu não havia percebido. Continuei ouvindo e aprendendo os novos conceitos que, naturalmente, foram sendo mostrados sem que percebessem. Escrevo sobre observações casuais sem referencial científico, fundamentado em dados e evidências. No entanto, o que percebi é que as formas de amar, de se relacionar, de se unir ou não, fazem parte de um outro universo de princípios, expectativas e adequação a um novo modo de vida.
Na primeira década do século XXI, a comunicação no namoro era principalmente feita por ligação telefônica ou mensagem de texto. As pessoas costumavam se conhecer através de amigos em comum, na escola, no trabalho ou em eventos sociais. Já na segunda década, com o avanço da tecnologia, surgiram aplicativos de mensagens instantâneas, redes sociais e chamadas de vídeo, o que ampliou as possibilidades de comunicação entre os casais. A evolução do relacionamento tornou-se mais rápida. Percebemos maior valorização da igualdade de gênero, com casais compartilhando responsabilidades e tomando decisões conjuntas. Os compromissos a dois são assumidos mais cedo em comparação com a primeira década.
Há uma maior diversidade, com casais optando por relacionamentos abertos, poliamor, namoro casual ou namoro online. Muitas pessoas procuram relacionamentos mais igualitários, baseados no respeito mútuo, apoio emocional e compartilhamento de responsabilidades. O parceiro ou a parceira não é mais a única fonte de realização e felicidade, mas o crescimento e o desenvolvimento pessoal passam a ter mais ênfase.
Em 2024, percebemos nitidamente maior abertura em relação à diversidade de orientações afetivas e identidades de gênero, e com isso, há maior expressão da sexualidade e mais autenticidade na forma de ser nas relações afetivas.
O poliamor, que envolve ter relacionamentos românticos ou afetivos com múltiplos parceiros simultaneamente, já é uma realidade, mas não a única forma de relação não monogâmica. O relacionamento aberto, por exemplo, é caracterizado por permitir que os parceiros tenham encontros sexuais ou românticos com outras pessoas, desde que haja transparência, comunicação e acordos estabelecidos. É outra forma de relacionamento, assim como o relacionamento anarquista, que enfatiza a liberdade individual e a não hierarquia nas conexões afetivas.
Nos anos 90 do século passado, já era muito comum na França o casamento caracol, isto é, cada um morando em suas casas, mas com encontros durante a semana, garantindo assim o convívio e os bons momentos de um namoro, com a fidelidade de um casamento tradicional. Com a globalização e a facilidade de comunicação através da internet, os relacionamentos de longa distância estão se tornando mais comuns. Além disso, nem todos os relacionamentos precisam ser românticos ou sexuais. Os relacionamentos platônicos se concentram no vínculo emocional profundo, na conexão intelectual e no apoio mútuo, sem a presença de atração romântica ou sexual, assim como também os relacionamentos interculturais e inter-raciais estão se tornando mais comuns e aceitos. As pessoas estão se conectando além das fronteiras culturais e raciais, formando relacionamentos afetivos que transcendem as diferenças culturais e raciais.
Acredito que estamos em um processo profundo de transformação nas relações afetivas: Relacionamentos Solos. O foco não é mais a busca por um relacionamento romântico ou parceria de longo prazo. Os jovens optam por viver vidas autônomas e independentes, com eventuais parceiros românticos, assim podem se concentrar em seu crescimento pessoal, carreira, amizades e hobbies, encontrando satisfação e realização fora de um relacionamento romântico tradicional. Em outras palavras, a busca é pela liberdade de tomar decisões por conta própria, sem precisar considerar constantemente as necessidades e desejos de um parceiro romântico. Isso permite o crescimento pessoal, o desenvolvimento de carreira e a busca de interesses individuais sem restrições. O importante é ter espaço para maior autoconhecimento e autorreflexão, permitindo desenvolver uma relação mais saudável consigo mesmo. Podemos chamar isso de Liberdade emocional, isto é, a liberdade de explorar e vivenciar uma ampla gama de emoções sem se preocupar com as expectativas ou demandas de um parceiro romântico. É uma forma de segurar em suas mãos a própria felicidade e bem-estar emocional, sem a pressão de satisfazer as necessidades emocionais de outra pessoa.
Estamos vivendo um momento de transição, no qual o namoro, o noivado e o casamento, como tradicionalmente conhecemos, estão desaparecendo. No entanto, isso não se deve à banalização ou à superficialidade das relações. Essas formas de relacionamento estão desaparecendo devido à construção da liberdade de escolha, à busca pela individualidade absoluta e à autonomia, sem necessariamente ser egoísta. Seria isso o fim das trevas? Certamente não. Estamos testemunhando uma transformação significativa nas dinâmicas afetivas, onde a liberdade, o respeito mútuo e a busca pelo crescimento pessoal desempenham papéis cada vez mais importantes.
As Relações Afetivas - Década de 90
José Augusto Zaniratti - 15/04/2024
Agora eu fazia parte da conversa entre Bianca e o jovem casal. Pedi mais uma cerveja, talvez porque estava tomado pela emoção que as lembranças dos anos 80 haviam trazido à minha memória.
As mudanças nas relações afetivas entre as décadas de 40 e 80 foram de fato profundas. Com o advento da geração Y nos anos 80, tudo começou a evoluir em uma velocidade vertiginosa, impulsionado pelo avanço tecnológico. A revolução na comunicação trouxe uma transformação radical na forma como nos conectamos com as pessoas, podendo alcançar um número infinito delas sem sair da frente do computador. Por volta de 1995, o e-mail começou a substituir as longas cartas de amor e as intermináveis ligações telefônicas nos relacionamentos românticos. É claro que cada indivíduo é único, mas essas mudanças generalizadas são resultado do aumento de casos de comportamentos distintos.
A internet com acesso crescente da população mundial e o uso massivo do e-mail permitiu o aumento de contatos que evoluíram rapidamente para encontros e estes, se transformaram em “FICAR”. Essa expressão ganhou popularidade e passou a ser amplamente utilizada para descrever encontros casuais e sem compromisso, geralmente envolvendo beijos e intimidades físicas, mas sem necessariamente levar a um relacionamento sério. Esta prática representou uma mudança nos padrões tradicionais de namoro, em que as pessoas buscavam relacionamentos mais formais e comprometidos desde o início. O “FICAR” é caracterizado por uma abordagem mais descontraída e menos comprometida em termos de envolvimento emocional e expectativas de longo prazo. No início o FICANTE era alvo de alguns encontros, com o passar do tempo, passou a ser um único encontro, aliás, em uma noite poderia haver mais de um ficante. Além do avanço tecnológico, outros fatores, como a influência da cultura pop, a maior liberdade sexual e a crescente individualização, contribuíram para a popularização dessa forma de relacionamento mais casual.
Essa geração cresceu em um mundo cada vez mais conectado digitalmente, com amplo acesso à internet e às redes sociais desde jovens. Relacionamentos afetivos que tendem a valorizar a independência e a liberdade individual, relacionamentos abertos ou casamentos não convencionais, são mais perceptíveis e maior valorização da comunicação aberta e a igualdade de gênero nos relacionamentos. Outro aspecto importante é que essa geração é mais propensa a adiar a saída da casa dos pais, adiar o casamento e a formação de família, priorizando a carreira e a busca por experiências individuais. As regras e símbolos em relação ao namoro, noivado e casamento começam a mudar mais rapidamente. As três fases se aproximam, isto é, as características do namoro e do casamento se aproximam, de tal forma, que quase já não percebemos diferença entre este momentos. O namoro, estágio superior ao “FICAR” inclui relação afetiva mais estável, vida sexual ativa e mais frequente, interdependência financeira entre o casal, fidelidade para ambos da relação e, até mesmo, morar juntos. O casamento, religioso ou civil, passa a ser um detalhe formal, afinal, a união estável fornece os parâmetros legais do casal. Onde fica o noivado? Quase desaparece, perde sua finalidade, na maioria dos casos se transforma em uma festinha de família ou entre amigos.
O significado destas mudanças é o processo crescente da separação entre sexo e amor, algo que no passado era uma característica secreta dos homens, passa a ser padrão e público para todos os gêneros. Nesta década, a compreenção teorica e prática do sexo é um simples ato biológico e que não necessariamente envolve amor. Podemos dizer que o artigo “O amor atrapalha o sexo”, de Arnaldo Jabor, publicado em 17/12/2002 é um marco nesta virada de comportamento e, como tudo no Brasil passa a ser carnavalizado, o disco “Balacobaco”, de Rita Lee, na música “Amor e Sexo” retrata de forma precisa a separação entre amor e sexo. Há quem diga que a inspiração para esta música vem da leitura do referido artigo de Jabor.
"Amor é um livro, Sexo é esporte - Sexo é escolha, Amor é sorte - Amor é pensamento, teorema, Amor é novela, Sexo é cinema - Sexo é imaginação, fantasia, Amor é prosa - Sexo é poesia, O amor nos torna patéticos, Sexo é uma selva de epiléticos - Amor é cristão, Sexo é pagão - Amor é latifúndio, Sexo é invasão - Amor é divino, Sexo é animal - Amor é bossa nova, Sexo é carnaval - Amor é para sempre, Sexo também - Sexo é do bom, Amor é do bem - Amor sem sexo é amizade - Sexo sem amor é vontade - Amor é um, Sexo é dois - Sexo antes, Amor depois - Sexo vem dos outros e vai embora, Amor vem de nós e demora"
É assim que entramos no século XXI, tempos onde os mais velhos não mais se reconhecem neste mundo, espantados com o rumo que as relações afetivas tomaram, a ponto de muitos afirmarem em vida a surrada frase, possivelmente criada pelo escritor Edyr Augusto e muito repetida por meu irmão nascido em 1947: - Eu já morri para este mundo! Mas esta é uma outra conversa para a próxima coluna.
As Relações Afetivas - Década de 80
José Augusto Zaniratti - 08/04/2024
Foi então que me apresentei à Bianca e ao jovem casal que com ela dividia a cerveja. Eu estava emocionado ao relacionar uma conversa do século XXI que se encaixava na história que havia vivido como adolescente e como adulto.
Apesar de ter idade para ser avô de todos à mesa, não fui rechaçado, um comportamento doce e, com isso, me senti livre para trocar impressões sobre a história das relações afetivas, coisas que eles não haviam vivido.
Foi nos anos 80 que a verdadeira natureza da paixão e do amor se revelou de maneira mais complexa e profunda do que já havia sido imaginado. Quando chegou essa década, as marcas sociais já eram tão fortes quanto nunca antes, criando uma pressão inegável para a expressão de sentimentos e ideias que antes eram reprimidos ou subjugados. Vinícius de Moraes já havia abordado a questão do amor eterno em seu o “Soneto de Fidelidade”, publicado inicialmente em 1939, no Estoril, cidade de Portugal, no livro Poemas, Sonetos e Baladas (também chamado de O Encontro do Cotidiano). Só mais tarde, em 1946, é que a obra chegou ao Brasil, mas o conceito de eternidade do amor só ficou conhecido mesmo depois que passou a ser declamado junto com a música Eu Sei Que Vou Te Amar, em 1972.
“Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama. Mas que seja infinito enquanto dure.”
A experiência coletiva da década de 80 trouxe uma nova dimensão à discussão. Nosso mundo estava em constante mudança, com a emergência de novos modelos de relacionamento e a desconstrução de antigos paradigmas. A libertação sexual, a visibilidade da comunidade LGBTQIA+ e a luta pela igualdade de gênero tornaram-se temas centrais na cultura e na política. Essas mudanças sociais profundas impactam a maneira como nós entendemos e experimentamos o amor e a paixão. Fomos desafiados a construir seres humanos mais completos efetivamente, superando as barreiras históricas de repressão e estereotipagem. A década de 80 nos deixou, sem dúvida, mais conscientes de nossas próprias emoções e de nossas capacidades para amar e sofrer. Mas o conservadorismo buscou, de certa forma, vincular as diferentes relações afetivas agora mais evidentes, à AIDS que emergiu como uma pandemia mundial, devastando comunidades e mudando para sempre a maneira como entendemos a saúde e a doença. A luta contra a AIDS tornou-se uma batalha pelos direitos humanos e pela vida, ressaltando a importância da solidariedade e da resistência.
Em o discurso "O mistério do relacionamento" feito por Vilma Osho em 16 de maio de 1974 já apontava as alterações que estava se processando na relações afetivas, a complexidade e a beleza dos relacionamentos humanos onde o amor é um processo contínuo e um estado de ser, não uma estrutura rígida. Enfatizava a importância da liberdade no amor e nos relacionamentos, argumentando que a possessividade pode destruir o amor.
Do ponto de vista político, fatos como a luta pelas diretas já para Presidente e o susto que a elite brasileira leva em 1989, quando Lula quase vence as eleições presidenciais, mostram que a população brasileira, e não alguns, querem uma nova sociedade. Nesta década as mulheres são parte vital do mercado de trabalho, a presença feminina é visível nos assuntos que se debate na sociedade, como o aborto e o divórcio. A sociedade estava em debate com o processo constituinte que iniciou em 1986, as leis já não mais respondiam à realidade brasileira. Homens e mulheres são expressões diferentes, mas possuem direitos iguais socialmente aceitos, mas legalmente ainda não. Assim, neste clima, era evidente que as relações afetivas, tomavam nova dimensão. As “ondinhas” do passado passam a ser “amizades coloridas” com relações sexuais eventuais e sem nenhum comprimisso, nem mesmo de namorar. A opção agora é aceitar os bônus, isto é, beijos, abraços, carícias, sexo, sem o ônus do compromisso. E mais, isto agora vale para os homens e mulheres.
A separação para elas é igual a emancipação, liberdade, o casamento era prisão, fim da liberdade, sufocamento. Noivado andava esquecido, a união de duas pessoas, casadas ou não, era vivido sem nenhuma conotação de eterno e acontecia bem mais tarde na vida dos jovens adultos. Ser dona de casa era apenas uma entre tantas opções para a mulher dos anos 80.
Foi uma década que nos deixou reflexivos, forjando uma geração de novos pensamentos e de ações inéditas. Nossas vidas e nossos relacionamentos foram deliberadamente marcados por uma paixão e um amor que se revelaram mais profundos e mais complexos do que qualquer geração anterior, deixou uma herança de luta e de mudanças que nos guiou para um futuro ainda mais diferente. Em 40 anos, vivemos uma revolução afetiva. Mas os anos 90 ficam para a próxima coluna.
As Relações Afetivas - Década de 70
José Augusto Zaniratti - 01/04/2024
Agora eu estava tão envolvido em meus pensamentos que já não ouvia Bianca conversando com o jovem casal. Neste momento eu passo a ser personagem da história, adolescente no fim dos anos 70, vivi momentos de grande intensidade afetiva e política. Uma história que Bianca não viveu, mas herdou as marcas políticas de minha geração e de tantas outras.
Durante a Ditadura Militar e o período de luta contra ela, diferentes tipos de amores exerceram influência nas relações afetivas. Neste contexto de brutalidade e repressão, os indivíduos buscavam consolo e fortaleza em suas conexões afetivas. Dois grandes tipos de amores se destacaram nesse contexto: os amores militantes e os amores sonhadores. Ambos representavam diferentes formas de resistência e esperança diante da vida sob a opressão social e a repressão política.
Os amores militantes caracterizaram-se pela união entre duas pessoas que compartilham uma identidade política e ideológica, seja em oposição direta à Ditadura Militar ou em apoio aos movimentos de resistência. O aspecto afetivo foi considerado um complemento necessário, mas secundário, embora a profundidade do amor pudesse fortalecer a determinação e a resiliência do casal na luta contra o regime. Essas relações foram fundamentadas, principalmente, no aspecto intelectual, mental, expressa nas verdades ideológicas e na identidade política. A luta contra a Ditadura Militar, marcou, indelével, os corações e mentes de cada indivíduo. O amor, neste caso, serviu como um impulso para a ação e uma força que sustentava a resistência coletiva. A política de identidade era o principal fator que garantia a união de muitos casais, enquanto o aspecto afetivo servia como um complemento para fortalecer a relação.
Por outro lado, os amores sonhadores eram marcados pela união de duas pessoas que compartilhavam um sonho em comum. Este foi um tipo de amor que surgiu da longa luta e da necessidade de imaginar um futuro diferente. Esses casais se encontraram por casualidade, após terem sonhado separadamente com a construção de um casal moderno, uma família diferente, inspirada na mensagem transmitida na música "Imagine" de John Lennon. A música, com sua mensagem de paz, liberdade e igualdade, serviu como uma referência para a criação de novos tipos de relacionamentos e famílias. Esses amores eram movidos pela busca por uma nova forma de viver e pela esperança de um futuro melhor, de amores sem fim, de relações eternas. Ambos eram conscientes da fragilidade dessas ligações, pois viviam em um mundo em constante luta e mudança. Mas havia aqueles que timidamente desconfiavam desta marca, que veladamente questionaram esta eternidade. Essas dúvidas refletiram a complexidade e a ambivalência dos sentimentos humanos mesclados com a pressão histórica e política do momento.
Foi assim que percebi as mudanças profundas, as manifestações sociais e políticas misturadas às relações afetivas. A década de 80 marcou uma virada significativa em nosso país e em nosso mundo. Foi um período de luta intensa e de emergência de novas formas de organização e expressão. Fatos como o crescimento das Comunidades Eclesiais de Base, movidas pela Teologia da Libertação; as greves no ABCD Paulista, impulsionadas pelo novo sindicalismo; a anistia em 1979, mostrando que a Ditadura Militar sentia a pressão social e por fim, a reforma partidária em 1980, que se transformam na válvula da panela de pressão chamada Brasil. Mas isso fica para a próxima coluna.
As Relações Afetivas
José Augusto Zaniratti - 25/03/2024
A conversa, entre Bianca e o jovem casal, se transformou em um verdadeiro filme que se desenvolvia no balanço de meus pensamentos, gerando cenas da história e da minha vida. Vivia, naquele momento, uma enxurrada de emoções que me levaram às lágrimas em muitos momentos. Um deles foi quando Bianca falou de sua filha de cinco anos. Imaginei o que as bravas mulheres devem ter vivido quando decidiram priorizar a guerrilha em detrimento do convívio de seus familiares. Os Anos de Chumbo transformaram grande parte da juventude. A mulher, mais autoconfiante, assume novo papel: revolucionária. Claro que não foram todas, mas estava no ar a necessidade de audácia, de empoderamento crescente, impulsionado também pela repressão social e de Estado.
Mas para as minúsculas cabeças da maioria dos homens, não estavam preparadas para respeitarem e admirarem as mudanças que ocorriam nas mulheres, principalmente. A violência contra a mulher se ampliou, surgindo a figura do casamento apressado com noiva grávida, das festas de 15 anos com meninas grávidas e o preconceito em amplo crescimento. No fim dos anos 60, a mulher não era mais tão criticada se ao longo de sua adolescência tivesse tido muitos namorados, desde que não tivesse casado grávida. Os descasamentos se multiplicavam, mas ainda muito pouco falados. Parecia pecado comentar tal assunto. Foi uma geração de transição para um mundo de relações tão diferentes que estabelecer um parâmetro para o período é difícil. A mulher dos anos 60 não se conformava com seu papel restrito na sociedade e nas relações afetivas. Elas passam a assumir papel destacado no mercado de trabalho, a exigir um comportamento diferente dos homens, a sair sozinhas, ter outras relações paralelas ao namoro e etc. O modelo novo e o modelo velho andavam juntos de mãos dadas, como parte das contradições tão comuns no período. Afinal, o capitalismo se desenvolve a partir das contradições, socialmente não seria diferente. O vocabulário, as gírias, as músicas eram provas de que havia um descontentamento com a sociedade, com a hipocrisia evidente. Mas havia um certo medo de expor abertamente a rebeldia que foi aparecendo no início dos anos 70.
Os “Anos Rebeldes” enfrentaram os “Anos de Chumbo” com atitudes, mãos e bocas mais ousadas, o namoro passa a ser um espaço onde o toque é condição para identificar quem de fato estava namorando. É claro que dentro do movimento hippie o fazer amor era uma regra, anunciando comportamentos mais intensos no futuro. Para evitar maiores problemas, entra em cena o "chá de pêra", isto é, é uma antiga expressão que foi usada no Rio Grande do Sul para designar uma pessoa responsável por supervisionar e acompanhar, de perto, casais de namorados ou noivos para garantir que eles se comportem adequadamente e não tenham oportunidade de ficar sozinhos e assim garantir a moral e os bons costumes da época. Difícil dizer a origem exata dessa expressão, mas ela pode ter surgido da deformação da pronúncia da palavra "Chaperone", termo em inglês que se refere a alguém mais velho, geralmente um parente da mulher do casal que está sempre presente para evitar que algo "amadureça rápido demais" entre o casal de namorados ou noivos. O "Chaperone" ou Chá de Pêra passa a ser a peça fundamental de resistência para o novo tipo de namoro. Era o espião dos pais, que aqui usavam o irmão ou a irmã mais nova ou outro parente. Agora os namorados podiam sair sozinhos aos sábados à noite e aos domingos, desde que acompanhados do tal chá de Pêra, ou seja, um mecanismo para evitar que o namoro avançasse para os pontos "G" dos corpos. Foi uma solução que ainda vigorou até o fim dos anos 70.
Havia um elemento novo no ato de namorar: não era mais algo direcionado para casar. Mesmo assim o "chá de Pêra" era indispensável e assim mesmo isto representava um avanço importante em relação ao período anterior. O namoro passa a ser encarado de duas formas: os sérios, algo que resultaria num noivado, ou no pouco sério, uma ondinha, que meses depois estaria desfeito. Ondinha era algo mais profundo que um simples flerte, mas, menos intenso que um namoro sério e que mais adiante vai se transformar no "ficar".
O noivado desta época era mais que uma assinatura promissória, era uma declaração de dívida registrada em cartório, paga ou fica marcado para todo sempre. Era tão sério que alguns casais nem queriam noivar pelo peso que representava. O noivado começa a entrar em desuso, o namoro passa a ter parceiros mais ousados e o casamento, no religioso e civil, ainda é encarado como fuga para a liberdade e para uma nova prisão. Isso porque o homem continuava sendo dono da esposa. Portanto, ao chegarem no casamento havia mais experiência de vida, no entanto chegavam ao casamento ainda com uma marca forte: casamento é para toda vida e posse absoluta. Mas a história é pródiga em transformações, mas isso é assunto para a próxima coluna.
As Relações Afetivas - Décadas de 60
José Augusto Zaniratti - 18/03/2024
Em dado momento, Bianca, em conversa com o jovem casal, falou do comportamento de reprovação das pessoas em geral em relação a sua forma de demonstrar seu afeto. Isso me fez refletir sobre o que vivemos na década de 60. Até 1963 a juventude vivia o clima dos Anos Dourados. Mas eis que eclode a TFP(1). A TFP, fundada em 26 de julho de 1960, se constituiu em instrumento de mobilização da revolta dos mais velhos contra os mais novos, a luta incansável entre o antigo contra o novo, do passado contra o futuro, do preconceito e da inveja e da ameaça comunista se transformando no vilão. O bicho papão chamado de comunismo foi construído na esteira da Segunda Guerra, é o início da Guerra Fria.
“Eu intuía que a negação desses três valores era o ponto terminal da civilização cristã do Ocidente e o início de uma ordem de coisas baseada no contrário. E que, portanto, a Tradição, a Família, a Propriedade deveriam ser o nosso título.” Plinio Corrêa de Oliveira
O revés era iminente. A frase de Plínio Corrêa de Oliveira, fundador da TFP, era emblemática. Vários fatores influenciaram o Golpe Militar de 1964, trago a TFP porque ela foi a força da reação às mudanças de comportamento social que estavam se consolidando. Havia clima para o viés conservador, também para as relações afetivas não conservadoras. Momento de transição. As revistas femininas, por exemplo, davam conselhos demonstrando, claramente, que era a mulher a grande responsável pelo sucesso ou insucesso do casamento com dicas como estas: "Se seu marido tem outra, não brigue, dê mais atenção e carinho para ele." "Se ele jogar o cigarro no chão, não brigue, junte."
Em 1964 é o marco da chegada dos “Anos de Chumbo”, a Ditadura Militar contrastando com os “Anos Dourados”. Mas como disse Milton Nascimento, em Cancion Por La Unidad de Latino América: "A história é um carro alegre, cheio de um povo contente. Que atropela indiferente, todo aquele que a negue. É um trem riscando trilhos. Abrindo novos espaços. Acenando muitos braços. Balançando nossos filhos." Como toda ação traz consigo a reação, paralelo a tudo isso vivemos os “Anos Rebeldes”. Internacionalmente e no Brasil, a música, a arte, a moda, as relações afetivas em meio ao contexto mundial apontava para mudanças radicalizadas entre os jovens e que afetaram todas as gerações.
Os Beatles, por exemplo, representam uma profunda alteração no uso do cabelo, principalmente, o masculino. A música mais envolvente e coletiva, uma nova vertente de música, surgem bandas de Rock Progressivo, com letras de protestos, surgem entre 1960 e 1971, como foi o caso como The Moody Blues; Pink Floyd; Yes; Genesis; King Crimson; Jethro Tull; Emerson, Lake & Palmer; Rush; Gentle Giant e Camel e tantos outros. Logo de início, o assassinato de Kennedy em 1961 anunciava-se um período de alterações profundas na política internacional, tão profundas como foi a destruição das Torres em Nova York em 2011. Foi uma época de grande demonstração do imperialismo norte-americano para o mundo e principalmente para os asiáticos, com a Guerra do Vietnã. Esta guerra foi chave para grandes mudanças de comportamentos sociais mais radicalizados no mundo inteiro: o movimento hippie e a luta pela paz. Lembram da famosa expressão símbolo "faça amor não faça a guerra"? O império norte-americano enfrentou a resistência interna em função dessa sangrenta guerra, mais de 500.000 soldados americanos foram mobilizados para enfrentarem menos de uma centena de soldados e crianças armadas.
Na América Latina entramos no período das Ditaduras Militares, que se prolongaram até meados dos anos 80. Entre elas, a do Brasil em 1964, do Uruguai e do Chile em 1973 e Argentina em 1976. As liberdades democráticas em muitos países da América Latina foram substituídas pelas Leis de Segurança e pela censura prévia. O clima de que todos estavam sendo vigiados, as prisões políticas, a tortura e a paranoia eram a tônica do momento. O avanço tecnológico do ocidente crescia para vencer o poderio da URSS que na época era muito superior. O maior símbolo disso é a transmissão do primeiro passo do Homem na Lua em 1969, lembram? Um ano antes morria o jovem guerrilheiro Ernesto Che Guevara na Bolívia. Para surpresa de muitos, ao mesmo tempo que o homem chegava à Lua, o Brasil vivia um clima de terror, iniciava-se a guerrilha contra a Ditadura Militar, em torno de 5.500 soldados brasileiros foram mobilizado para enfrentarem uma centena de guerrilheiros brasileiros, que foram massacrados e quase todos mortos até 1974. Mas nada disso foi capaz de impedir as mudanças comportamentais representadas pela juventude. (Continua)
(1) A Tradição, Família e Propriedade (TFP), no Brasil registrada como Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, é uma organização civil de inspiração católica tradicionalista fundada primeiramente no Brasil em 1960 pelo professor catedrático, deputado federal Constituinte em 1934, escritor e jornalista católico paulista Plinio Corrêa de Oliveira. Ela é pautada na tradição católica e no combate às ideias maçônicas, socialistas e comunistas. A sociedade baseia-se na obra "Revolução e Contrarrevolução" e propõe uma vigorosa reação (contra--revolução) com base no amor à ordem cristã e na aversão à desordem (Revolução).
As Relações Afetivas - Década de 50 Parte 2
José Augusto Zaniratti - 11/03/2024
Durante a década de 1950, o Brasil passou por uma série de transformações no comportamento social que tiveram um impacto significativo nas relações afetivas, no papel das mulheres na sociedade e no surgimento de um estilo de vida mais contemporâneo. Nesse contexto, as etapas do namoro, noivado e casamento ainda eram rigidamente estabelecidas, com expectativas bem definidas para as jovens da época.
O namoro, nessa época, ocorria sob a supervisão dos adultos. Quando os casais saíam juntos, era comum que os homens buscassem as moças em suas casas e as levassem de volta. Além disso, era esperado que os homens assumissem a responsabilidade financeira durante os encontros, pagando as contas em lanchonetes, cinemas, bailes ou restaurantes por onde passassem.
O casamento, muitas vezes, acontecia em uma idade precoce. Era esperado que as mulheres se casassem cedo e se tornassem boas esposas e mães, dedicando-se ao lar e aos cuidados dos filhos. Os papeis de gênero eram bem definidos, com os homens sendo responsáveis pelo sustento da família e as mulheres assumindo as tarefas domésticas.
O que mudou? Maior independência e busca por autenticidade: As mulheres passaram a ter um pouco mais liberdade para expressar suas próprias vontades e desejos. Elas se tornaram mais audaciosas e romperam com o estereótipo de recato e submissão. Ganhou-se espaço para que elas pudessem experimentar, conhecer diferentes pessoas e ter uma visão mais ampla sobre o tipo de parceiro que desejavam. Desejar estudar já não era tão absurdo.
Com a maior liberdade e autonomia, as mulheres passaram a ter mais critérios na escolha de um parceiro. Elas buscavam relacionamentos mais igualitários, baseados em afinidades, interesses compartilhados e compatibilidade emocional. Isso resultou em uma maior diversidade de relacionamentos e uma maior abertura para explorar diferentes opções antes de se decidirem pelo casamento.
As relações afetivas no namoro passaram por transformações significativas. Houve uma maior proximidade física, com mais beijos e toques, embora ainda sob o olhar vigilante dos mais velhos. Essas mudanças refletiram uma maior expressão de afeto e intimidade entre os casais.
As mulheres conquistaram maior participação e voz ativa nos preparativos do casamento durante o período de noivado. Elas passaram a ter mais autonomia para tomar decisões e planejar a cerimônia de acordo com seus desejos e preferências. Além disso, houve uma maior demonstração pública de afeto entre os noivos, refletindo um clima de alegria e felicidade na fase pré-matrimonial.
Houve uma maior abertura para o lazer e a diversão em casal. Os passeios e viagens em conjunto se tornaram mais comuns, substituindo a predominância de eventos sociais apenas entre homens. Essas mudanças refletiram uma transformação nas relações familiares, com uma maior valorização da companhia mútua e do compartilhamento de experiências entre casais.
Esse período, apelidado de Anos Dourados, foi de grande otimismo e prosperidade econômica no Brasil, que ocorreu principalmente entre o final dos anos 1950 e o início dos anos 1960. Durante essa época, o país passou por um intenso desenvolvimento industrial, impulsionado pelo aumento da produção e pelo crescimento do mercado interno. A indústria brasileira experimentou um rápido avanço, com a criação de novas fábricas e a modernização das existentes. Setores como o automobilístico, o têxtil e o metalúrgico foram especialmente beneficiados.
Essa expansão industrial gerou crescimento da população urbana, levando ao surgimento de um novo comportamento, uma vida mais dinâmica, afinal, os centros urbanos são mais propícios às mudanças. Os jovens passaram a adotar uma postura mais rebelde e contestadora, questionando os valores tradicionais e buscando uma maior liberdade individual. Essa mudança de comportamento foi influenciada pela disseminação da cultura de massa, como o cinema, a música e a televisão, que trouxeram novos modelos de comportamento e estilos de vida. Surgiram novos espaços e formas de lazer e entretenimento, como os cinemas, os bares e as boates, que se tornaram espaços de sociabilidade e expressão cultural.
No entanto, esse período de prosperidade e modernização foi seguido por uma transição turbulenta para os chamados Anos de Chumbo. Com o fim da guerra veio o medo absurdo do comunismo, nos EUA e aqui também. Houve um aumento da repressão política e do autoritarismo no país, culminando no golpe militar de 1964 e com ele chega a perseguição política mais intensa, censura, violações dos direitos humanos, aumentando a violência do Estado. A resistência contra os novos costumes e mudanças sociais, que eram atribuídas ao crescimento do comunismo, foi uma das principais justificativas para o endurecimento do regime militar. De um lado os movimentos sociais, estudantis e políticos que lutavam por mudanças sociais e políticas foram duramente reprimidos. Por outro lado crescia a força da “tradição, família e propriedade” que se rebelam, e tomam as ruas, escandalizadas com os novos costumes e colocam a culpa na onda de crescimento do tal comunismo: a revolta dos mais velhos contra os mais novos, a luta incansável entre o antigo contra o novo, do passado contra o futuro. É assim que se avizinhava os Anos de Chumbo, quando muitos “bailaram na curva” e foram “barrados no baile”. Mas isso é assunto para nosso próximo encontro.
As Relações Afetivas - Década de 50 Parte 1
José Augusto Zaniratti - 04/03/2024
Bianca, bebendo cerveja, animada, falava com um jovem casal sobre suas conclusões depois de sua última experiência afetiva. Falava com desenvoltura e com sabedoria de mulher madura, apesar de seus vinte e três anos de idade. Eu ouvia atentamente na mesa ao lado. O que eu assistia naquele momento entrava em conflito com meu conhecimento das relações afetivas da década de 40, como abordei na coluna anterior. Era tempo de uma sociedade muito conservadora que só mudaria a partir de eventos externos. E isso aconteceu. O avanço tecnológico, a moda e os novos comportamentos do exterior chegaram aqui.
Com a chegada dos anos 50, a sociedade brasileira passou por uma transformação significativa, especialmente no comportamento social e afetivo dos indivíduos, principalmente dos jovens. Essa mudança foi impulsionada pela influência dos meios de comunicação e pelo avanço tecnológico que chegava de fora, trazendo consigo novas ideias e tendências. Um exemplo marcante dessa transformação foi o impacto do automóvel na sociedade da época. Com suas linhas mais arrojadas e seu uso popularizado graças às necessidades de exportação da indústria norte-americana, o automóvel se tornou um símbolo dessa mudança. Ele representava a capacidade rápida de locomoção, proporcionando aos jovens a possibilidade de passear e explorar novos lugares com maior autonomia, algo desafiador na época em que o bonde era o meio de transporte mais viável.
Além disso, a chegada da televisão no Brasil em 1950 e em Porto Alegre em 1959, juntamente com o rádio mais acessível e popular, contribuiu para uma maior dinamismo na sociedade e uma maior agilidade no cotidiano das pessoas. Essas novas formas de comunicação aproximaram os jovens de personagens das radionovelas e da televisão, os quais se tornaram modelos de comportamento mais próximos e cotidianos
Elvis Presley, outro agente externo, começou a fazer sucesso no Brasil na década de 1950, quando seu estilo único de música, que combinava rock and roll, country e rhythm and blues, conquistou fãs ao redor do mundo. No Brasil, suas músicas começaram a ser tocadas nas rádios e ele ganhou popularidade entre os jovens. Elvis fez sua primeira turnê internacional em 1957, que incluiu shows no Brasil. Ele se apresentou no Rio de Janeiro e em São Paulo, e seus shows foram um grande sucesso, atraindo multidões de fãs. A partir desse momento, Elvis se tornou um ícone da música no Brasil. Músicas e passos de danças diferentes contrastavam com os bailes com meninas recatadas. Muitas meninas, menos recatadas, passaram a namorar um número maior de rapazes e os adultos já não podiam mais rotulá-las de sem-vergonhas ou prostitutas, afinal, eram de famílias tradicionais.
Na moda, o biquíni que surgiu no Brasil em 1948, passou a ser mais popular, marcante na moda praia, o maiô perdeu espaço, pois cobria muito o corpo, o biquíni se tornou o queridinho, símbolo da mulher moderna. As saias começam suas escaladas para cima e o decote começa a descer, aumenta muito o consumo de bebidas alcoólicas e de cigarros. Inclusive os cigarros eram frequentemente publicitados como recomendados por médicos, o que contribuiu para a popularidade do hábito e os estudos recém haviam iniciado sobre os danos à saúde causados pelo tabagismo. As diferenças sócio-culturais passam a ser pautas recorrentes na imprensa. O mundo se transformava, a China vira comunista em 1949 com Mao Tse Tung no comando, a Guerra na Coreia e a guerrilha em Cuba desde 1957, anunciavam que o comunismo avança sobre o mundo dito "civilizado" e nessa levada, a barba nos jovens de esquerda virou moda com a Cuba-livre nos bailes.
A TV, a popularização dos meios de comunicação, o Elvis, assim como o estilo de música rock, experimentou um crescimento significativo e se tornou um gênero musical revolucionário. Foi nessa época que, além de Elvis, surgiram Chuck Berry e Buddy Holly, que ajudaram a popularizar o rock entre os jovens americanos e no mundo. O rock dos anos 50 rompeu paradigmas raciais e sexuais, um estilo de música impulsionada pela energia e rebeldia, cria uma cultura jovem distintas, influenciaram muito o comportamento social no Brasil.
Como tudo isso influenciou o namoro, noivado e casamento? Permaneceram com as mesmas características? Isso fica para nosso próximo encontro.
As Relações Afetivas: Década de 40
José Augusto Zaniratti - 26/02/2024
Eu não escrevo para convencer. As linhas que teço vêm da minha intuição, de fatos vividos, lidos, sentidos, amados ou odiados. Escrevo coerentemente com a minha prática, que nada mais é do que matéria-prima para te fazer pensar. Manter a mente aberta e refletir sobre as diferenças é sinal de inteligência, repetir sem pensar é a expressão mais precisa da escravidão. Manter a mente aberta também é útil quando se está sentado ao lado de uma mesa de bar, daquelas tão grudadas, que foi impossível não ouvir um relato de uma jovem mãe chamada Bianca. Acompanhada de um casal, a conversa rumou para as razões do término de um relacionamento. É sem dúvida um tema apaixonante: as relações afetivas construídas ao longo da história recente.
Eu ouvia uma conversa profunda, e em minha mente brotavam informações e lembranças. Começo descrevendo o formato das relações afetivas, socialmente aceitas e vigiadas, a partir dos anos 40 do século passado, quando meus pais iniciaram o namoro, ele com vinte anos e ela com treze anos, a Segunda Guerra Mundial já havia começado. Eram tempos de dúvidas sobre quem seriam os vitoriosos, mas havia muita certeza sobre quem estava de cada lado. No mundo afetivo também havia certezas: havia o namoro, o noivado e o casamento. Em cada fase, era socialmente aceitável determinado comportamento afetivo e as regras eram absolutamente claras e respeitadas.
O namoro tinha sua distância física assegurada, às vezes pela parede. Parede? Sim, parede. A parede da casa de Ironita, vazada apenas pela janela, acompanhou a maior parte das juras de amor de ambos, concretizada por toques de mãos. Ali estava uma relação leve, sem compromisso sério, de olhares, de sedução à distância, que indicava que a filha havia crescido. O uso das prostitutas pelos homens não era comentado, mas, não era reprimido. Afinal, era apenas namorado da fulana e ninguém comentaria tal fato.
O noivado era uma festa que simbolizava a promessa de casamento. Nesta época, quando alguém chegava a noivar, era tão sério quanto assinar uma nota promissória: depois tinha que casar. Neste caso, já havia um certo compromisso social e pessoal, que envolvia ambas as famílias, onde a noiva permitia alguns beijos tímidos e sem experiência. O sofá já era utilizado, mas na presença dos olhos atentos da sogra, que observava atentamente cada movimento das mãos, mesmo enquanto trabalhava com agulhas de crochê ou tricô. Agora, o comportamento tanto masculino quanto feminino era mais vigiado pelas fofoqueiras de plantão, que, diante do menor deslize, poderiam manchar a reputação das donzelas prometidas.
Com o controle tão severo os noivados não eram longos, afinal, já que estavam na metade do processo, o negócio era logo criar o desfecho da relação afetiva. Todos empurravam para que a noiva “desencalhasse” e o homem passasse a ser um senhor de respeito, ou seja: casassem logo!
Na década de 40 não apresentava quase nenhuma diversão pública, não havia televisão e o rádio de qualidade era ainda um aparelho para poucas famílias. Todo o processo era vivido em meio às festas populares familiares ou religiosas ou pelas famosas e românticas serenatas nas frias madrugadas de Porto Alegre.
Nos anos 40, o casamento seguia regras claras, precisas e definitivas, assim como a sociedade em si: havia o certo e o errado, o bom e o mau, o correto e o incorreto, o branco e o preto. Enquanto escrevo isso, recordo-me das palavras do meu pai: "ou o cara é meu amigo ou meu inimigo". Essa mentalidade era resultado da educação que ele recebeu, a qual, por sua vez, refletia o contexto social e político da época. Em tempos de guerra, não havia espaço para dúvidas sobre de que lado você estava. E, é claro, essa mentalidade também se estendia às relações afetivas.
Como essas ideias influenciaram as relações afetivas?
O namoro era algo sem compromisso formal, um jogo de sedução permanente e um campo para perceber quem era ou não romântico. Com o tempo, pela convivência, ainda que o toque fosse mais raro, o casal conversava muito entre si, trocavam opiniões sobre si e sobre suas visões de mundo. O namoro era um momento de conhecimento mútuo. O tempo de namoro era longo, digamos dois anos, às vezes mais, o namoro era uma fase de conhecimento mais aprofundado. Temos que imaginar aquelas tardes de sábado e domingo, sem TV, sem rádio, sem vitrola, que ainda era um equipamento para as famílias mais ricas. O cinema ainda era caro, logo, não podia ser tão frequente.
No casamento, a mulher conquistava a "liberdade" que na prática significava ter um novo dono: o marido. A fidelidade era uma regra absoluta para a mulher, enquanto para os homens era uma questão relativa. O casamento era sinônimo de servir ao marido e à família, assim como a vida doméstica em si. O casamento era considerado um compromisso para toda a vida, independentemente da felicidade do casal, e a separação era algo impensável. Para a mulher, mesmo que o namoro tenha levado a escolher um homem que não a fazia feliz, permanecer casada era o que a sociedade esperava, para não prejudicar a família.
Então o que era noivado? A transição entre o namoro e o casamento. Tudo encaixava perfeitamente. Só mesmo algo externo à sociedade poderia romper com as certezas da época. Mas isso fica para o nosso próximo encontro.
Atestado de Óbito Político
José Augusto Zaniratti - 19/02/2024
Não sou vidente, não sei ler cartas de Tarot e não jogo búzios. Minha relação com a previsão do futuro é nula. Mas o que eu posso afirmar, categoricamente, é que os simplistas morrerão, serão assinados por suas omissões, ao repetirem falsas verdades geradas pela mão opressora da desinformação e generalizações. A ignorância mata. Essa foi uma das frases que usei ao fim de uma discussão com um ex-amigo. Esse desabafo, na forma de texto, é o resultado da constatação de que as informações disponíveis são incapazes de iluminar seres que ainda andam pelas trevas.
Não vou votar neste ano, a política não muda a vida.
Esta afirmação é uma pessoa simplista e incapaz de perceber o impacto significativo que as decisões políticas têm em nossa sociedade. A política abrange questões que afetam diretamente nosso dia a dia, como saúde, educação, segurança, transporte e meio ambiente e etc. Negligenciar a importância do voto é abrir mão de uma ferramenta fundamental para moldar o futuro do país. Ora, a política é basicamente a defesa de interesses, e como temos uma sociedade desigual e com diferentes visões de mundo, é evidente que temos interesses distintos, ideias antagônicas e, muitas vezes, contraditórias. Ao participar ativamente das eleições, podemos eleger representantes comprometidos com políticas que promovam nossos interesses. A política é uma via para a mudança e é essencial que todos exerçam seu direito de voto para construir uma sociedade mais justa e inclusiva.
Embora seja compreensível a frustração ou descrença em relação a alguns políticos, é importante destacar que todos eles foram eleitos pela população. Se a realidade não foi alterada, nós mesmos somos responsáveis por escolhas inadequadas ou por omissão.
A cada decisão em uma Câmara de Vereadores, em uma assembleia legislativa, no congresso ou mesmo do poder executivo ou judiciário, nosso dia a dia fica diferente, nossas vidas são alteradas radicalmente. Podemos não observar, mas isso é um fato. A inflação, o preço da gasolina, a falta de políticas públicas, a insegurança nas ruas, a falta de vacinas, os impostos pagos, os serviços públicos — tudo isso não impacta nossas vidas? A política possui incidência direta em todas as áreas de nossa vida. Decisões políticas afetam todos os sistemas que envolvem nosso cotidiano, desde o momento em que acordamos até o momento em que voltamos para casa. Através do voto, temos a ARMA para mudar o rumo de muitas coisas, escolher representantes que defendam nossos interesses e trabalhem para melhorar todos os setores. É a única forma de não sermos prejudicados pela negligência e pelo simplismo.
Além disso, a política é a forma de exercermos nossa cidadania e garantir a democracia. Ao votar, decidimos, influenciamos as políticas públicas e contribuímos para a construção de uma sociedade mais justa, de acordo com nossa visão de mundo. Ao contrário, a abstenção nas eleições favorece candidatos e ideias que não representam nossos interesses. Ao nos abstermos de votar, permitimos que outros decidam por nós e possam impor políticas e medidas que prejudiquem nossa vida e a vida daqueles que nos cercam. Pior, é como passar um cheque assinado sem definir valor.
No entanto, também não resolve colocar nas urnas um voto Pilatos, isto é, votar em qualquer um e não acompanhar, participar e cobrar sobre decisões inadequadas. Fazer política é um processo contínuo de engajamento e participação, é nos envolver em movimentos sociais, organizações não governamentais e grupos de pressão para lutar por causas nas quais acreditamos. A política é uma ferramenta para promover mudanças e buscar soluções para os problemas que enfrentamos em nossa sociedade, mas é a luta diária que garante o rumo da cidade em que vivemos.
Portanto, "Não vou votar" é como permitir nossa própria morte, é um atestado de óbito político, é mostrar que estamos contra a humanidade. Como resposta às minhas afirmações, ouvi outra célebre frase: "Todo político é ladrão ou corrupto." Toda generalização é injusta, simplista e desinteligente. Fazer essa afirmação em relação aos políticos ou a qualquer outro segmento social é estigmatizar, é afirmar sem basear em fatos concretos, mas sim em estereótipos e preconceitos.
A política é uma área complexa e diversificada, composta por indivíduos com diferentes valores, motivações e ética. Embora seja verdade que existem políticos que se envolvem em atos de corrupção e desonestidade, não se pode afirmar que todos eles são ladrões e corruptos. Essa generalização ignora a existência de políticos honestos e comprometidos com o bem comum, que trabalham para melhorar a sociedade e promover o desenvolvimento. A corrupção não é exclusiva da política. Ela está presente em diversas esferas da sociedade, seja no setor privado, no meio acadêmico ou em outras instituições. Focar apenas nos políticos como sinônimo de corrupção é uma simplificação equivocada que desconsidera a complexidade do problema. Ao descredibilizar a política como um todo, afastamos as pessoas do engajamento cívico e da participação democrática. Generalizar é sempre demonstração de preconceito, é perpetuar estereótipos. Em vez de generalizar e rotular, devemos buscar uma análise mais crítica e cuidadosa, avaliando individualmente cada político, acompanhando suas ações, promovendo assim um debate construtivo e uma visão mais equilibrada sobre a política.
Brasil: as suas contradições
José Augusto Zaniratti - 12/02/2024
Nosso país é um conjunto de contradições e amado por todos nós. O Brasil é como cada um de nós, temos nossas contradições ideológicas, afetivas em nossas consciências.
O Carnaval é, sem dúvida, o maior espetáculo do planeta Terra, gostemos ou não da tal folia. Do ponto de vista da economia, a semana de Carnaval movimenta mais de 9 bilhões de reais em todo o país, sem falar em toda movimentação do tecido econômico durante todo ano na preparação da semana de Carnaval. Temos o maior bloco de rua do Mundo, o Galo da Madrugada, de Pernambuco, com mais de 2,5 milhões de membros no desfile deste ano. Em 3 dias de folia no Rio de Janeiro, é estimado 5 milhões de pessoas nas ruas, em São Paulo, mais de 15 milhões nas ruas. Nestas ruas, salões, avenidas e sambódromos, vemos centenas de letras e melodias de sambas enredos criados e milhares de fantasias, simples e até de luxo, confeccionadas pela generalidades de anônimos gênios criativos. Em meio a esse espetáculo temos projetos de reaproveitamento das toneladas de fantasias, reciclagem das fantasias e ações efetivas de neutralização de carbono, além da movimentação financeira, gerando renda para muitos após os dias principais de Carnaval.
Em Salvador, por exemplo, mais de sete toneladas de resíduos são recuperados dos camarotes e até mesmo a água do ar condicionado é reaproveitada para reuso em banheiros e outros usos onde não é necessário água tratada para consumo humano. O material recolhido, além de ser comercializado para outros eventos, há projetos de sustentabilidade que viabilizam grupos de mulheres criando bolsas e sacolas feitas de lonas usadas, retiradas após o carnaval, gerando renda e, ao mesmo tempo, gerando consciência ecológica da população.
E nem falo das belezas naturais em todo território, tão diversificada e apreciadas por nós e milhões de turistas que nos visitam todos os anos, fazendo girar milhões de reais e dólares em todos os períodos do ano, pois há clima que atraem turistas em todas as partes do país. Mais ainda, a biodiversidade é ponto alto nas pesquisas científicas aqui e no exterior.
Mas paralelo a tudo isso a dengue cresce e já vitimou 400 mil pessoas e já temos 62 mortes confirmadas este ano, até 11 de fevereiro, e centenas de casos em investigação. É verdade que o Brasil é o único país que possui a vacina japonesa Qdenga, em seu sistema único de saúde universal, SUS, sistema que atende a todos os brasileiros, independente de sua situação financeira. Mas isso não apaga a falta de consciência da população que ainda não consegue impedir a proliferação dos mosquitos, que transmitem a dengue e outras doenças, que poderiam, perfeitamente, ser evitadas pelos cuidados que cada cidadão e as prefeituras poderiam desenvolver. É verdade também que as chuvas favoreceram a reprodução do mosquito, mas ainda assim, os cuidados individuais e governamentais poderiam minimizar os efeitos trágicos desta e de outras doenças transmissíveis.
São os contrastes de um país continente, cheio de boas iniciativas e baixa consciência e solidariedade.
Mas o Carnaval é, também, uma oportunidade para que diferentes grupos sociais se misturam e interagem, independentemente de sua origem, classe social ou status. Durante o Carnaval, as pessoas são encorajadas a se divertir e a celebrar juntas, promovendo um senso de comunidade e união.
No Brasil, carnavalizar é um reflexo da cultura brasileira, que valoriza a alegria, a diversidade e a celebração coletiva. É uma expressão cultural única que permite que as pessoas se libertem das convenções sociais e experimentem um senso de igualdade, de crítica social, política e de pertencimento durante esse período festivo.
No contexto da "carnavalização", as pessoas são incentivadas a expressar sua criatividade, liberdade e espontaneidade de maneiras que podem ser consideradas inusitadas ou até mesmo transgressoras em outros momentos do ano. Em meio do Carnaval, as pessoas são encorajadas a se vestirem de forma extravagante, a dançar, a cantar e a participar de festas e desfiles de rua. Além disso, é comum manifestarem-se através do humor, da sátira e da crítica social presentes nas marchinhas, nos sambas-enredo, misturando na bateria, tambores, pandeiros e guitarras, e em todas performances artísticas.
Durante essa época, é possível presenciar desfiles de blocos carnavalescos e escolas de samba que abordam temas políticos, sociais e culturais de forma satírica e irreverente. Essas manifestações têm o objetivo de subverter normas e convenções sociais, permitindo uma liberação temporária das restrições e hierarquias sociais. Dessa forma, o Carnaval traz consigo o germe da mudança, pois através dos temas abordados nos desfiles, é possível fazer críticas políticas via sátira e deboche, homenagear pessoas com trajetórias positivas históricas, temas da mitologia grega e romana, de eventos históricos do Brasil e questionar questões como racismo, homofobia, discriminação contra mulheres, idosos e povos e comunidades tradicionais.
É nessa atmosfera de carnavalização que as pessoas têm a oportunidade de questionar seus valores e princípios pouco nobres, e talvez adquirir novos valores, ou pelo menos momentos de reflexão que possam levá-las a sair das trevas.
Escolas sem Celulares é a volta às trevas
José Augusto Zaniratti - 05/02/2024
A prefeitura do Rio de Janeiro anunciou, no dia 2 de fevereiro deste ano, a proibição do uso de celulares e dispositivos eletrônicos em escolas públicas municipais. Essa proibição, que entra em vigor em 30 dias e revoga a legislação anterior que limitava o uso dos aparelhos apenas dentro da sala de aula, é um passo na direção do atraso. Estamos, na verdade, retrocedendo para a idade das trevas.
A humanidade avançou muito em termos de tecnologia, mas muito pouco moralmente. Justamente nos avanços que conquistamos, há movimentos para restringir os instrumentos que proporcionam crescimento do conhecimento. No século XX, uma criança de sete anos tinha mais conhecimento do que o imperador da China no século XVI. Esse império, que era uma potência oriental, desprezava relações comerciais com os impérios português e inglês, por não oferecerem nada de interessante aos chineses, que eram muito mais avançados em termos de tecnologia. As potências ocidentais da época, como Portugal, Espanha e Grã-Bretanha, tiveram que buscar alternativas para conquistar o interesse chinês em fazer comércio com o Ocidente, a fim de acumular capital, conhecimento e tecnologia. Não deveríamos fazer algo semelhante, usando os celulares, para aproveitar a agilidade de acesso aos conhecimentos já existentes e ir além do comum, da mesmice?
Essa proibição de celulares é uma ação clássica dos reacionários. O medo da tecnologia é a expressão do medo que o criador tem de sua própria criatura. Quando a humanidade é incapaz de estabelecer uma relação com as novas técnicas, ela as proíbe, como se a proibição fosse capaz de impedir o avanço da tecnologia. Isso é como varrer aquilo que chamam de "lixo" ou "perigoso" para debaixo do tapete. Lembro-me muito bem das críticas à televisão na década de 60, onde assistíamos aos filmes, desenhos e novelas produzidos pelos adultos - produtos de exportação nacional. Lembro-me das severas críticas aos toca-discos e toca-fitas, que supostamente formariam uma juventude transviada. E os videogames, que iriam alienar a juventude e moldar a moral e torná-los violentos. Na moda, as calças boca de sino eram consideradas a expressão da perversão dos jovens que gritavam “faz amor, não façam a guerra”. O movimento pacifista dos anos 60 e 70 tentou ensinar que a guerra é um erro e que fazer amor, mesmo que naquela época isso fosse tabu para os não casados, era muito mais saudável do que matar jovens na guerra do Vietnã. Mas não adiantou, parece que os adultos foram incapazes de compreender. O movimento hippie estava correto, mas o capital falou mais alto novamente. A afirmação de "faça amor" foi entendida como anarquia, libertinagem e ausência de respeito entre as pessoas. Parece que buscar a paz, a harmonia e a compreensão em nossas interações diárias, entre pessoas diferentes era desimportante. Importa sempre aumentar o lucro com a venda de armas.
Esse é o modelo conteudista, isto é, o aluno precisa reproduzir os velhos conhecimentos que chamam de base. É assim que a escola se abroquela no passado e não muda. Vejamos, só existe uma única forma de somar? Albert Einstein criou uma parte enorme da matemática, no entanto, na escola tinha problemas com a autoridade, ou será que a escola para ele era um problema? Só existe uma única forma de escrever um texto? Claro que não, em outubro do ano de 2000 foi ao lançamento do livro que meu filho, junto com seus colegas, escreveram, e eles estavam na primeira série do ensino fundamental, aos 7 anos. Só há uma forma de resolver um problema? Claro que não. Isso significa que a tecnologia é uma ferramenta que nos faz pensar. Mas a tecnologia não produz milagres se não tivermos educadores - e não apenas professores - incapazes de instigar, questionar, estimular o processo de ensino-aprendizagem, se não houver disposição do corpo discente em aprender com o corpo docente. Os conteúdos estão todos na internet, mais avançados e em maior quantidade do que os professores possuem, basta estimular, ser capaz de orientar para que cada aluno aprenda.
Onde está o problema? Na incapacidade de dialogar, de reconhecer de que de tecnologia está mais próxima do jovem do que dos professores, que via de regra, os profissionais da educação possuem estudo acadêmico antiquado, de universidades que, na maioria da vezes, desconhecem a realidade, vivem em uma bolha de saberes do passado e, que principalmente, não ensinam os meios para que cada um aprenda a criar conhecimento novo e que seja capaz de procurar os conhecimentos necessários para conceber novas ideias e teses inovadoras de abordagens de problemas, que pensem fora da caixa. Isso é estudar, isso é educar, algo bem mais amplo do que entrar na sala de aula, fazer a chamada e conversar bobagens na sala dos professores.
Proíba o celular e duas situações serão vivenciadas: uma regra inócua ou desinteresse total por aquilo que muitos chamam de escolas e aulas. Se ainda não fomos capazes de construir um modelo de educação que faça com que os jovens tenham vontade de ir para a escola, que gere meios para que cada um construa sua forma de apreender e de desenvolver-se para criar novos conhecimentos para melhorar nossas vidas, pergunto: como fica a escola, a sala de aula, a educação formal com o advento da inteligência artificial? Boa pergunta, não é mesmo? Isso fica para um outro momento. Enquanto isso, pense nisso e observe o retrocesso que se avizinha nas escolas.
A Humanidade Evoluiu?
José Augusto Zaniratti - 29/01/2024
A natureza humana é um tema complexo que tem intrigado filósofos, cientistas e pensadores ao longo da história. Refere-se às características e comportamentos inerentes aos seres humanos, que moldam suas interações, escolhas e desenvolvimento como espécie. Ao examinar a natureza humana de forma crítica, é possível explorar suas qualidades positivas, mas é difícil dizer que elas superam as práticas devastadoras.
A humanidade é uma espécie falha? Somos capazes de grandes coisas, mas também somos capazes de grande mal. Somos capazes de amar e de compaixão, mas também somos capazes de ódio e violência. Somos capazes de criar coisas belas e inspiradoras, mas também somos capazes de destruir e poluir. A natureza humana é complexa e contraditória. Somos uma mistura de bem e mal, de luz e escuridão. Somos capazes de atos de grande bondade e generosidade, mas também somos capazes de atos de grande crueldade e egoísmo.
A humanidade fracassou? Ela permite que o lado escuro de sua natureza humana domine. É a humanidade que é guiada pelo medo, pelo ódio e pela ganância. É a humanidade que é incapaz de ver a beleza e a maravilha do mundo, e que só vê a escuridão, a brutalidade e a feiura. A humanidade destrói o meio ambiente, que mata e oprime outras espécies, que faz guerras e comete genocídios. É a humanidade que é incapaz de viver em paz e harmonia, e que está sempre buscando poder para dominar sua própria espécie. Ela não consegue aprender com seus erros, e continua a repetir os mesmos erros século após século. É a humanidade que é incapaz de superar suas diferenças e que está sempre dividida por raça, religião e ideologia.
Eu me pergunto se evoluímos. O chamado Homo sapiens sapiens, que surgiu entre 350 a 200 mil anos atrás, evoluiu lentamente, mas se considerarmos o aspecto tecnológico, é fato, que nos últimos cem anos avançamos muito. No entanto, moralmente, não estamos tão longe da espécie primitiva que fomos. No entanto, quando se trata de evolução no sentido mais amplo, a progressão da humanidade tem sido notavelmente lenta. Embora tenhamos conquistado grandes feitos em termos de conhecimento e inovação, muitos problemas persistentes continuam a desafiar nossa capacidade de crescimento e transformação significativa.
Um exemplo disso é a persistência de desigualdades sociais e econômicas em todo o mundo. Apesar do progresso na luta pelos direitos humanos e pela justiça social, ainda há uma grande disparidade entre ricos e pobres, bem como entre diferentes grupos étnicos e culturais. A falta de progresso significativo na redução dessas desigualdades revela uma certa estagnação na maneira como a humanidade lida com questões fundamentais de justiça e equidade.
Além disso, a degradação ambiental e as mudanças climáticas representam um desafio urgente que a humanidade enfrenta. Embora tenhamos conhecimento científico e tecnológico para mitigar esses problemas, a ação coletiva necessária para enfrentá-los de forma eficaz tem sido insuficiente. A falta de cooperação global e a relutância em tomar medidas significativas refletem uma certa inércia em relação às questões ambientais, apesar das consequências cada vez mais evidentes.
A natureza humana tem mostrado uma tendência a evoluir vagarosamente do ponto de vista moral. Além da violência relatada todos os dias, as desigualdades sociais e econômicas persistem em todo o mundo. Em pleno século XXI convivemos com enorme desigualdade de renda; em muitas partes do mundo, o acesso à educação de qualidade ainda é limitado ou inexistente; desigualdade no acesso à saúde; a desigualdade de gênero é uma realidade generalizada e as disparidades raciais e étnicas são palco de guerras fratricidas e sem sentido.
Nesses tempos sombrios da humanidade, é preciso retomar a frase de Antonio Gramsci: "Contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática." Envoltos nesse turbilhão de trevas, não podemos nos deixar paralisar pelo pessimismo ou pela visão crítica da realidade, mas sim nos engajar ativamente na prática de ações solidárias. Essa prática nos impulsiona a acreditar na capacidade de superação da humanidade e no poder da ação coletiva para transformar a realidade. Mesmo com pequenas ações, podemos fazer a diferença.
Quilombolas: Políticas Públicas
José Augusto Zaniratti - 08/01/2024
Não sei se é por ignorância ou por vergonha que uma parte da população brasileira esconde a existência de quilombolas. Digo por ignorância porque possivelmente desconhecem a importância do papel histórico dessas comunidades para nossa identidade. Digo por vergonha, porque desejam esconder os quilombos ao acreditarem na versão sobre essas comunidades que a antiga elite escravista do Brasil sedimentou ao longo da história, retratando-os como locais de criminosos e culto ao demônio.
Todos eles erram, não só pela ignorância em pleno século XXI, mas também por ignorarem a realidade. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui aproximadamente 1,3 milhão de quilombolas (0,65% da população nacional) e existem 17,5 mil quilombolas no Rio Grande do Sul (0,16% da população total do RS) distribuídos em 146 comunidades quilombolas identificados. Os dados do Censo de 2022 revelam ainda que 55% da população brasileira se autodeclarou parda ou negra. Essa realidade não está representada nas instâncias de poder, e a história dessa população, que hoje é maioria, foi contada principalmente por mãos brancas da elite do passado.
A história real é bem diferente. Os quilombos, localizados em áreas remotas na época, foram refúgios para os negros que se libertavam da escravidão, onde se organizaram como homens e mulheres livres. Além disso, em muitos quilombos, eles acolhiam indígenas e até mesmo brancos que haviam sido excluídos de seus grupos originais. Em outras palavras, isso é um exemplo de resistência, autodeterminação, cidadania e democracia. Foi assim que conseguiram preservar sua cultura, língua e tradições religiosas, que não têm nenhuma ligação com a ideia de demônio, criada pela cultura católica.
Por todas essas razões, é fundamental realizar uma reparação histórica para essa população por meio de políticas públicas que garantam o desenvolvimento dessas comunidades. Embora existam inúmeras dificuldades, os quilombos são reconhecidos como territórios tradicionais e possuem direitos garantidos pela Constituição brasileira.
A Fundação Palmares, que durante o período de 2019 a 2022 enfrentou dificuldades, hoje retoma o registro dos quilombos junto ao Governo Federal, buscando garantir o reconhecimento oficial das comunidades quilombolas e de seus territórios. Isso permite que elas tenham direitos e proteções legais, acesso a políticas públicas, programas de apoio e recursos financeiros destinados à preservação de sua cultura, desenvolvimento social e econômico, e garantia de seus direitos assegurados pelo Estado brasileiro. É dessa forma que podemos reparar os erros do passado, reconhecendo que os territórios ocupados pelos povos indígenas e quilombolas pertencem a eles, o que impede invasões e garante sua posse e uso sustentável, buscando garantir sua existência e preservação cultural, visando a equidade e a inclusão social.
É evidente que existem procedimentos, vistorias técnicas e documentos necessários para que o registro dos quilombos seja efetivado junto à Fundação Palmares. Esse processo visa o reconhecimento dos direitos de posse ancestral das comunidades remanescentes de quilombos sobre suas terras, acesso a projetos de desenvolvimento sustentável, assistência técnica, financiamentos e programas de apoio nas áreas de saúde, educação, produção, entre outras. Além disso, busca-se preservar a memória e a cultura, fortalecendo a identidade, as tradições culturais e o patrimônio histórico dessas comunidades, e demarcar os limites da área ocupada tradicionalmente pelos remanescentes de quilombo, impedindo ocupações indevidas.
Qual é o nosso papel nesse processo? É divulgar e informar essas populações sobre seus direitos e ajudar a reparar séculos de escravidão. A lei não se realiza apenas por existir, mas pela capacidade da população em buscar sua consecução. Isso é mudar a história e assim, eliminar as TREVAS que ainda assombram nossa cultura.
A Educação do Brasil: Anacrônica
José Augusto Zaniratti - 01/01/2024
Quem descobriu o Brasil? Certo que não foi Cabral, nem foi o primeiro a chegar aqui. Primeiro porque o Brasil não estava encoberto para ser descoberto. Segundo, porque outras civilizações, possivelmente, aqui chegaram bem antes dos Portugueses.
Os Siberianos? O Estreito de Bering, que liga a Ásia à América do Norte, pela região conhecida hoje por Alaska, pode ter sido o primeiro palco para grande movimento migratório, que se estendeu por um período muito longo, que possivelmente, deu origem aos povos ameríndios que povoaram a América, incluindo o Brasil. Há evidências nítidas sobre isso. Observando a formação do rosto de diferentes povos indígenas que vivem no Brasil, nota-se semelhaça com os rostos asiáticos. De qualquer forma, os indígenas estavam aqui bem antes dos portugueses. Chineses ou Japoneses? Alguns estudiosos defendem que os povos asiáticos, como chineses ou japoneses, poderiam ter chegado ao Brasil em viagens comerciais ou acidentais. Há registros arqueológicos de cerâmica chinesa encontrada no norte do país. Os Fenícios? É possível que comerciantes fenícios ou cartagineses também poderiam ter chegado às costas brasileiras em suas navegações pelo Atlântico. Consta que a navegação fenícia atingiu seu auge durante os séculos XI e VIII a.C. Schwennhagen, citando Diodoro Sículo, História Universal, Livro 5, capítulos 19 e 20, quando aborda a primeira viagem de uma frota de fenícios a ter atravessado o Atlântico e chegado às costas do Nordeste do Brasil. Para evidenciar isso, Schwennhagen afirma “que a língua tupi pertence à grande família das línguas pelasgas, sendo um ramo da língua suméria”. Os Polinésios? Os povos da região da polinésia, segundo alguns historiadores, teriam cruzado o Pacífico e sido os primeiros a chegar à costa leste brasileira, por volta do ano 400. As evidências arqueológicas em São Paulo e semelhanças culturais e linguísticas reforçariam essa possibilidade. Os Vikings? Na revista “Nature”, em 2021, mostrou que os vikings estiveram na América do Norte em 1021, ou seja, quase 500 anos antes de Cristóvão Colombo, “a partir da descoberta de fragmentos de madeira que continham marcas de uma tempestade solar do ano 992”. É possível que tenha chagado ao Nordeste do Brasil por volta do ano 1000 d.C, deixando como vestígio o nome dado a uma terra que batizaram de "Markland" ou "Vinland" (terra de bosques).
Embora estas informações ainda sejam objeto de debate entre os historiadores, isso revela que há um problema na educação brasileira que ainda reproduz conhecimento antigo ou questionável.
O modelo de educação no Brasil recebe críticas em diversas áreas. Alguns dos pontos mais frequentemente serão destacados em 2024, quando os candidatos certamente estabelecerão a Educação como prioridade em suas candidaturas. Hoje sabe-se que as causas dos problemas nesta área são: a infraestrutura precária; precária formação e capacitação dos professores; a disparidade entre escolas públicas e privadas, assim como entre regiões do país; currículo desatualizado; o sistema de avaliação do desempenho dos alunos e das escolas; insuficiência de recursos financeiros para a educação; a deficiência e a garantia de acessibilidade no ambiente escolar e os tais baixos salários pagos aos profissionais da área educacional.
Não creio que o problema principal esteja neste rol de causas. Ainda que tudo isso fosse resolvido, restaria o principal: modelo de Educação Anacrônico! Devemos observar o modelo educacional no Brasil, com raras exceções de escolas e profissionais, reforça e avalia a capacidade de uma mera reprodução de conteúdos já conhecidos, afastam a tecnologia da sala de aula como os celulares. É um modelo que não ensina e nem valoriza, como principal, a ressignificação do conhecimento e tão pouco a criação de novo conhecimento. Há um processo absurdo de fazer a escola competir com a “internet”, com o Google, com a inteligência artificial. Ao contrário, conhecer as técnicas, aprender a usa-las para avançar sobre o que já conhecido é a base para um modelo de educação adequado para criar conhecimento novo e nova tecnologia. Nossa educação atingiu um bom grau de inclusão, precisa agora é uma revolução no modelo educacional para fugir das TREVAS e avançar para o século XXI, onde ainda não chegou.
Bolsa Família - Políticas Públicas
José Augusto Zaniratti - 25/12/2023
Há uma diferença fundamental entre as políticas públicas Bolsa Família e as Universidades Federais. As últimas até 2012 eram a bolsa família das famílias mais abastadas que podiam garantir as melhores escolas aos seus filhos. Estes acabavam ocupando as vagas das universidades federais gratuitas, enquanto os filhos da população pobre estavam alijadas desta “bolsa familiar” na educação. Ninguém pode esquecer que a Universidade Federal foi uma política pública para a elite brasileira, diferentemente da Bolsa Família que visa atender a população absolutamente carente do país.
A primeira universidade foi criada em 1920 no Rio de Janeiro, a segunda em 1934 em São Paulo. Em 1937, a UFRJ foi reorganizada e transformada em Universidade do Brasil (UB), incorporando diversas unidades e institutos já existentes e aos poucos outras universidades federais foram criadas ao longo dos anos em diferentes estados do Brasil, processo gradual de criação e desenvolvimento de instituições de ensino superior em todo o país.
A partir de 2012, com a política pública das cotas, as universidades públicas federais passaram a incluir, com reservas de vagas, estudantes negros, pardos, indígenas, com deficiência e de baixa renda da escola pública. Essa é uma correção da finalidade das universidades e institutos federais, além de uma medida de reparação histórica.
Já as características do Bolsa Família, criado em 2004, reuniu diferentes programas(1) iniciados no Governo de Fernando Henrique Cardoso e ampliou sua abrangência. É um programa de transferência direta de renda que beneficia famílias em situação de pobreza e extrema pobreza, busca promover o alívio imediato da pobreza e reforçar o exercício de direitos sociais básicos nas áreas de saúde e educação. Mas a elite não se conforma com políticas de inclusão social e econômica, num país brutalmente patrimonialista, a crítica é feroz e insana.
Dezem, os menos avisados, argumentando que a política pública Bolsa Família:
Gera dependência entre educação e transferência de renda no programa, levantando questões sobre sua eficácia nesse aspecto;
Que o aspecto regional da questão social pelo Bolsa Família, questiona seus impactos sociais e a adequação a diferentes realidades do país;
Que é questionável a efetividade do programa, levantando a necessidade de uma análise mais aprofundada dos resultados alcançados;
Por promover um modelo assistencialista, no qual as famílias recebem benefícios financeiros sem a necessidade de realizar contrapartidas, como buscar capacitação profissional;
Cria uma dependência das famílias em relação aos benefícios governamentais, desestimulando a busca por emprego ou a melhoria das condições de vida de maneira autônoma;
Falta de efetividade na fiscalização e na verificação das condições socioeconômicas das famílias beneficiárias, o que poderia resultar em repasses indevidos ou em benefícios destinados a quem não realmente necessita;
Fragilidade na transição das famílias beneficiárias para uma condição financeira autossustentável, por falta de políticas complementares dificulta a superação da situação de vulnerabilidade;
À politização do programa, sendo utilizado como instrumento político, para angariar votos.
Sim, de fato, há dependencia entre educação e transferência de renda, creio que o exemplo dado anteriormente abordando a Universidade federal deixa nítida essa relação e nisso não há o que questionar.
As diferenças sociais são evidentes, mas não é o valor mínimo transferido que poderia impactar, minimizar as diferenças sociais, mas retira as famílias da absoluta pobreza.
O Programa Bolsa Família é monitorado anualmente e a cada dez anos revisado com base nos dados levantados neste período, alterando para buscar cada vez mais eficácia.
A fata de contrapartida da população e a afirmação de gerar dependência das famílias e´, em si, afirmação preconceituosa, por acreditar que as pessoas preferem passar dificuldades e que não desejam melhorar suas condições sociais e econômicas.
A fiscalização é uma ação das prefeituras, é uma política compartilhada e esta é resultado da escolha da população local faz à cada quatro anos, quando escolhem seus representantes. É também a própria população que pode fiscalizar a aplicação dos critérios do programa. É assim a democracia.
Ora, não se pode olhar uma política pública isolada das demais. Há outras políticas que buscam a melhoria que visam criar as condições micro e macro econômicas para a transição para outro patamar social destas família.
Tudo que fazemos é política. O uso indevido das políticas públicas depende do caráter daqueles que representam a sociedade e não é uma política pública que vai evitar o oportunismo das pessoas que lideram a sociedade. Cabe ao eleitor fiscalizar e escolher aquelas pessoas que fazem da política um instrumento de avanço social, econômico e moral.
Ao contrário destas críticas, esse programa reduziu a pobreza e a desigualdade social no Brasil, melhorando a alimentação, a saúde e a educação deste segmento. Nenhuma destas críticas preconceituosas invalidam os benefícios do programa, mas refletem diferentes visão de mundo e perspectivas sobre sua implementação e impacto de medidas para buscar a equidade, tão necessária. Mais ainda, faz com que esse valor circule na economia, ampliando a capacidade de consumo deste setor da população. É assim se pode buscar, gradualmente, o fim das trevas.
(1) O programa foi criado pela e regulamentado pelo Decreto nº 5.209/2004. Ele integra diversos programas sociais do governo, como o Programa Nacional de Renda Mínima vinculado à Educação (Bolsa Escola), o Programa Nacional de Acesso à Alimentação (PNAA), o Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à Saúde (Bolsa Alimentação), o Programa Auxílio-Gás, e o Cadastramento Único do Governo Federal.
As Cotas - Políticas Públicas
José Augusto Zaniratti - 18/12/2023
Políticas Públicas é uma daquelas expressões que ouvimos muito em reportagens e discursos e temos uma vaga ideia sobre o que seja. Aprofundar o entendimento sobre essa expressão é vital para diminuir nossos preconceitos sobre as ações governamentais e de Estado.
Dia 18 de dezembro de 2023, no ato de posse do Procurador Geral da República - PGR, Paulo Gustavo Bonet Blanco, entre outras afirmações, o novo procurador apontou para uma das funções da PGR, que é fazer cumprir as políticas públicas do país. De fato, esse é o papel da PGR. E o nosso papel? Primeiramente é conhecer as razões que embasam uma política pública para evitar fazer afirmações inadequadas e preconceituosas.
Ao consolidar um conjunto de medidas em projetos, programas e atividades, há um enorme estudo anterior sobre a realidade, funcionamento e definição de cenários sobre o tema objeto da política pública em elaboração. É evidente que os conflitos de interesses são inerentes a qualquer ação, e isso não é diferente no caso da elaboração de uma política pública, principalmente quando se trata da reparação histórica de injustiças, como é o caso da política de cotas.
Esta política trata de critérios e regras para a reserva de vagas em instituições de ensino e mercado de trabalho para grupos e etnias historicamente marginalizadas, como negros, quilombolas, amarelos, indígenas, pessoas com deficiência, entre outros. O fundamental é compreender que uma sociedade que pretende ser justa, precisa reparar os erros cometidos ao longo da história. O Brasil, desde a colônia, em função de seu ordenamento ideológico e legal, impediu o acesso à educação de determinados segmentos sociais e econômicos, justamente os mais carentes e discriminados. Esta ação gerou subdesenvolvimento em todos os níveis e a construção e disseminação de preconceitos e práticas discriminatórias que nos assola até hoje. Daí a necessidade de medidas de reparação para nos desenvolver de forma equitativa, com o objetivo de promover a igualdade de oportunidades e combater a discriminação e o preconceito que é marca visível em nossa cultura. Não há dúvida de que as cotas geram conflitos por haver interesses contrários em relação ao público objeto desta política pública, mas é exatamente esse conflito que é necessário ser exposto para que alteremos os elementos ideológicos que ainda permeiam nossa cultura, ainda profundamente machista, racista e discriminatória.
Neste ano foi aprovado no Congresso e sancionada pelo Poder Executivo, o projeto de lei com a revisão da Lei de Cotas, que garante a reserva de vagas nas universidades e institutos federais para estudantes negros, pardos, indígenas, com deficiência e de baixa renda da escola pública. A revisão já estava prevista na Lei 12.711/2012, que criou o sistema de cotas e, como toda política pública, precisa ser monitorada para avaliar os resultados e revisada, neste caso, após dez anos de sua publicação.
As mudanças aprovadas aprofundam e ampliam medidas de acesso nas políticas de cotas nas instituições federais de ensino. Por exemplo, agora foi incluída a reserva de 50% das vagas para estudantes de famílias com renda igual ou inferior a um salário mínimo; as cotas raciais continuam a ser parte integrante da lei, visando a integração de pessoas negras nas universidades públicas e no serviço público por meio de reserva de vagas.
Mas onde estão os argumentos contrários? Menciono alguns argumentos contrários à Lei das Cotas:
A reserva de vagas é a inconstitucionalidade segundo o artigo 5º da Constituição Federal brasileira, que afirma que somos todos iguais, sem distinção de qualquer natureza, neste caso seria uma ação de segregação social e racial
Violam o mérito acadêmico, já que o vestibular seria uma prova “neutra” que classifica os alunos conforme sua inteligência e desempenho.
Forma de tornar o caminho mais fácil, pois os estudantes não chegariam à universidade por mérito e capacidade própria.
Os cotistas ingressam nas universidades com notas mais baixas, o que diminuiria a qualidade do ensino; o ingresso de pessoas com um ensino básico ruim poderia aumentar as diferenças da sala de aula.
As cotas raciais nas universidades vão fazer com que a sociedade se torne racista, acabam discriminando ainda mais os brancos pobres.
Estes e outros argumentos estão eivados de preconceitos e da ideologia dominante que valoriza o poder econômico e a ausência da história como gerador de desigualdades.
A diretiva constitucional aponta para garantir a igualdade e esta só pode ser alcançada se todos têm as mesmas oportunidades indiferentemente das diferenças de raça, poder econômico; de culturas; de situação física. Cabe ao Estado garantir a equidade, logo, proporcionar a todos as oportunidades de acordo com as condições históricas e atuais de cada um. Neste caso, a discriminação importa historicamente às etinias diferentes da branca e das classes ricas, precisam ser discriminadas positivamente para reverter os efeitos que a história do Brasil construiu. Sim, é uma discriminação para compensar os erros do passado que transformou a maior parte de nossa população em cidadãos de segunda categoria. E não menos importante, é necessário dizer que a inteligência é uma construção, sua demonstração é a capacidade de construir novo conhecimento, e não apenas reproduzir o que já é conhecido. É exatamente por isso que oportunizar a todos à universidade é a garantia de que daremos oportunidade a todos os segmentos excluídos, de construir suas inteligências e com isso, todo o país ganhará. Por mais de 500 anos o branco aproveitou os privilégios de acesso à educação, ou alguém discorda disto? A lei das cotas é mais uma política pública que nos dirige para o fim das trevas.
Falta de Gestão ou de Aptidão
José Augusto Zaniratti - 04/12/2023
Uma observação simples de como a condução das questões públicas em uma cidade para observarmos os erros na gestão, na condução das ações públicas. Não é diferente na iniciativa privada quando a segunda geração de proprietários assume o empreendimento, a empresa quebra, geralmente. Claro, isso não é uma regra, mas é a exceção ao sucesso quando um prefeito, um Secretário de Estado ou Governador é elogiado pela forma que conduz as políticas públicas ou empresariais.
Certamente não se trata de falta de cursos acadêmicos, graduação, pós-graduação, mestrado ou doutorado. O que ocorre é que administrar é simples, fazer a gestão é bem mais complicado.
Administrar exige capacidade técnica de gerenciar recursos, processos e pessoas para atingir objetivos pré-estabelecidos e garantir o funcionamento de uma instituição. Fazer a gestão de uma instituição é algo qualitativamente diferente. A gestão abrange não só a parte administrativa, mas também o desenvolvimento de estratégias, tomada de decisões, sustentabilidade, inovação tecnológica e orientação para o alcance de resultados de longo prazo com o objetivo de atender às necessidades da sociedade ou da empresa, conforme a instituição que se trata. Ora, definir estratégia pressupõe capacidade política - claro, não partidária - e senso de prioridade e sensibilidade para buscar a médio e longo prazo, bem mais que a sobrevivência da instituição em questão, mas sua ampliação, qualificação para garantir estabilidade e solidez. Mais ainda, no caso da gestão de instituição governamental, deve prestar contas à sociedade e aos órgãos de controle, garantindo transparência e responsabilidade na utilização dos recursos públicos.
Neste caso, não é a academia que forma um gestor, mas sua trajetória e qualidades pessoais. Em outras palavras, não basta o conhecimento técnico, mas aptidão para realizar a gestão.
É muito comum identificarmos tomadas de decisão desastrosas e geram desgastes enormes pela forma que são definidas e pela ausência de sensibilidade. Quero trazer uma destas decisões recentes que envolve o povo de terreiro do Estado do Rio Grande do Sul.
Há nove dias da realização da II Conferência do Povo de Terreiro do Rio Grande do Sul, o secretário da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos - SJCDH, contrariando a justiça, a cidadania e os direitos humanos, cancelou unilateralmente a sua realização. Não consultou a Comissão Eleitoral da sociedade civil e nem mesmo avisaria esta comissão se não fosse provocado. Sua equipe, preocupada em justificar o injustificável, explicou que para o próximo ano haverá recursos para realizar e em 2023, ainda que tal decisão foi devidamente publicada pelo Governador em 2022, não houve tempo e recursos para realizar.
É uma decisão emblemática, demonstra a total e absoluta incapacidade de realizar a gestão de uma secretaria de estado ou de qualquer outra instituição. Faltou sensibilidade, conhecimento técnico, análise política e ainda desrespeitou a legislação em vigência, inclusive a decisão do Governador, pública desde 2022.
O pior é que continuam dizendo que haverá recursos em 2024 quando a Lei Orçamentária Anual para 2024, que define o orçamento do Estado para o próximo ano, foi aprovada pela Assembleia Legislativa do RS em 21 de novembro de 2023, nove dias antes da decisão imprópria de cancelar a II Conferência do povo de terreiro do RS, um erro de conteúdo, de forma e de fundamento.
É igualmente equivocado trazer à baila os desafios da burocracia excessiva, a falta de recursos financeiros, a necessidade de transparência e prestação de contas, bem como a pressão para atender às demandas da população. Tudo isso já era sabido ao assumir a gestão de uma instituição pública, logo, já fazia parte da realidade. Ser um gestor é superar os limites e desafios, claro, se for um bom gestor.
Traduzindo as consequências, não haverá Conferência do povo de terreiro em 2023, que deveria ter ocorrido em 2018, segundo o Decreto 51.587, de 18 de junho de 2014. Este caso é tão permeado de erros que deveria ser objeto de estudo na academia para mostrar o que NÃO É GESTÃO.
O grande problema é que cada erro de gestão é a população que sofre.
Não encarcere seus sonhos
José Augusto Zaniratti - 20/11/2023
Parece que todos no Brasil entendem tudo sobre política. Na verdade esse entendimento é superficial, raso. Isso leva ao uso de expressões, adjetivos que distorcem o verdadeiro sentido da Política e, principalmente, criam as condições para criminalizar a política e todos que atuam em nome dela. Em outras palavras, não é o conhecimento, mas é o preconceito que permeia todo esse processo.
O preconceito possui duas fontes: a ignorância e as mentiras sobre política veiculadas pelo senso comum. É exatamente a elite que se beneficia com as belas mentiras que a ideologia dominante consolida todos os dias nas mídias sociais, a partir de veículos de comunicação, nas escolas e outros meios.
A política é, propositalmente, transformada em sinônimo de práticas e instituições denominadas de política para desacreditar sua eficácia. Para desnudar essa “confusão”, parto daquilo que não é a essência da política.
Os parlamentares e outros agentes políticos, por exemplo, são eleitos para representarem a população, criar diretrizes e regras para organizar a sociedade, com o objetivo de governar e administrar recursos públicos, tomando decisões e buscando solucionar problemas e conflitos. Mas como são humanos, estão sujeitos a erros, a crimes, às práticas de corrupção e, portanto, podem ser incapazes de cumprir seus objetivos. No entanto, não se pode desacreditar a política ou criminalizá-la pela irresponsabilidade e práticas equivocadas das pessoas escolhidas para executarem determinadas tarefas.
Os partidos políticos, por sua vez, foram criados a partir do século XVII na Grã Bretanha, para agrupar as ideias e as pessoas que passavam a representar interesses da população. Logo, os partidos são ferramentas e não são a política. Se os partidos estão desacreditados pela prática equivocada dos políticos, não se pode dizer que a política não serve para nada.
A política não é a estrutura criada para a atuação dos agentes políticos, não é a regra ou a lei criada, não é uma profissão ou uma empresa ou instituição. Não se pode confundir a política com o processo eleitoral, com a forma de governo ou com um sistema político organizado para facilitar a gestão de uma determinada sociedade.
Mais ainda, corporações, empresas, sindicatos, associações, influenciadores de internet não são a política. Elas expressam o pensamento político das pessoas que as conduzem. Entretanto, se não cumprem o papel esperado, não significa que fazer política é um erro.
É a partir da incompreensão do fundamento da política que surgem as belas mentiras sobre ela, contidas em expressões que adjetivam a política como politicagem; ou a política com "P" maiúsculo ou "p" minúsculo; que todo político é ladrão; que a política é coisa do demônio; que na política só tem corruptos; que política é troca de favores ou uma mão lava a outra. São generalizações que não guardam nenhuma capacidade de conceituar ou explicar a prática política.
A política são todas as ações individuais ou coletivas, institucionais ou não, que visam a defesa de interesses individuais ou coletivos, no âmbito das relações pessoais, íntimas ou não, familiares, de amizades, empresariais, corporativos, intra e entre instituições públicas ou privadas, governamentais ou não. Mas é sempre a defesa de interesses, por isso não existe a política boa e a política ruim, porque os interesses são contraditórios em uma sociedade dividida em classes sociais, que não respeita os direitos de todos, onde uns poucos possuem a maior parte da riqueza produzida socialmente. Como posso dizer que os meus interesses são superiores em relação aos dos outros? Somos seres essencialmente políticos. A política é um dos elementos que nos diferencia dos animais. Nossos ancestrais da pré-história eram selvagens e faziam política, assim como nós hoje. Evoluímos da mais absoluta selvageria da pré-história à diplomacia do século XXI. O que mudou? Foi o jeito de fazer política, mas a essência é a mesma: defendemos interesses. Aos poucos fomos abandonando as armas e assumimos o voto como meio de dirimir diferenças. Portanto eu não posso negar a política, pois, isso significa abandonar nossa humanidade. Então se eu digo: “sou apolítico” é porque eu desisti da vida. Não podemos odiar a política e nem criminalizá-la. Odiar a política é o mesmo do que odiar a humanidade, é encarcerar os nossos sonhos.
O FUTEBOL E A ARENA ROMANA
José Augusto Zaniratti - 13/11/2023
Eu sou daqueles que assiste ao GRENAL junto com dezenas de torcedores adversários, tomando cerveja, brincando, torcendo e aplaudindo. Faço isso na Taberna do Gato 2, aqui em Canoas e nunca presenciei violência, apenas tristeza nas derrotas e euforia nas vitórias.
Mas sei que essa não é a realidade nos estádios de futebol e no entorno deles.
Entre 1992 a 2012 ocorreram 133 mortes de torcedores brasileiros, vítimas de enfrentamentos entre torcidas adversárias e acidentes em estádios. Os últimos cinco anos têm sido os mais violentos: só de 2007 a 2011 foram registrados 73 óbitos, cerca de 54% do total[1]. Só em 2013 foram 30 mortes[2].
Sei também que não é por acaso que atualmente vivemos crescente violência no futebol e na política. O ódio, o racismo e a intolerância ao outro em ambos ambientes tem sido alvo de manchetes todos os dias nestes dois universos. Em 1934, o ditador Benito Mussolini, vinculou seu discurso nacionalista e uma falsa premissa de superioridade aos esforços nacionais para que o país conquistasse a Copa, chegando até mesmo ao ponto de ameaçar atletas e subornar árbitros[3]. Em 1938 Mussolini, para se promover e buscar a unidade nacional em torno de seus ideais, fez uso da ameaça para pressionar seus atletas, enviando na véspera de cada partida o recado ‘’vencer ou morrer[4].’’
No Brasil, começa no início do século XX. Getúlio Vargas usou fortemente o esporte, assim como Hitler e Mussolini, para forjar uma identidade nacional, a partir do futebol, mostrava na imprensa uma unidade em harmonia, sem conflitos e sendo um esporte coletivo.
‘’O esporte das massas tornou-se o reflexo da unidade que se buscava no Brasil durante a Era Vargas. O futebol e a política se entrelaçam neste período e a imprensa, controlada pelo Estado, teve o papel de disseminar o “país do futebol” autêntico, singular e com identidade própria[5].’’
Outro exemplo mais recente foi na década de 70, quando a Ditadura Militar brasileira uso do poder do futebol para reforçar seu ideário ditatorial como meio de dar sentido a um patriotismo nacional, tirando o foco da repressão, tortura e tantas ações sanguinárias daquele período. Eles vinculavam o futebol às propagandas do regime ditatorial com “Pra frente Brasil’’ e “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Inclusive fizeram a troca de treinador, meses antes do início da Copa do Mundo de 1970, retirando João Saldanha e em seu lugar foi colocado Mário Zagallo[6]. Nem preciso dizer que João Saldanha era contra a Ditadura Militar e Comunista, como ele mesmo afirmou:
“Era difícil tolerar um cara com longa trajetória no Partido Comunista Brasileiro ganhando força, debaixo da bochecha deles[7]”.
Portanto, a construção da intolerância, do ódio ao outro, não tem origem nas torcidas organizadas, estas são meios para fluir negação do outro, quando o torcedor perde a noção de que o outro é um ser humano com ele.
“O futebol é hoje a continuação imagética da mítica arena romana[8]”, onde a diversão era ver a destruição do outro, de preferência com ações sanguinárias. Mas como chegamos a isso? Muitos cientistas e especialistas no assunto apontam inúmeras razões. Quero aqui contribuir com uma das razões que creio ser a mais significativa.
Para além do uso do futebol por personagens autoritários, no período dos anos 60 e 70 do século XX, havia, em contrapartida, um ideal coletivo de enfrentamento contra a ditadura, pela luta por democracia, o envolvimento e participação na construção de partidos políticos. Ações que validaram nobres valores a serem conquistados. As novas gerações, que passaram a viver em meio às conquistas, deram novo passo, exacerbando a paixão absoluta, transformando a individualidade em individualismo coletivizado. A internet e as mídias sociais viabilizaram a transformação do sujeito coletivo - validador de ideias e interesses coletivos - no individualismo como sujeito absoluto, a supremacia de um contra o outro, do indivíduo validando o grupo com seus valores egoístas e menos nobres para se tornar visíveis. No futebol, a ideia de que “sou mais torcedor que o outro”, onde o diferente é negado, onde a ideia de derrota não era mais suficiente, agora o desejo mais íntimo era eliminar o outro. A barbárie individual assume seu protagonismo. Antes o coletivo cumpria o papel de moderar as paixões, agora é o indivíduo com mais “likes”, com mais seguidores, aquele que “lacra” é o mais forte e, portanto, o validador do grupo.
O que mobiliza o indivíduo não é mais o universo racional, mas a paixão que pode obscurecer o julgamento lógico, pode nos fazer agir de forma irracional, nos levando a decisões impulsivas ou a uma visão idealizada do objeto da paixão, neste caso, o clube de futebol. O drama de Romeu e Julieta, escrito pelo inglês William Shakespeare entre 1591 e 1595, mostra a paixão no seu estado mais primitivo, exatamente como vemos no futebol, onde tem gerado uma cegueira emocional intensa. Agora cada indivíduo, visto por milhares nas mídias sociais, não quer ser suplantado pelo outro, seu desejo ardente é eliminar o outro de qualquer forma, não aceitar que o outro possa ser melhor que ele, é incapaz de aceitar as diferenças entre indivíduos, entre grupos, entre jogadores. Não percebe que aceitar as diferenças é expressão da inteligência e de alta moralidade, algo que caracteriza - ou deveria caracterizar - a humanidade.
Torcer por um clube não está mais, para grande parte dos torcedores, um sentimento leve, permeado pelo humor, pelas sadias provações em tom de brincadeira. Ao contrário, a agressão verbal, em segundos, vira agressão física para mostrar sua força e compensar a vitória em campo que não veio.
Este clima de violência está também em campo. É muito comum a simulação de uma falta ou agressão que não ocorreu, fantasiando dores com gestos e gritos, como meio de convencer o árbitro para apontar uma falta, um cartão amarelo ou vermelho. Isso é igualmente violência que serve de combustível para a raiva e ódio na arquibancada. A trapaça em campo é plenamente aceita nas arquibancadas e as manifestações são imediatas, embora muitos torcedores nem mesmo tenham conseguido ver direito o que aconteceu. A massa se manifesta movida, se inflama por algo que não ocorreu.
Será que, para amar, é preciso odiar? O FIM DAS TREVAS no futebol passa por uma nova prática moral de expressão da verdade e não pela simulação em campo por parte dos jogadores. Passa também por políticas públicas e, principalmente, pelo reforço às práticas inteligentes como as TORCIDAS MISTAS, onde amigos e familiares dos times adversários, assistem juntos ao espetáculo, brincam, mostram suas cores, sem transformar o ambiente em uma Arena da barbárie da Roma Antiga. É por isso que faço questão de assistir aos jogos junto com os torcedores do time adversário, assim posso mostrar como é torcer por um clube de futebol.
[1] Texto da Revista Espaço Aberto - USP, acessado em 28/10/2023.[2] Fonte: Pesquisas conduzidas por Mauricio Murad, professor da Universidade Salgado de Oliveira, em Niterói (RJ),[3] Túlio Vilela, “Futebol e nazi-fascismo: Esporte serviu propaganda de Mussolini e Hitler”. Disponível em em UOL acessado em 01/03/2022, citado no site Monografia Brasil Escola - UOL[4] Edgardo Martolio, ‘’Vencer ou Morrer’’ Acesso em 01/03/2022, citado no site Monografia Brasil Escola - UOL [5] PRATES, Kelen Katia Silva; CARVALHO, Carlos Eduardo Souza de. Políticos, intelectuais e futebol: a construção da identidade nacional durante a Era Vargas: os políticos, os intelectuais e o futebol. Revista Outras Fronteiras, Cuiabá-MT, vol. 3, n. 1, jan/jun., 2016.[6] Mário Jorge Lobo Zagallo, nasceu em 09/08/1931, como jogador de futebol, foi Campeão Mundial pela Seleção Brasileira em 1958 e 1962 como técnico da seleção brasileira em 1970 e 1994.[7] João Saldanha, o técnico que atormentou a Ditadura’’. Disponível em Observatório da Discriminação Racial no Futebol de 31/03/2019 e acessado em 03/03/2022.[8] Frase de José de Souza Teixeira, professor associado do Departamento de Estudos Portugueses no Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho, em Portugal, 2014.DIREITO AO PASSADO
José Augusto Zaniratti - 06/11/2023
Somos a expressão de nossa práxis, isto é, a coerência entre nossa prática política e social e nossas concepções teóricas. Por sua vez, nossas concepções e nossas práticas são resultado do grau de consciência que temos de nosso passado enquanto indivíduos, enquanto povo e enquanto nação. Sabemos que o direito ao passado, enquanto indivíduos e nação, é protegido pela Constituição Federal de 1988. Nela estão explícitos diversos princípios e direitos que apontam para a preservação da memória e da história, como o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III) e o direito à liberdade de expressão (artigo 5º, IX), importantes para a proteção da memória histórica. Mais ainda, é garantido o direito à memória e à preservação do patrimônio cultural, material e imaterial (artigo 215 e 216).
Esse passado é sempre fruto daquilo que, individual ou coletivamente, fizemos ou permitimos que fosse realizado. Mas o que é mais importante, por se tratar do passado, é fruto do que conhecemos sobre ele. É aí que os primeiros limites se apresentam para nós. Um passado que é, muitas vezes, escondido, fragmentado, subtraído pela familia, pela ausência de documentos, pelo grupo no poder, seja de direita ou esquerda, impede a construção de nossa identidade e até mesmo direciona uma identidade que pode levar à infelicidade de um indivíduo ou à desgraça de uma nação, de um povo.
Um povo sem identidade individual e coletiva, ou com uma identidade forjada num passado parcializado, onde a ação é sempre individualizada, é um povo sem cidadania. Por sua vez, a cidadania é um processo contínuo, resultante da ação de cada indivíduo onde o conhecimento do passado adquirido por cada um é fundamental na construção de seus conceitos e concepções. Por isso o passado, independentemente de sua qualificação, é direito fundamental de todos os seres humanos.
Para nós, nascer, crescer e morrer é suficiente para os seres vivos em geral, mas, absolutamente insuficiente para a grandiosidade que é ser humano. Não basta ter direito à vida, é preciso ter direito a viver como cidadãos e isso só é possível se o direito ao passado for tão fundamental e universal quanto o direito à vida. E a única possibilidade de construirmos nossa identidade como cidadãos é conhecer o passado em sua integralidade a partir das múltiplas interpretações que o conhecimento sobre este enseja. E ainda, se considerarmos que a história oficial é aquela que os vencedores permitem que seja escrita, temos aí mais um limitador sobre o conhecimento integral do passado.
Mas ainda assim não estaria garantido um elemento fundamental para a construção de um cidadão pleno. Não basta conhecer o passado, fundamental é a forma pela qual se conhece e damos um significado.
O sete de setembro tem significado para um morador da favela de uma cidade? A Revolução Farroupilha representa o quê para os moradores da Vila Jardim em Porto Alegre hoje? A abolição tem algum tipo de significado para a população negra do país? O acesso, a vivência e a preservação da cultura ancestral para os povos e comunidades tradicionais são respeitados? São perguntas que só podem ser respondidas se constituirmos uma prática capaz de garantir a perpetuação e difusão das bases históricas e um permanente processo de ressignificação dos fatos, acontecimentos, datas, e do próprio passado de cada povo e de todas as diferentes culturas.
É essencial que se constituam processos onde os fatos deixem de ser uma simples festa ou feriado, e passe a ser um momento onde a população reconheça seu passado e nele se reconheça, se identifique e seja capaz de retirar elementos para a formação de sua consciência e identidade. Se o feriado da Independência do Brasil não servir para que cada cidadão possa refletir sua própria existência, o papel de seus ancestrais, de seu passado, de seu presente e de seu futuro, não passará de um feriado alienante, um passado morto, incapaz de contribuir no processo de conquista.
Portanto não basta o Direito ao Passado, é preciso ressignificar aquilo que passou e tornar cada cidadão num sujeito capaz de conhecer integralmente seu passado, refletir sobre seu presente e, ao mesmo tempo, projetar seu futuro, pois, é exatamente isso que poderá reduzir a possibilidade de manipulação do passado pelos grupos no poder.
POLÍTICA, PIADAS E IDEOLOGIA
José Augusto Zaniratti - 30/10/2023
Nossa tendência é enquadrar as pessoas, os movimentos, as manifestações ou a ausência delas, em caixinhas, em modelos pré-estabelecidos. Mas nós, brasileiros, fomos forjados historicamente, de forma diferente. Somos um povo irreverente, que de alguma forma criou sua própria forma de se manifestar.
José Murilo Carvalho, em seu livro “Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi”, nos fala do que o brasileiro não fez e nem é, isto é, fala de nós dentro de uma expectativa do modelo europeu de manifestação política: “O povo assistiu bestializado à proclamação da República, segundo Aristides Lobo; não havia povo no Brasil, segundo observadores estrangeiros. (...) A liderança radical do movimento operário também não parava de se queixar da apatia dos trabalhadores, de sua falta de espírito de luta, de sua tendência para a carnavalização das demonstrações operárias (...). No campo da ação política, fracassaram sistematicamente as tentativas de mobilizar e organizar a população dentro dos padrões conhecidos nos sistemas liberais. Fracassaram os partidos operários e de outros setores da população; as organizações políticas não-partidárias, como os clubes republicanos e batalhões patrióticos, não duraram além da existência dos problemas que lhes tinham dado origem; ninguém se preocupava em comparecer às urnas para votar. (...) Em termos de ação política popular, vimos que ela se dava fora dos canais e mecanismos previstos pela legislação e pelo arranjo institucional da República”... É evidente que todos esperavam uma atitude política dentro de modelos e regras estabelecidas.
Hoje percebemos que há uma forma intensa de participação política do povo brasileiro. Ele não está alienado. Ao contrário, de um jeito muito especial e próprio, se manifesta com raiva e ódio, como assistimos recentemente no dia 8 de janeiro de 2023, com a destruição de obras nos espaços dos três poderes em Brasília ou através da sátira, do deboche, da crítica bem humorada, da “charge”, que é um tipo de expressão mais focada ou “cartoons”, que têm uma amplitude maior e podem ser mais leves em termos de crítica social ou política. Em outras palavras, nós carnavalizamos nossa participação política e social. O humor abrigando ironia, sátira, sarcasmo. As criativas piadas são outra forma de manifestar nossas posições com relação a qualquer tema.
Quero abordar as piadas, uma manifestação comum e que todos nós conhecemos bem. Até aqui tudo bem, no entanto nossa ideologia vem mudando, nossos valores e forma de pensar já não é a mesma dos anos 50 ou 60. Até esse período, valia tudo, qualquer tipo de piada. Mas a sociedade mudou, parte de nós mudamos. Incorporamos novos princípios, novos valores e passamos a criticar tudo aquilo que nos ofende, nos discrimina, nos diminui.
Novos tempos precisam de novos valores e práticas sociais diferentes. Essa transformação política e ideológica se mostra em todos os setores da sociedade e também em todas as dimensões psicológicas, afetivas e morais.
As piadas que estimulam a discriminação, o racismo, as intolerância religiosa, a inteligência das pessoas, que satirizam as características físicas das pessoas, já não provocam sorrisos em todas as pessoas. E quando achamos graça de uma piada homofóbica ou misógina - atitudes, comportamentos ou ações que demonstram ódio, preconceito ou discriminação contra mulheres, com base no seu gênero - devemos ficar alertas sobre o que pensamos e somos.
A piada ou qualquer outra manifestação capaz de fazer graça, pode ser respondida com sorrisos. O sorriso é uma manifestação de identificação com o conteúdo. Neste caso, estamos dizendo que o que nos foi contado, concordamos, estamos de acordo, acreditamos naquela “verdade” ou naquele estereótipo em forma de piada. Se isso acontece, atenção, fique alerta. Isto é motivo para que façamos uma auto reflexão sobre a ideologia e os valores que ainda estão dentro de nós. Essa é uma prática política adequada?
Pior, quando sorrimos diante de uma piada é porque achamos graça nesse tipo de piada, estamos estimulando uma prática odiosa, estamos reforçando uma prática política completamente fora de qualquer comportamento civilizado do século XXI. Já não é mais possível aceitar ações de carnavalização, eivadas de discriminações ou preconceituosas, que transformam as práticas, opções íntimas ou pessoas, em objetos desprezíveis. Transformar a sociedade passa por mudanças práticas, por alteração de comportamento, de valores, de ideologia. Não preciso ser alguém fechado, carrancudo ou emburrado, basta estabelecer critérios para encorajar alguém em suas ações de humor. Humor é também meio de expressão política e ideológica, por isso, seja uma pessoa seletiva ao estimular ações de humor.
AS GUERRAS QUE VIVEMOS
José Augusto Zaniratti - 23/10/2023
A guerra tem muitas facetas. Será o Fim das Trevas? Estamos no século XXI como se estivéssemos num período da Idade Média, de tortura, de doenças, da barbárie, das trevas. Não se trata apenas de falar sobre a guerra entre o HAMAS e ISRAEL, mas de entender que a guerra não é tão somente o lançar de bombas, de mísseis, de pistolas, de mobilizar exércitos, reservistas, navios e aviões e tantas outras armas, de pólvora e metal, que já ceifou inúmeras vidas e todos os dias fazem mais vítimas.
É verdade de que a guerra que estamos assistindo aparentemente possui um verniz religioso, como se Maomé(1) tivesse mandado assassinar todos aqueles que não seguisse o Islamismo. Esta é uma interpretação equivocada do Alcorão, o livro sagrado do Islã. Esta é mais uma interpretação não histórica, que só satisfaz o desejo ardente de vingança, de ódio, daqueles que entendem que só as armas são capazes de produzir justiça.
Da mesma forma que a Lei de Talião(2) não pode ser entendida como sendo a única forma de enfrentar as diversidades e também a única forma de produzir a justiça em qualquer tempo histórico. Nem Moisés, nem Maomé, nem a Torá(3), nem o Alcorão são suficientes para nos mostrar o bom caminho para viver no século XXI, crescemos em conhecimento científico, e não avançamos quase nada moralmente.
É também evidente que essa guerra não se trata de apenas diferenças religiosas. Há outras razões para que ela exista. Pode ser que a soberania de um povo e a formação de um estado sejam razões suficientes, mas de qualquer forma não justifica a matança que ora vivemos. Se somente com a morte de milhares é possível construir uma Pátria, é sinal de que estamos num estágio de barbárie, moralmente inferiores, que a civilização não existe, que tão pouco a capacidade de amar é uma característica da humanidade ou de parte dela.
Pode parecer muito piegas estas afirmações, no entanto eu entendo que são desejos ardentes de que cada um de nós encontre um caminho melhor para enfrentar as guerras que vivemos todos os dias em qualquer parte do planeta.
A guerra não é somente bombas e armas. Todos nós sabemos que a visão de guerra que é veiculada é, tão somente, o final de um conflito latente que fugiu do controle e planejado pelo ódio.
A guerra que hoje vemos e escutamos no noticiário todos os dias é uma visão pequena do que ela é. Nós no Brasil conhecemos outras armas de fazer a guerra e delas participamos quando não somos ativistas contra a situação de milhares de pessoas que não tem o que comer ou que estão em algum grau de insegurança alimentar. Pois sabemos que um percentual muito pequeno de brasileiros possuem dezenas de vezes mais riqueza do que a maioria da nossa população.
Esta é uma das armas de uma guerra, invisível para muitos, mas sentida na pele de muitos. Aliás a cor da pele e as consequências das diferenças desta cor é outra arma muito utilizada em diversos locais do mundo. O não respeito à diferença é ainda uma das mais graves armas usadas na guerra mais cruel de todas, aquela que não percebemos que somos vítimas ou vilões. Esta guerra quase imperceptível é produto de uma ideologia, de um conjunto de ideias e visões de mundo que nos é passada todos os dias, reproduzida nas escolas, em famílias e também, e talvez principalmente, pelas mídias sociais que pregam o ódio, vingança e mentiras todos os dias.
Não acredito que a guerra no Oriente Médio seja mais ou menos importante e também não acredito que a guerra entre a Ucrânia e a Rússia seja pouco relevante. Todas elas são guerras que não deveriam estar acontecendo em pleno século XXI, mas não acredito que elas sejam as únicas guerras, são parte de conflitos que superaram todos os campos da inteligência moral, da fome, da miséria.
Quantas guerras nós conhecemos contra crianças, mulheres, jovens, idosos e tantos outros no Brasil e fora do Brasil? Por acaso nós esquecemos a guerra contra e por dentro do narcotráfico? Será que não lembramos da morte de Marielle Franco e de tantos outros que na política foram trucidados pela sua militância contra as injustiças e por direitos humanos? A luta pela preservação da Amazônia e diminuição da poluição não é também uma guerra? Ainda lutamos por justiça civilizatória e ao mesmo tempo vivemos luta diária para garantir o direito dos povos tradicionais professarem suas religiões e suas culturas.
Com essas perguntas fica nítido de que guerra não é quando um conflito eclode, mas também é, mesmo quando nos habituamos a viver nela, em meio ao tráfico, como o da violência contra as mulheres, a violência contra as crianças, idosos ou mesmo quando nos acostumamos a violência política.
É certo que estamos em guerra, talvez ainda não tenhamos percebido que somos soldados pela paz ou pela guerra, depende apenas do tipo de armas que usamos e do lado onde estamos.
Todos os dias eu faço uma reflexão sobre o lado que estou, sobre que armas eu uso, se devo ou não usar armas, enfim, todos os dias busco compreender qual é o meu papel neste mundo, para entender de qual lado da guerra estou ou devo estar.
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(1) Maomé, também conhecido como Muhammad, foi o profeta que recebeu a mensagem de Alá e desempenhou um papel fundamental no surgimento do islamismo no século VII. De acordo com a tradição islâmica, Maomé é considerado o último profeta de Deus, sucedendo a uma linha de profetas que inclui Abraão e Moisés, entre outros. O Alcorão, também conhecido como Qur'an, é o livro sagrado do Islã. Ele é considerado a palavra final de Deus (Alá) como revelada ao profeta Maomé por meio do anjo Gabriel. O Alcorão é escrito em árabe e é composto por 114 suras (capítulos), que são subdivididos em versículos. É a principal fonte de orientação religiosa e moral para os muçulmanos e abrange uma variedade de tópicos, incluindo crenças, práticas religiosas, leis, moral, história e muito mais. Ele é recitado e memorizado por muitos muçulmanos em todo o mundo, e a sua recitação é parte fundamental da adoração islâmica.
(2) Penalidade estabelecida na época de Moisés, aplicando ao delito o mesmo gravame "dente por dente, olho por olho..." Aplicação rigorosa e inflexível da lei de causa e efeito, ainda vigente como uma forma de vingança. É um princípio de justiça retributiva que se baseia na punição proporcional ao crime cometido. O termo "talião" deriva do latim "talionis", que significa "represália" ou "retaliação". A pena de talião é frequentemente expressa pelo famoso princípio "olho por olho, dente por dente", que sugere que a punição deve espelhar o dano causado pelo crime. Em outras palavras, se alguém causa um ferimento a outra pessoa, a pena imposta seria infligir o mesmo tipo de ferimento ao agressor.
(3) Tora" ou Torah, tem origem no termo hebraico "Yará," que significa ensinamento, instrução ou lei. A "Torá" dos judeus é a coleção dos cinco primeiros livros da Bíblia hebraica, que desempenha um papel central na religião judaica, fornecendo ensinamentos, instruções e orientações importantes para a vida espiritual e moral dos seguidores dessa fé.
Olhe para a Floresta e não só para a Árvore
José Augusto Zaniratti - 16/10/2023
Eu me lembro bem de um momento no ano de 1989, era novembro. Eu cheguei na casa de meu pai, eu estava furioso, de mal com a vida e com toda a humanidade. Reclamei de tudo. Meu pai, Geraldo, me escutou sem nada dizer, em absoluto silêncio. Ele continuou fazendo o café, calado. E eu, revoltado, não parava de reclamar, e o pai calado. Terminou de passar o café e me chamou para sentarmos na sala. Serviu café para nós dois e eu me calei.
Então, meu pai, passou a me contar uma história da vida dele, como ele sempre fazia quando queria me dizer algo, era o jeito dele de me chamar a atenção ou de me orientar.
Naquele dia ele me contou que tinha 10 anos quando participou de sua primeira eleição. Era o ano de 1930, mês de março. Ele saiu cedo de casa com o pai dele, meu avô. Naquela época, as crianças não faziam perguntas, apenas obedeciam seus pais. Os dois foram até o centro de Porto Alegre e pegaram um trem. Em cada estação meu avô e meu pai desciam do trem e se dirigiam até uma fila enorme. Era possível ver duas mesas pequenas com dois homens sentados escrevendo. Depois de algum tempo chegou a vez de meu avô votar, me contou meu pai.
Um dos homens que estavam sentados à mesa, dirigiu-se ao meu avô e perguntou:
O senhor, vota em quem?
Getúlio Vargas.
Disse meu avô ao homem sentado que imediatamente colocou um traço ao lado do nome de Getúlio Vargas e chamou o seguinte. Então meu avô saiu da fila e voltou para a estação do trem. Meu pai imaginou que voltariam para casa. Mas isso não aconteceu. Ambos pegaram o trem e foram para próxima estação onde desceram e novamente se dirigiram para uma outra fila onde também haviam dois homens sentados à mesa. Depois de algum tempo, chegou a vez de meu avô e um dos homens perguntou ao meu avô:
O senhor, vota em quem?
Getúlio Vargas.
Novamente meu avô votou. E assim foi o dia inteiro, em cada estação meu avô descia na estação e votava. Voltaram para casa no fim do dia, já estava escurecendo.
Getúlio Vargas perdeu a eleição, ou não, impossível saber. O resultado todos sabem, a chamada revolução de 1930. Só em 1932 inicia a elaboração do primeiro Código Eleitoral do Brasil que abordava o voto secreto, o voto feminino, sistema de representação proporcional e a criação da Justiça Eleitoral, responsável pelo registro de eleitores; organização das mesas de votação, apuração dos votos, reconhecimento e proclamação dos eleitos e regulação das eleições federais, estaduais e municipais em todo país.
É claro que meu pai contou essa história com mais detalhes e com seu jeito muito particular de falar sobre as coisas que ele havia vivido. Eu ouvi atentamente e durante muito tempo eu me perguntei qual teria sido a razão de me contar aquela história. Num primeiro momento achei que ele queria mesmo que eu ficasse quieta, que parasse de reclamar de tudo e de todos. Mas eu estava enganado.
Compreendi que ele queria que eu refletisse algo. Ele queria me contar como ele foi ensinado sobre o que era eleição e o quanto isso agora era diferente.
Levou tempo para eu construir minha própria interpretação daquela história de vida de meu pai. Em outras palavras, ele me disse que eu estava “olhando a árvore e não a floresta” e que toda vez que fazemos isso nos apequenamos. Olhar a floresta é observar o todo no tempo e no espaço. A humanidade está voltada para seu tempo, no tempo em que vive, voltado para o espaço em que vive, em sua cidade. Mas a humanidade é o único ser vivo que tem a dimensão de espaço e tempo passado, presente e futuro.
Ao contar essa história ele me chamou a atenção para o erro que eu estava cometendo, reclamando sem parar da árvore - o hoje e aqui - sem perceber a floresta - o ontem no país - não estava observando o todo no contexto histórico, tempo passado, presente, futuro e espaço, e assim não estava vendo os avanços. Este é um erro muito comum. Julgamos a humanidade com os nossos olhos voltados para o hoje e aí somos tomados pelo pessimismo, caímos no jargão - nada vai mudar - quando na realidade já mudou muito, basta comparar o processo eleitoral de 1930 e de hoje. Neste quesito e em muitos outros avançamos, lentamente, se considerarmos nossa pressa, mas a história tem um tempo diferente da vontade individual.
Isto não quer dizer que devemos deixar de criticar, reclamar e agir para mudar nosso tempo. Observe, quando fizer a crítica, contextualize, avalie com os olhos voltados para a história e não apenas para o hoje. Ao longo dos séculos de civilização superamos muitas TREVAS, mas ainda há muito que fazer. Pense nisso!
Há outros Povos e Comunidades Tradicionais?
José Augusto Zaniratti - 09/10/2023
Em 2007, com o Decreto Federal 6040 que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, outros povos e comunidades iniciaram um processo de FIM DAS TREVAS e da falta de visibilidade no âmbito dos Poderes da República. O Decreto não trata apenas do Povo de Terreiro, explicitou e reconheceu como Povos e Comunidades Tradicionais os INDÍGENAS, denominados de povos originários; os QUILOMBOLAS; os CIGANOS; os CABOCLOS; os CAIÇARAS; os EXTRATIVISTAS; os RIBEIRINHOS; os PESCADORES e POMERANOS.
O povo desta cultura, como tantas outras, sofreu por séculos na Europa, principalmente com o processo de unificação dos estados nacionais. Foram invadidos por potências diferentes ao longo de sua história e não possuem um Estado próprio. Localizados ao norte da Polônia e da Alemanha, na costa sul do Mar Báltico, até o início do século XIX, pertenciam ao Sacro Império Romano-Germânico, depois tornando-se parte da Prússia e, mais tarde, terminada a Segunda Guerra Mundial, dividida entre a Polônia e a Alemanha.
No Brasil também viveram seus dias de TREVAS, pois, no período da Segunda Guerra Mundial (1940-1945), foram barbaramente discriminados, eram confundidos com alemães pela mais absoluta ignorâ
Getúlio Vargas.
Disse meu avô ao homem sentado que imediatamente colocou um traço ao lado do nome de Getúlio Vargas e chamou o seguinte. Então meu avô saiu da fila e voltou para a estação do trem. Meu pai imaginou que voltariam para casa. Mas isso não aconteceu. Ambos pegaram o trem e foram para próxima estação onde desceram e novamente se dirigiram para uma outra fila onde também haviam dois homens sentados à mesa. Depois de algum tempo, chegou a vez de meu avô e um dos homens perguntou ao meu avô:
O senhor, vota em quem? uem?
G etúlio Vargas. argas. argas. argas. argas. argas. argas. . Mantiveram suas tradições culturais vivas até hoje, como a linguagem própria, o pomerano; danças típicas, como o Schuhplattler e o Zwiefacher; música folclórica, tocada com instrumentos tradicionais como o acordeão e a tuba; arquitetura, com destaque para as casas de enxaimel; gastronomia, com pratos típicos como o Eisbein (joelho de porco), Kassler (costeleta de porco defumada), Knödel (bolinho de batata), Spätzle (macarrão caseiro) e o famoso Apfelstrudel (strudel de maçã) e festas religiosas, além de produzirem cervejas artesanais de qualidade. As festas tradicionais são a de São Nicolau e a Festa da Colheita.
Os pomeranos estão presentes em diversas cidades do Rio Grande do Sul, principalmente nas cidades de Canguçu, São Lourenço do Sul, Pelotas, Santa Maria do Herval, Dois Irmãos, Ivoti, Presidente Lucena, Linha Nova, Picada Café e São José do Hortêncio. Reconhecer e valorizar esta cultura é também responsabilidade de todos nós.
FOTO DE GRUPO FOLCLÓRICO POMERANO NO ESPÍRITO SANTO, EM MAIO DE 1991. Fonte: ospomeranos.com.br
Povos Tradicionais e o Conselho Tutelar
José Augusto Zaniratti - 25/09/2023
Com certeza, todos devem conhecer alguma informação sobre a importância do funcionamento do Conselho Tutelar em cada cidade. Este é mais um instrumento que proporcionou que o país diminuísse as TREVAS que devastavam vidas. Instituído em 1990, através da Lei Federal nº 8.069, chamada de ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente.
A partir deste momento os conselheiros e conselheiras, eleitos em seus respectivos municípios, por eleições diretas em outubro a cada 4 anos. Em determinadas situações os conselheiros podem aplicar medidas de proteção à criança e ao adolescente diante de ação ou omissão da sociedade ou do Estado; por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável e em razão de sua conduta, como afirma o artigo 98 da Lei Federal nº 8.069. No caso de ato infracional praticado por criança poderão, inclusive, ser aplicadas medidas adequadas previstas em lei.
Novamente, como um dos problemas, temos a ignorância da população como ponto frágil de todo este processo. Seja pelo fato de desconhecer a lei que lhe proporciona o direito de votar e ser votado para Conselheiro; seja pela falta de critério na hora de votar; pelo desinteresse por não acreditar ser importante e, ainda, por não ser obrigatório.
Exatamente, é um direito e não é obrigatório comparecer às urnas para votar....
Por outro lado, frequentemente, os candidatos a conselheiro se transformam em instrumento de testes para futuros saltos eleitorais para vereadores ou mesmo como avaliação do potencial eleitoral dos conselheiros para apoiarem candidatos nas próximas eleições. É claro que isso não é ilegal, no entanto, a função de conselheiro acaba sendo secundarizada por determinados grupos para priorizarem ações partidárias em um próximo momento.
Não só os partidos políticos se envolvem neste processo, mas também as organizações não-governamentais, igrejas e outras organizações da sociedade civil. Evidente que isso não ilegal e moralmente falando, se o interesse é eleger um bom representante da população na proteção e na garantia dos direitos de crianças e adolescentes, devemos saudar tamanho interesse.
Na hora de escolher não basta conhecer os candidatos, não basta o conhecimento que os candidatos possuem do tema e da legislação com a qual vai trabalhar. É preciso saber o real interesse do candidato, em outras palavras, o candidato vai priorizar essa função ou será trampolim para voo para um cargo parlamentar antes mesmo de finalizar o mandato de 4 anos de conselheiro? Pior, o interesse é basicamente ter um emprego? Ser conselheiro tutelar é ter capacidade de ouvir e orientar todas as partes envolvidas e, principalmente, ter a iniciativa de construir ações preventivas junto às instituições que lidam com o tema.
Mais ainda, na hora de matricular um filho na escola e não havendo vaga, ou nos casos de procedimentos inadequados em órgãos públicos, cabe aos responsáveis acionar o conselheiro, pois este pode requisitar serviços públicos adequados em qualquer área.
Mas há uma questão crucial neste momento que muitos esquecem: o candidato saberá lidar com as crianças e adolescentes dos povos e comunidades tradicionais?
É muito comum relatos de mães e pais e até mesmo em escolas, de situações que envolvem a discriminação ou racismo religioso; de desrespeito institucional das crenças e preceitos religiosos como alimentação escolar; formação religiosa inadequada para a diversidade de uma sala de aula; restrição de apresentações de trabalhos de sala de aula que envolvem outras culturas e etc.
É preciso entender que o racismo está institucionalizado, que há casos em que as pessoas nem percebem e outros que há ação deliberada de discriminação e proselitismo religioso dentro de instituições, seja na saúde, educação, trabalho ou segurança. Por exemplo, uma cigana não pode ser atendida por ginecologista masculino, por determinação cultural.
Portanto, conhecer os elementos básicos dos povos e comunidades tradicionais existentes na cidade onde o conselheiro é candidato é igualmente fundamental Não esqueça de votar para Conselheiro Tutelar em 1 de outubro de 2023.
A origem do preconceito, do racismo religioso
José Augusto Zaniratti - 18/09/2023
Não fazia muito tempo que os últimos árabes haviam sido expulsos da península ibérica, quando os Portugueses chegaram aqui. Todo o processo de expulsão de um povo, a guerra em si, mobilizam os sentimentos mais cruéis. A história deste período, até o fim do século XV, na península ibérica de retomada de seu território, produziu sentimentos de revolta, de retomada de sua dignidade, de luta, de raiva e ódio. Era o início do FIM DAS TREVAS para eles e o início das nossas TREVAS.
A visão colonialista era de extração das riquezas para Europa. A população indígena - povos originários - foi tratada como se fossem invasores das terras ocupadas a partir das Grandes Navegações. É com esta ideologia que surge o Brasil. Desde então, o que mais nos ensinaram foi odiar e não amar.
Já em 1502 a força de trabalho negra escravizada começa a chegar ao Brasil. Assim se instala a supremacia pela força das armas; da cor da pele; da religião branca; da cultura livresca de poucos sobre a cultura oral de séculos de muitos. Tudo que é diferente daqueles que mandam é visto como uma ameaça em potencial.
O teólogo, pastor batista e pesquisador do Instituto de Estudos da Religião (Iser), do Rio de Janeiro, Clemir Fernandes, explica como a Igreja Católica, implantada pelos Portugueses no Brasil, entendia o que é desconhecido. “... o demônio estava em tudo aquilo que não se podia identificar ou explicar”. “O outro, que não se sabia o que era, do que nem se queria aproximar, era o demônio”.
Esta ideologia dominante estabeleceu raízes profundas na cultura brasileira, fundamentada no preconceito, no racismo e na intolerância.
O que mudou desde 1988? Apenas os meios e instrumentos de preservação da dominação tornaram-se mais tecnológicos. Os canais de televisão, dominados pelos membros da Casa Grande; o capital nas mãos brancas de poucos; o poder econômico gerando maioria absoluta de parlamentares conservadores; perseguição, criminalização, proibições das manifestações culturais e religiosas como a roda de capoeira por estar associada ao demônio, inclusive com “prisões de capoeiristas e apreensão de objetos, adereços e vestimentas usados em rituais”.
As raízes do preconceito, do racismo religioso contra o Povo de Terreiro estão na formação de nossa cultura, fundamentada no ódio ao desconhecido, na crença de que a “minha cultura” é superior a do outro, que eu tenho a verdade absoluta, na crendice de que tudo que é diferente é manifestação do demônio, que é doença.
Não se pode negar que o crescimento de grupos neopentecostais no Brasil contribuem para o preconceito, estabelecendo uma relação teologicamente absurda entre o diabo e as religiões de matriz africana. Hoje vemos uma verdadeira “Guerra Santa” dessas religiões contra as religiões afro-brasileiras. Essa prática, de estabelecer um inimigo como alvo da pregação foi utilizada na base do Nazismo, por Adolf Hitler e pelo fascismo, não podemos esquecer disto.
É claro que para a grande população liderada por estas igrejas evangélicas, que correspondem a 22% da população brasileira, segundo a auto declaração na pesquisa do IBGE, há muito desconhecimento e estigmatização em relação às práticas religiosas de matriz africana. Isso aponta para a necessidade de um sistema educacional capaz de barrar a ignorância que perpetuam equívocos históricos, estereótipos e preconceitos em relação às práticas religiosas e culturais de matriz africana.
É evidente que o preconceito e o racismo religioso é um problema complexo, presente na história, na cultura e nas relações sociais. É fato que o combate a tudo isso passa por processo de reeducação de educadores e educandos, aplicação da legislação e, principalmente pelo auto reconhecimento da força do Povo de Terreiro, que no Rio Grande do Sul são mais de 400.000 pessoas e não podem permanecer fragmentadas na luta pelos seus direitos de manifestação religiosa e preservação cultural.
E os outros Povos e Comunidades Tradicionais? Isso fica para uma outra conversa…
A Conferência do Povo de Terreiro
José Augusto Zaniratti - 11/09/2023
Do ponto de vista do aparelho de Estado do Rio Grande do Sul, o início do FIM DAS TREVAS para o Povo de Terreiro de Matriz Africana, data de 2014, quando o então Governador Tarso Genro publicou o Decreto nº 51.587, de 18/07/2014, criando o Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul. Como todo conselho de segmento social, nacional, estadual ou municipal, é uma ferramenta de controle social, isto é, espaço onde representação da sociedade civil e de estado, para acompanhar o desenvolvimento das políticas públicas e, inclusive, espaço de elaboração de diretrizes para novas políticas públicas para segmentos sociais buscando justiça civilizatória. No caso deste conselho estadual, é, a rigor, um “instrumento de reparação civilizatória, na busca da equidade econômica, política e cultural e da eliminação das discriminações” conforme preconiza o decreto em tela.
Ainda no mesmo ano, a partir da I Conferência Estadual, a primeira composição dos representantes da sociedade civil foi eleita por seus pares para um mandato de 4 anos, e a partir de 2015 foram criados 22 Conselhos Municipais do Povo de Terreiro.
Em 2018 deveria ter sido encaminhado a II Conferência e a eleição de nova representação dos 32 Conselheiros do Povo de Terreiro.
No entanto, AS TREVAS voltaram, nada ocorreu, o conselho estadual acabou desativado com o fim do mandato de 4 anos dos conselheiros a partir de 2019. Nada aconteceu entre 2019 e janeiro de 2022. O Estado não encaminhou os procedimentos necessários para dar continuidade ao Conselho. Só em fevereiro de 2022, o então Departamento dos Direitos Humanos do RS, extinto em janeiro de 2023, deu consequência a legislação em vigência e viabilizou a publicação da Convocatória da II Conferência do Povo de Terreiro do RS, através do decreto nº 56.736 de 17/11/2022 pelo Governador. A partir de então as cidades passaram a realizar as Conferências Municipais e Intermunicipais, num total de 60 cidades e envolvendo 66 cidades.
É claro que todas estas conferências municipais preparam a estadual, que vai se realizar em 9 e 10 de dezembro de 2023. Qual a importância da realização destas conferências locais e da Estadual?
O início do FIM DAS TREVAS para Povo de Terreiro em 2014 não suprimiu a sistemática violência contra esta cultura. Ao contrário, justamente a partir de 2019 com a ascensão de governo federal com viés racista, e “terrivelmente” inimigo dos povos e comunidades tradicionais. O Brasil é um país laico desde a Constituição de 1891, no entanto, a partir de 2019, o racismo religioso foi reforçado pela ideologia implantada no Palácio do Planalto e por pouco que esta determinação legal não desaparece.
Em todo país cresce o número de ações contra o Povo de Terreiro provocando uma involução no processo crescente de visibilidade e conquistas. O recente caso do assassinato da Mãe Bernadete em 2023, Yalorixá baiana, é emblemático.
Segundo Gilciana Paulo Franco, doutoranda e mestra em Ciência da Religião PPCIR/UFJF e professora da rede estadual e municipal de ensino em Juiz de Fora/Minas Gerais, “a violência, seja física simbólica ou psíquica, sempre esteve presentes no cotidiano dos africanos e seus descendentes aqui no Brasil. Os africanos arrancados do seu continente desde o princípio tiveram que encontrar estratégias que lhes possibilitasse a sobrevivência.” …” quando procuramos informações e registros sobre a violência sofrida por adeptos de crenças religiosas no Brasil, percebemos que as religiões de matriz africana aparecem como aquelas que mais denunciam as agressões sofridas, principalmente por grupos pentecostais e neopentecostais”. Segundo a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro (CCIR), “mais de 70% de 1.014 casos de ofensas, abusos e atos violentos registrados no Estado entre 2012 e 2015 são contra praticantes de religiões de matrizes africanas”. No caso dos dados do Disque 100, criado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, “apontam 697 casos de intolerância religiosa entre 2011 e dezembro de 2015, a maioria registrada nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais”. Em 2019, mais de 200 terreiros de matriz africana foram depredados e seus frequentadores ameaçados no estado do Rio de Janeiro. É evidente que a luta pelo direito e respeito à cultura do Povo de Terreiro de Matriz Africana não cessou. O Supremo Tribunal Federal (STF), em março de 2019, por unanimidade de votos, afirmou que a lei do RS, que permite o sacrifício de animais em ritos religiosos, é constitucional.
Mas qual a origem do preconceito, o racismo religioso contra o Povo de Terreiro? Essa é uma conversa para a próxima coluna…
O que é Povo de Terreiro
José Augusto Zaniratti - 04/09/2023
A ignorância e o preconceito é a estrada que nos leva a discriminação, a injustiça, ao racismo e ao ódio. A melhor forma de trilhar por outra estrada, é o conhecimento para compreender o outro em sua essência. Só nesta outra estrada seremos capazes de amar, de fazer justiça e, principalmente, valorizar as diferenças como fonte de saber.
Conhecer o Povo de Terreiro é uma forma de aplacar nossa ignorância. Eu mesmo desconhecia a origem e as práticas vividas por este Povo de Matriz Africana. Sua origem é a África, diferentes regiões desse continente, berço da ancestralidade daqueles que foram escravizados.
Quando pensamos em Povo de Terreiro, duas palavras brotam em nosso cérebro: batuqueiros e religião. No RS, a expressão batuqueiro nasce de forma pejorativa para designar os escravos que à noite - porque trabalhavam enquanto havia luz do dia - batiam em seus tambores e dançavam. Os atabaques feitos por eles era o principal instrumento para celebrar com suas divindades e assim manter a cultura da Matriz Africana. Com o tempo passamos a compreender que o Povo de Terreiro é um Território, um pedaço da África, onde se vive a cultura de diferentes regiões africanas, origem de diferentes povos. Não se trata de uma ou mais religiões, é bem mais complexo. Neste território há, por princípio, a aceitação das diferenças da humanidade, não importa a cor da pele, a diferença de gênero, da opção sexual, se é rico ou pobre, todos são bem vindos e aceitos para viverem a cultura ancestral. Aqui já encontramos uma diferença brutal de outras religiões, por exemplo, que segregam e demonizam os diferentes.
No Povo de Terreiro se falam línguas diferentes em suas cerimônias e rituais. A diversidade linguística como o iorubá, quicongo, umbundo, nagô, fon, jeje, entre outras línguas, refletem as origens africanas. Isso é cultura que é desprezada ou ignorada, assim como a capoeira que surgiu no Brasil durante o período colonial, praticada pelos escravos africanos que chegou a ser proibida durante nossa história. A capoeira, uma arte marcial, que virou uma espécie de dança, demonstra a resistência e expressão cultural deste povo.
É muito comum a população buscar junto dos terreiros, tratamento para suas doenças, sejam físicas ou psicológicas. Isto se deve aos saberes de plantas e ervas medicinais acumulados por séculos por este povo. De fato, isto acaba desafogando o SUS, pois, grande parte da população busca este tipo tratamento, que, inclusive, o próprio SUS passou a aceitar e até prescrever ervas já aceitas pela ANVISA como a camomila; erva-cidreira; hortelã; guaco; babosa; boldo e etc.
Segurança alimentar e nutricional é prática usual no povo de terreiro. Ali é onde a população mais carente é alimentada durante suas festas, crianças, adultos, velhos, independentemente de vivenciarem a cultura do povo de terreiro, participam e se alimentam a partir do preparo cuidadoso dos animais sacralizados.
Todos os fundamentos religiosos e valores, apontam para uma vivência em harmonia com a natureza, buscando nela tudo que ela nos beneficia sem causar dano ao ambiente. Portanto, o Povo de Terreiro tem em seus fundamentos a preservação da natureza, pois suas práticas e divindades estão intimamente ligadas à natureza. Será que a civilização ocidental cristã tem a mesma prática?
A prática da caridade é lugar comum para os Terreiros. Cada Terreiro possui atividades que envolvem distribuição de alimentos, festas para crianças e outras atividades na comunidade onde estão inseridos, isto é, fazer o bem sem ver a quem, é um dos valores, descritos nos arquétipos, ensinados e praticados, por exigência dos Orixás - divindades cultuadas nas religiões de matriz africana. Portanto, Povo de Terreiro é mais que religião, é território, é a vivência de uma cultura e como tal, deve ser respeitada, preservada e valorizada.
O Batuque, ou Nação no RS, é um dos Povos de Terreiro do Brasil. Existem outras denominações, não só pelas diferentes origens do continente africano, mas também pelo sincretismo religioso no processo de formação. Em cada região do país há predominância de uns em relação aos outros, em função do processo histórico. Existem o Candomblé (RS; Nordeste e Sudeste); Tambor de Mina (MA;PA;AM); Nagô (Nordeste e Sudeste); Xambá (PE); UMBANDA (Sudeste e Sul); QUIMBANDA (Nordeste; Sudeste e Sul); CATIMBÓ (Norte e Nordeste); JUREMA - Macumba e Toré - (Nordeste); TERECÔ (Norte e MA) e ALMAS DE ANGOLA (Sudeste), por exemplo.
Por que realizar uma Conferência do Povo de Terreiro de Matriz Africana?
Bem, estas são questões para a próxima coluna…
Nossa Origem…
José Augusto Zaniratti - 30/08/2023
Por mais incrível que pareça, em pleno Século XXI, a humanidade ainda não produziu Justiça Civilizatória. E pior, justamente para os povos da África, berço de toda a humanidade. Sim, berço da humanidade. Segundo a ciência, os mais antigos fósseis de hominídeos foram encontrados na região leste do continente africano, no Vale do Rift, onde hoje se localizam os países do Quênia, Tanzânia, Uganda, Ruanda, Burundi, Etiópia, República Democrática do Congo, Sudão do Sul e Djibuti.
Ao longo do tempo, a humanidade, a partir da África, migrou por todo o planeta entre 200.000 a 180.000 anos atrás pela Península Anatólia (hoje a Turquia), depois entre 75.000 a 50.000 anos atrás pelo Oriente Médio (hoje Arábia Saudita) até onde hoje é a Austrália. Entre 40.000 a 35.000 anos a humanidade chega na Península Ibérica (hoje Portugal e Espanha), entre 30.000 a 20.000 anos atrás, chegam na América, pelo estreito de Bering e até 8.000 anos atrás já ocupavam grande parte da América do Sul.
Em cada região, isolados pelas mudanças ambientais, estabeleceram seus valores, constituíram suas crenças, sua cultura, se adaptaram ao ecosistema e se modificaram fisicamente para sobreviver. As mudanças da cor da pele, por exemplo, foram necessárias para absorver vitamina D dos raios solares. Nas regiões do planeta onde os raios solares eram menos intensos, a pele clareou para poder absorver ainda mais as propriedades químicas necessárias para a sobrevivência.
Mas por absoluta ignorância, a humanidade transformou as diferenças visíveis do corpo, da cultura, da forma de viver, em razões para segregar e subjugar uns aos outros.
O resultado deste processo foi a geração de injustiças, guerras, destruição e, principalmente, uma ideologia de supremacia de uns grupos humanos sobre outros.
No Brasil não foi diferente para as três grandes civilizações que compõem nosso território. A civilização indígena, a civilização européia e a civilização de matriz africana aqui chegaram em momentos diferentes, por razões diversas e, escravizadas como foi o caso dos povos africanos. Portanto, falar em justiça civilizatória no Brasil é algo complexo, vital e urgente.
Não basta conviver com as características diferentes destas civilizações, é preciso agir na busca por justiça, igualdade e conduta ética que contribuam para o respeito mútuo, para o desenvolvimento e preservação das diferentes culturas. Justiça Civilizatória é um processo permanente de promoção da harmonia social, na resolução das desigualdades e na promoção de uma coexistência civilizada e equitativa. Nossa história enquanto nação, possui poucas ações nesta direção, ao contrário, foram inúmeros momentos desde 1500, que a prática de injustiça, de segregação, de dominação colonialista marcaram com ferro e fogo nossa cultura, gerando racismo, ódio, desrespeito religioso e desprezo aos saberes de povos, sobretudo dos de matriz africana.
Reconhecer os povos e comunidades tradicionais é, sem dúvida, um passo fundamental, importante e basilar para avançarmos para a reparação dos erros históricos cometidos em nosso país. Embora tardiamente, em 2007, através do Decreto Federal 6040, é instituída a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, reconhecendo as diferentes civilizações presentes no Brasil.
Muito mais é necessário para alcançarmos justiça civilizatória. A responsabilidade é de todos, poderes executivos, legislativos, judiciários e, principalmente, da população de cada cidade, exigindo políticas públicas necessárias para reparar injustiças, preservar culturas, dar visibilidades e valorizar os saberes de cada civilização, para a defesa de direitos e a erradicação de todas as formas de discriminação.
Erechim, em 5 de agosto de 2023 deu um passo nesta direção, quando realizou a I Conferência do Povo de Terreiro de matriz Africana. Uma das sessenta cidades do Rio Grande do Sul que teve coragem de mostrar a face de quem espera mais da democracia, da justiça.
É evidente que, para os que não vivenciam a cultura de matriz africana, restam inúmeras dúvidas sobre este tema, perguntas que surgem depois da leitura destas linhas.
Por que realizar uma Conferência do Povo de Terreiro de Matriz Africana? Quando isso começou no Rio Grande do Sul? O povo de Terreiro é a mesma coisa que Batuque? Batuque é uma religião? O que significa ser do Povo de Terreiro? Bem, estas são questões para uma nova conversa…